Se você não leu as outras partes da presente série, sugiro a leitura a começar pela primeira parte
TESTING, TESTING, TESTING
TESTING, TESTING, TESTING
Esse é o mantra entoado em vários lugares do
mundo. Ao menos nos países onde a crise está sendo travada de maneira séria, já que a crise COVID19 é uma grande ameaça de saúde pública e por via de consequência da
estabilidade econômica de sociedades inteiras. Não sei se aplica ao Brasil que aparentemente escolheu
mergulhar numa crise política talvez até maior do que a do governo Collor no meio de uma pandemia.
Mas,
tirante nosso querido país, a comunidade internacional, os especialistas, os
palpiteiros todos falam da necessidade de testar e testar para saber quem está
infectado ou possa já ter sido infectado. A lógica por trás dessa forma de pensar é que apenas com
dados de uma testagem feita em massa é possível saber, e de alguma maneira
tentar controlar, o desenvolvimento da epidemia.
Mas,
como são feitos esses teses? Quais são
os tipos de testes? Basta sair testando todo mundo? Os testes são confiáveis?
São essas perguntas que espero trazer ao menos alguma luz no presente artigo.
OS DOIS TIPOS DE TESTES
I - RT-PCR
O teste RT-PCR é uma abreviação
para reverse-transcriptase polymerase chain reaction. O nome é extenso e à
primeira vista complexo. Esse tipo de teste tem como objetivo encontrar o
próprio vírus ou fragmentos dele. Antes
de mais nada, o material genético de quase todos os seres vivos reside em
estruturas chamadas DNA, ou no caso de alguns vírus RNA.
É um teste relativamente complexo. Primeiramente, se coleta o material, geralmente do nariz ou da garganta, de uma pessoa e a amostra é enviada a um laboratório. No laboratório, são utilizados elementos químicos para remover qualquer proteína, gordura, ou qualquer elemento que possa estar presente na amostra, deixando apenas o DNA da pessoa e o RNA viral.
É usado uma enzima então para converter o RNA viral em DNA (por isso o nome reverse transcriptase). Depois disso, com o uso de outra enzima, e por processos sucessivos de aquecimento e esfriamento, são produzidos dezenas de bilhões de moléculas de DNA viral para cada RNA viral (daí o nome Polymerase Chain Reaction). Depois disso são enviadas "sondas" fluorescentes para que se acoplem em regiões específicas do genoma viral, a depender da fluorescência da amostra pode-se dizer se há material genético viral ou não.
É um teste relativamente complexo. Primeiramente, se coleta o material, geralmente do nariz ou da garganta, de uma pessoa e a amostra é enviada a um laboratório. No laboratório, são utilizados elementos químicos para remover qualquer proteína, gordura, ou qualquer elemento que possa estar presente na amostra, deixando apenas o DNA da pessoa e o RNA viral.
É usado uma enzima então para converter o RNA viral em DNA (por isso o nome reverse transcriptase). Depois disso, com o uso de outra enzima, e por processos sucessivos de aquecimento e esfriamento, são produzidos dezenas de bilhões de moléculas de DNA viral para cada RNA viral (daí o nome Polymerase Chain Reaction). Depois disso são enviadas "sondas" fluorescentes para que se acoplem em regiões específicas do genoma viral, a depender da fluorescência da amostra pode-se dizer se há material genético viral ou não.
O processo não é simples, precisa de pessoas especializadas, precisa de vários reagentes (as enzimas), e não é esse teste que virá aos milhões ao Brasil. Além de não termos capacidade de analisar centenas de milhares de testes desses por dia, pois não temos capacidade humana diferente, não há reagentes. A China produz quase todos os reagentes para esse teste, e nem mesmo os EUA estão conseguindo aumentar a testagem para números que vários especialistas dizem ser necessários.
Para se ter ideia, há planos de reabertura da economia baseados na possibilidade dos EUA realizar 10 milhões de testes por semana. Atualmente, os EUA estão realizando 1 milhão de testes e já ouvi especialistas, inclusive o Dr. Michael Osterholm dizer que com muito esforço os EUA em alguns meses podem chegar a 3 milhões de testes por semana.
O Brasil não chegará nem perto de milhões de testes por semana, talvez nem mesmo centenas de milhares de testes por semana. O Brasil baseará a sua estratégia provavelmente apenas em testes rápidos sorológicos que possuem a sua finalidade, mas para o controle de uma epidemia, para localização de infectados sintomáticos, assintomáticos ou pré-sintomáticos, o exame a ser realizado é o RT-PCR, não um exame de anticorpos.
O PCR é o único exame que detecta a carga viral de um indivíduo. Apenas com ele autoridades de saúde podem detectar indivíduos, isolá-los, testar os contatos imediatos e planejar uma saída organizada para essa crise. O Brasil nesse quesito, ao contrário de países como Alemanha e Coréia do Sul, provavelmente voará no escuro nesse quesito.
Para se ter ideia, há planos de reabertura da economia baseados na possibilidade dos EUA realizar 10 milhões de testes por semana. Atualmente, os EUA estão realizando 1 milhão de testes e já ouvi especialistas, inclusive o Dr. Michael Osterholm dizer que com muito esforço os EUA em alguns meses podem chegar a 3 milhões de testes por semana.
O Brasil não chegará nem perto de milhões de testes por semana, talvez nem mesmo centenas de milhares de testes por semana. O Brasil baseará a sua estratégia provavelmente apenas em testes rápidos sorológicos que possuem a sua finalidade, mas para o controle de uma epidemia, para localização de infectados sintomáticos, assintomáticos ou pré-sintomáticos, o exame a ser realizado é o RT-PCR, não um exame de anticorpos.
O PCR é o único exame que detecta a carga viral de um indivíduo. Apenas com ele autoridades de saúde podem detectar indivíduos, isolá-los, testar os contatos imediatos e planejar uma saída organizada para essa crise. O Brasil nesse quesito, ao contrário de países como Alemanha e Coréia do Sul, provavelmente voará no escuro nesse quesito.
É preciso várias enzimas (reagentes) para realizar um teste RT-PCR e os resultados geralmente ficam prontos apenas depois de de 6-8 horas (isso quando há força laboratorial, porque senão pode demorar vários dias, como está acontecendo em vários lugares no Brasil, onde as pessoas estão morrendo sem o teste ter voltado o resultado
Assim, como a chance disso tudo não ser uma grande tragédia no Brasil depende do "Modelo Oxford" estar mais certo do que errado, a nossa "volta à normalidade" depende de surgir algum teste no mercado com boa sensibilidade e especificidade que seja barato, seja simples, não dependa de muitos reagentes, e possa detectar a carga viral. Esse teste ainda não existe, mas talvez venha a existir nos próximos meses. Nos resta torcer.
II – TESTES SOROLÓGICOS – DETECÇÃO DE ANTICORPOS
Não
quero fazer esse texto uma “aula” de biologia porque a) eu não vou fingir que
tenho um grande conhecimento nessa área, pois não possuo, e b) não seria nem o
objetivo desse artigo e imagino da maioria dos leitores. Porém, apesar dos dois
motivos elencados, uma brevíssima explicação sobre o sistema imunológico é
preciso ser feita.
O corpo
humano possui basicamente dois sistemas de defesa: o sistema imune inato e o
sistema imune adaptativo. Inato é aquele que possuímos simplesmente por sermos
humanos, é o que a evolução nos legou depois de milhões e milhões de anos. O
adaptativo é aquele que a própria pessoa vai construindo ao longo da sua
experiência de vida nesse mundo. Quando
um bebê nasce, ele precisa ter alguma resposta inata, ou seja, pronta para que possua alguma defesa em
relação a um patógeno invasor. Se o sistema imune inato humano não existisse, aqui apenas especulo, dificilmente nossa espécie existiria, pois seria
muito difícil bebês sobreviverem aos seus primeiros meses de vida.
Por outro lado, no decorrer de nossa existência, nós somos submetidos a uma gama enorme de bactérias, vírus, protozoários, e nosso sistema imune precisa de alguma maneira responder a esses invasores, e uma das formas é o sistema imune adaptativo, a parte da nossa defesa imunológica que evolui no decorrer da vida de um ser humano. Um dos mecanismos do sistema imune adaptativo é a produção de anticorpos por células específicas chamadas plasma cells (ou plasmócitos).
Para cada bactéria ou vírus nosso corpo produz um anticorpo específico para o patógeno específico. Se você, prezado leitor, já teve catapora, ou foi vacinado, o seu corpo terá a "memória" dessa infecção, e se por ventura algum vírus varicela (causador da catapora) entrar em seu corpo, o seu sistema imune adaptativo imediatamente começara a produzir anticorpos específicos para o vírus da catapora, impedindo que haja uma nova infecção. A proteção contra catapora é uma proteção de longa duração, e para a esmagadora maioria das pessoas dura a vida inteira.
Porém, como o organismo do leitor conseguiria produzir tão rapidamente um anticorpo específico contra o vírus causador da catapora? Essa é uma pergunta bem interessante, e até algumas semanas atrás eu nunca tinha parado para pensar nisso. Nosso organismo consegue produzir anticorpos tão rapidamente, pois nosso organismo consegue reconhecer antígenos no agente invasor.
Antígenos nada mais são do que proteínas ou açúcares que existem na superfície de bactérias ou vírus. Os anticorpos conseguem identificar esses antígenos, e quando um é reconhecido, diversos processos de defesa, como o aumento da produção de um anticorpo específico que detecta ou neutraliza aquele antígeno específico, é iniciado.
Seja apresentado a um Anticorpo, prezado leitor. Onde está escrito "local de ligação ao antígeno" é na verdade uma forma variável. Ou seja, a depender do antígeno há uma conformação própria dessa seção.
Uma representação gráfica de um anticorpo se ligando a um antígeno específico
Existem cinco tipos de anticorpos chamados também de Imunoglobulinas IgG, IgM, IgA, IgE e IgD. Cada um deles tem uma função diversa, mas os mais "importantes" tendem a ser IgM que é uma primeira linha de defesa do organismo, e o IgG que é envolvido numa segunda fase de combate do sistema imune ao patógeno invasor. Apenas como curiosidade, o IgA é presente em fluidos humanos, um deles o leite materno. Ou seja, a mãe passa para o filho que amamenta um pouco dos seus anticorpos. Eu não sabia desse fato até pouco tempo atrás. Talvez, entre outros motivos, crianças que amamentam até os dois anos tendem a ter sistemas imunes muito mais fortes do que crianças que foram pouco amamentadas. E no Brasil se amamenta pouco, o que é um grande problema que poucas pessoas falam.
Sendo assim, é esperado que as pessoas que se recuperam do SARS-COV-2 produzam anticorpos contra esse invasor, mas precisamente contra o antígeno da Spike Protein que se liga ao receptor ACE2 nas células humanas. Por que se espera isso? Se uma pessoa se livra de uma infecção, presume-se que ela produziu anticorpos contra o agente causador. Há outras formas de defesa do organismo, inclusive o sistema inato, mas a defesa contra invasores patogênicos é muito influenciada pela atuação de anticorpos específicos contra o antígeno do invasor.
É basicamente isso que os testes de anticorpos querem medir: a existência ou não de anticorpos contra o antígeno específico do SARS-COV-2. Isso é importante entender. Ao contrário do exame RT-PCR que mede se o organismo possui o vírus, o exame de anticorpos não mede a existência de vírus, mas sim se o organismo produziu defesas contra o vírus, ou seja, é uma medida "indireta" de uma infecção passada.
Como dito alguns parágrafos acima, o anticorpo IgM é produzido numa primeira fase de defesa e o IgG numa fase posterior. Portanto, quanto mais recente for uma infecção, mais provável que haja IgM circulando no plasma e pouco IgG. Quanto mais distante uma infecção, mais provável que haja muito mais IgG do que IgM.
Essa é uma representação do que ocorre com o nosso corpo em relação a produção de anticorpos contra um antígeno onde haja imunidade por vários anos (como contra o vírus da catapora). Há a infecção, e numa primeira fase ocorre a produção de IgM. A produção de IgG acontece numa segunda fase de resposta do organismo. Se, por ventura, anos depois houver uma novo contato contra o antígeno do vírus, a resposta imunológica, especialmente do IgG é muito mais rápida e vigorosa.
Sendo assim, os testes rápidos para ver a existência de anticorpos contra o SARS-COV-2 medem se o sangue coletado possui anticorpos contra o antígeno específico do novo vírus. Basicamente, dos testes rápidos que já olhei, basta colocar um pouco de sangue num aparelho. Uma linha chamada C (controle) deve acender, e há duas outras linhas que podem ou não acender : uma para IgM e outra para IgG. Se aparecer uma linha, significa que a pessoa possui anticorpos IgM ou IgG ou os dois.
No primeiro caso, apenas a linha C (controle) acende, anticorpos não são detectados. No segundo, apenas anticorpos IgG são detectados, sugerindo que a pessoa foi infectada já há pelo menos algumas semanas. No terceiro, apenas o IgM aparece significando que há uma infecção em curso, já que apenas o primeiro tipo de anticorpo da linha de defesa foi detectado. Na quarta, os dois anticorpos são encontrados, querendo dizer que pode haver uma infecção em curso, mas a mesma já está sendo quase que debelada.
Portanto, esse é o panorama geral do racional por trás de testes de anticorpos. Por qual motivo eles podem vir a ser extremamente importantes? Há dois motivos de extrema relevância. O primeiro, do ponto de vista epidemiológico e de conhecimento da nova doença, é saber quantas pessoas podem já ter sido infectadas e que não se submeteram a um teste de RT-PCR, seja porque não havia testes, seja porque as mesmas foram infectadas, mas permaneceram assintomáticas ou com sintomas muito leves.
Se muitas pessoas já foram infectadas e não sentiram nada, ou pouca coisa, isso significa que o IFR (Infection Fatality Rate - Índice de Fatalidade da Infecção) é muito menor do que o CFR (Case Fatality Rate - Índice de Fatalidade dos casos reportados), o que seria um alívio enorme para boa parte da humanidade. Na verdade, quanto mais o IFR se dissociar do CFR mais o "Modelo Oxford" estaria correto, conforme já tratado diversas vezes aqui nessa séria, especialmente na Parte VII - Os Céticos.
Em segundo lugar, do ponto de vista individual, uma pessoa que apresentar anticorpos contra o SARS-COV-2, em teoria (mais disso na próxima seção), teria imunidade contra a doença e assim poderia voltar a trabalhar ou a um mínimo de normalidade. Há países que semanas atrás inclusive começaram a discutir "certificados de imunidade", ou seja, algum documento que ateste que a pessoa estaria imune à doença, pois anticorpos teriam sido identificados por meio de um teste sorológico.
Logo, a esperança depositada nesses testes, para amenizar os problemas econômicos, e para que se possam fazer planos para uma volta "a normalidade", é enorme, e por isso é preciso analisar, ir a fundo, em conceitos que talvez nem médicos que analisam exames de saúde conheçam tão bem.
ALGUMAS QUESTÕES SOBRE IMUNIDADE E ANTICORPOS
Antes de se falar sobre a precisão de testes, especialmente os de anticorpos, é preciso comentar sobre algumas questões ainda sem resposta pelo mundo científico. A primeira, e mais óbvia, é se ter anticorpos contra antígenos do SARS-COV-2 induziria imunidade. Ou seja, se alguém foi infectado, essa pessoa pode ou não ser infectada novamente? Se a pessoa tem imunidade, por quanto tempo ela duraria?
Ninguém sabe dizer ao certo a resposta a essas duas perguntas, mas a presença de anticorpos costuma significar que a pessoa está imune. Por quanto tempo? Essa é muito mais difícil de responder, já que só o tempo pode dizer por quanto tempo uma imunidade pode durar.
Para a catapora, por exemplo, costuma ser para a vida inteira. Para infecções pelo vírus da Influenza (gripe) costuma ser de alguns meses. Para os dois Coronavírus mais agressivos (SARS e MERS), há estudos mostrando que a imunidade dura pelo menos de 1 a 2 anos, e quando há uma nova infecção, a mesma é mais amena. Para outros coronavírus (229E, NL63, OC43 e HKU1) que são muito menos agressivos (estima-se que eles são responsáveis por 30-35% dos casos atribuídos a Influenza), a imunidade costuma ser de meses ou de um ano.
Como o SARS-COV-2 não é tão agressivo como a SARS e MERS, mas muito mais agressivo do que os outros, talvez a imunidade do novo coronavírus fique no meio do caminho. Isso talvez signifique que a imunidade deve durar pelo menos alguns meses, e talvez para algumas pessoas por mais de um ano, ou talvez até um pouco mais. Aqui é apenas achismo.
E por qual motivo a imunidade se esvai com o tempo em relação a um patógeno? Por dois motivos: 1) o patógeno teve tempo suficiente para evoluir, o que transforma a sua composição genética, e provavelmente o antígeno, fazendo com que o sistema de anticorpos do sistema imune não reconheça o novo antígeno e 2) os anticorpos produzidos contra um determinado patógeno se esvanece no decorrer do tempo, no caso SARS-COV-2 é como se o IgG fosse ficar no corpo em média por apenas 12-18 meses.
Os dois cenários não são animadores para que possamos voltar à normalidade. Em "1" o vírus irá se modificar, e irá voltar ano sim, ano não, para assolar a humanidade, fazendo com que vacinas sejam mais difíceis de serem feitas. Em "2", significa que se não houver uma vacina em 18 meses, boa parte das pessoas infectadas podem vir a ser infectadas novamente, e se a nova infecção será mais branda (como no caso da MERS) ou mais severa (como no caso da Dengue), é algo que somente o futuro poderá dizer.
Há ainda uma outra nuance, quase nunca discutida especialmente pela mídia. Anticorpos podem ser neutralizantes ou não. Bem resumidamente, já que estou longe de ser especialista nisso, anticorpos neutralizantes são aqueles que impedem a infecção de qualquer célula humana, pois se ligam ao antígeno do agente invasor, impedindo que este se ligue a qualquer receptor de uma célula saudável.
Anticorpos não-neutralizantes, por seu turno, não possuem o encaixe "perfeito" com o antígeno do agente invasor não neutralizando uma possível infecção. Para que serviria um anticorpo desse tipo? Ele funciona como um sinalizador, ao se ligar ao vírus e bactérias, para que outras células do sistema imune (Células T, Linfócitos, etc) possam então combater diretamente a infecção. Portanto, anticorpos não-neutralizantes não são inúteis, longe disso, mas eles não garantem que não possa haver uma nova infecção.
Um anticorpo neutralizante contra uma cepa do vírus da Dengue (existem quatro diferentes). O antígeno do vírus se liga ao receptor da célula, um anticorpo então impede que possa haver essa ligação, neutralizando assim qualquer ameça ao corpo.
Anticorpos não-neutralizantes não se ligam perfeitamente ao antígeno do vírus da Dengue (nesse exemplo), não neutralizando o agente invasor, fazendo com que a célula possa ser infectada
Aqui mais uma visualização. Percebam que o Anticorpo não consegue neutralizar o agente infecioso, por uma conformação espacial ou por não conseguir se ligar perfeitamente ao antígeno
Aqui uma visualização do vírus SARS-COV-2. Percebam que há o RNA viral (o filamento) dentro de uma camada de lipídio (é por isso que lavar a mão é eficaz em destruir o vírus), e na superfície há a famosa Spike Protein que se liga no receptor ACE2 de células humanas (e há receptores, muitos deles, ACE2 no pulmão, mas também no coração, intestino, por isso que esse vírus também causa problemas no coração). O anticorpo neutralizante então se ligaria na "chave" que a Spike Protein usa para acessar a célula humana via receptor ACE2.
Há um texto interessante, no contexto do vírus da Dengue (onde inclusive foram retiradas algumas imagens), sobre a diferença de anticorpos (1). Por qual motivo isso é importante? Por duas razões principais. A primeira delas é que é preciso saber se pessoas infectadas pelo SARS-COV-2 produzem anticorpos neutralizantes ou não.
Num estudo, ainda não publicado e revisado por pares, feito na China chegou a conclusão de que 25% de pessoas infectadas e "recuperadas" não produziram anticorpos neutralizantes em níveis considerados altos. E o que foi mais "intrigante" é que um pouco mais de 5% não produziram anticorpos neutralizantes em níveis detectáveis (2). É preciso ressaltar que esse estudo foi feito por meio de análise das amostras feitas em laboratório, ou seja, são muito, muito mais precisos do que esses testes rápidos de detecção de anticorpos que começam a chegar no Brasil.
Mas, como essas pessoas do estudo conseguiram se livrar da infecção sem a produção de anticorpos neutralizantes em grau adequado? Talvez, pelo auxílio do sistema imune inato, por meio de células que possuem o sugestivo nome de Natural Killers Cells. Porém, essas pessoas estão em risco de novas infecções? Conclusão do próprio estudo:
"Whether these patients were
305 at high risk of rebound or reinfection should be explored in further studies"
"Se esses pacientes estão num risco ato de resurgimento ou reinfecção deve ser explorado em estudos futuros"
Ou seja, não dá para saber, até porque ninguém vai expor essas pessoas, conscientemente, ao vírus para saber se a ausência, ou um número diminuto, de anticorpos neutralizantes, é um fator de risco para uma nova infecção ou não.
A segunda razão é porque esses testes rápidos sorológicos não medem se um anticorpo é neutralizante ou não, o que precisa ser feito num laboratório, pois é complexa, demorada e cara esse tipo de análise. Não dá para testar dezenas de milhões de pessoas, como é a ideia de algumas empresas e governos, para medir anticorpos neutralizantes.
Portanto, se uma parcela razoável de pessoas não produz anticorpos neutralizantes, e isso de alguma maneira possa ser um risco para novas infecções (o que não se sabe), um teste positivo para anticorpos não necessariamente irá conferir imunidade a essas pessoas, o que coloca ainda mais um problema em "certificados imunológicos" e aos testes rápidos.
Para um artigo leigo bem interessante sobre imunidade e coronavírus, sugiro a leitura desse artigo do NYT (3). Para um compêndio da opinião de vários especialistas sobre anticorpos neutralizantes ou não e imunidade (4).
PRIMEIRA PAUSA - O MÉTODO CIENTÍFICO PRECISA SER SEGUIDO, E ELE NÃO É TÃO RÁPIDO
A ciência, prezados leitores, possui um método para análise da realidade. Esse método não só é uma forma extraordinária de desvendar os inúmeros mistérios da realidade, mas é também um antídoto para não haver abusos ou erros pelos praticantes do método (ou seja, os cientistas).
Há método para a publicação de artigos em revistas científicas. Quanto mais prestigiosa é uma revista, pensem numa Nature, maiores são os padrões de exigência para que um estudo seja aceito. Um estudo feito por pesquisadores para ser publicado numa revista precisa passar por um processo de revisão por pares, ou peer review.
Por qual motivo um estudo precisa ser revisado pelos pares? Por que os pesquisadores do estudo não são competentes ou possam estar de má-fé? Sim, os pesquisadores podem não ser tão competentes, ou em alguns casos mais raros estarem de má-fé, mas esse não é o motivo principal. Um estudo científico, a depender do tópico, pode ser algo bem complexo. Os pesquisadores podem ter cometidos erros que nem mesmo eles perceberam. Pode haver vieses na forma de apresentação do estudo. A forma que a ciência utiliza par minimizar esses problemas é submeter um estudo científico para cientistas independentes analisarem de maneira equidistante para que possam dizer se um estudo é digno de publicação ou não.
No tópico anterior, foi citado um artigo chinês sobre anticorpos não-neutralizantes. Esse paper não foi publicado ainda e ainda não foi revisado por pares. Então, toda cautela é necessária. Em tempos de politização até mesmo de uma droga (Hidroxicloroquina), o que é algo estúpido (desculpem a palavra, mas não há outro jeito de expressar), é preciso entender que a ciência nem sempre, mesmo em tempos de pandemia, pode ser tão rápida como o público em geral queira.
Há motivos para um estudo de uma droga passar por testes em animais, depois passar por ensaios clínicos de primeira fase (segurança), segunda fase (dosagem e segurança) e terceira fase (grandes testes clínicos com centenas ou milhares de pessoas comparando com placebo). Há motivos para todo esse procedimento, o que às vezes leva meses ou anos. Há motivos para se ter todo o cuidado no desenvolvimento de uma vacina, já que as coisas podem sair errado, muito errado. Uma vacina feita para a Dengue, por exemplo, fez com que crianças vacinadas tivessem reações muito piores quando infectadas do que crianças não vacinadas, por causa de um fenômeno chamado Enhanced Imunne Response.
Portanto, prezados leitores, algumas áreas em relação a essa crise do coronavírus são incertas e permanecerão incertas por muitos meses, talvez anos, pois a ciência possui um método. Tentar apressar esse método não é algo que devemos sugerir ou pressionar, enquanto cidadãos, por mais que essa pandemia esteja causando mortes e destruição econômica. O método científico é como a institucionalidade de um país, depois que os alicerces são abalados, é difícil voltar atrás, é como a nossa ex-presidente tentou explicar na célebre frase sobre a pasta de dente.
SEGUNDA PAUSA - MUTAÇÃO DO CORONAVÍRUS - QUÃO PERIGOSA É A SITUAÇÃO - HIPER EVOLUÇÃO
Uma segunda pausa desse longo texto, relacionada à imunidade, diz
respeito à mutação do SARS-COV-2. Quem quer saber mais sobre mutações de vírus,
sugiro a leitura desse paper científico chamado "Complexities of Viral Mutation
Rates" (5). O artigo é muito técnico, eu li apenas metade dele, e foi de difícil
entendimento, não posso negar. O que entendi do artigo é que vírus RNA possuem índices
de mutação muito altos (algo em torno como de 1000 a 10000 vezes mais rápidos
do que vírus DNA) , mas coronavírus, possuem um mecanismo de reparação de erros
de cópias, o que faz com que o ritmo de mutação seja menor do que outros vírus
RNA, mas maior do que vírus DNA. Ou seja, coronavírus estão no meio termo. Do
estudo:
"The higher per-site mutation rates of RNA viruses can
be explained in part by the RNA-dependent RNA polymerases (RdRp) that replicate
their genomes. Unlike many DNA polymerases, RdRp do not have proofreading
activity and are thus unable to correct mistakes during replication. Notable
exceptions are members of the Nidovirales family, including
coronaviruses, toroviruses, and roniviruses, which have an RdRp-independent
proofreading activity and thus lower mutation rates"
"Os maiores per-site índice de mutação do RNA viral pode ser explicado em parte pela RNA-dependente RNA polymerase (RdRp) que replica seus genomas. Ao contrário de muitas DNA polymerases, RdRp não possuem "prova de leitura" atividade e são portanto incapazes de corrigir erros durante a replicação. Exceções notáveis são membros da família Nidovirales, incluindo coronavírus, torovírus e ronivírus, que possuem atividade RdRp-independente "prova de leitura" o que ocasiona um índice de mutação menor"
Sendo assim, apesar de coronavírus serem formados por RNA, eles possuem uma enzima que
ajuda a diminuir cópias defeituosas quando a replicação viral acontece. Nós
humanos, possuímos enzimas assim, para que erros não ocorram quando o DNA é
replicado. Leitores, a evolução do genoma de qualquer ser vivo só ocorre quando
há erro na replicação, seja do DNA ou RNA, ou quando uma mutação é ocasionada por um agente externo como radiação. Para que o material genético seja
diferente, ele precisa sofrer mutação, e a maior parte delas ocorre quando o
DNA, ou RNA no caso de vírus, se replicam. Aparentemente, alguns vírus não
possuem essas enzimas que ajudam a corrigir eventuais erros de replicação, o que
faz com que as mutações sejam muito maiores, pois mais erros serão cometidos na
replicação, e não haverá um mecanismo de "proofreading".
Passado
esse detalhe técnico, é preciso citar que mais mutações acontecem, quando mais
oportunidade um ser vivo ou não (há discussão se vírus é uma entidade viva ou
não) possui possibilidades de se multiplicar. Um ser humano se reproduz
pouquíssimas vezes, em 100-200 anos, apenas algumas poucas gerações de seres
humanos existem. São pouquíssimas vezes , ou seja, poucas oportunidades para
que mutações ocorram.
Um vírus, ao
contrário, em um ano talvez tenha milhares, ou dezenas de milhares, de
gerações. Logo, no tempo cronológico da evolução, o ser humano é uma tartaruga,
e um vírus é um carro de Fórmula I. Um vírus é uma entidade em constante
mudança, pois ele está sempre se replicando. Um vírus para se replicar, porém,
precisa de organismos. Talvez exista um vírus que possa ser mortal para seres
humanos em algum animal na floresta amazônica, mas se ele não infectar humanos,
pois está dentro da floresta, ele não terá oportunidades de sofrer mutações (e
esse é um dos problemas de desmatamento e do aquecimento global).
Para não ficar tão
abstrato, pense-se no vírus Ebola. Este vírus foi reconhecido na década de 60,
e desde então já houve centenas de pequenos surtos. Ele é um vírus extremamente
letal em seres humanos, mas o contágio dele não é fácil, é preciso ter contato
com os fluidos corporais de pessoas infectadas, e o vírus só infecta outras
pessoas quando as mesmas se tornam sintomáticas, e os sintomas são severos.
Logo, é bem mais fácil fazer quarentena e isolamento.
Porém, e se o vírus
do Ebola sofresse mutação e pudesse ser transmitido por vias respiratórias,
como a gripe ou o SARS-COV-2? É possível que isso ocorra? Pelo que li, alguns
virologistas acreditam que sim outros acreditam que não. Em 2014, começou um
surto imenso de Ebola em três países africanos. O mundo entrou em pânico, mas
nada aconteceu nos países mais ricos, mas os países africanos afetados sofreram
muito. Como o surto foi imenso, o vírus Ebola teve a oportunidade de infectar
muitos corpos, replicar muita vezes, e com isso oportunidades de evoluir, ou
seja modificar o seu material genético.
O especialista
Michael Osterholm, o qual já citei aqui e estou terminando o seu livro (apenas
por curiosidade, o capítulo 13 trata de uma pandemia ocasionada por uma
coronavírus), diz que esse surto de Ebola fez com que o vírus tivesse mais
contato com corpos humanos em alguns meses do que teve em centenas ou milhares
de anos, quando estava escondido provavelmente no corpo de algum primata nas
densas florestas equatoriais da África. Ele chama isso de Hiper-evolução.
Pensem agora,
prezados leitores, no Coronavírus. Talvez ela já tenha passado por dezenas de
milhares de corpos humanos, e vai passar por centenas de milhões de outros. O
que vai acontecer? Será que ele pode sofrer mutação e ficar mais letal? Mais
infecioso? Geralmente, vírus sofrem mutações e ficam mais amenos, até porque
assim conseguem infectar mais organismos. Mas absolutamente nada garante que
não se possa criar uma monstruosidade ao se dar a oportunidade desse vírus
passar por dezenas, centenas, de milhões de corpos humanos.
Isso apenas os meses irão
nos dizer o que irá acontecer. E sobre uma mutação do Ebola para ser
transmissível por vias respiratórias, Michael Osterholm diz que o vírus está
apenas algumas mutações disso ocorrer. O vírus Zica, por exemplo, que era
transmitido apenas por mosquitos, sofreu mutação e hoje em dia pode ser
transmitido por relações sexuais como o vírus HIV. Há uma família de vírus da
Influenza da gripe aviária que são extremamente mortais, com índices de
letalidade quase 50% em humanos como o H5N1 e H7N9 (6). Animais podem passar
para seres humanos, mas a transmissão humano-humano ainda é muito rara ou inexistente.
Porém, e se, esses vírus
sofrerem mutações que façam que eles possam ser transmitidos entre humanos? E se
esse vírus tiver tempo de incubação de dias ou semanas, e puder ser transmitido
enquanto a pessoa for assintomática (como o SARS-COV-2)? Talvez estamos apenas
algumas poucas mutações de um vírus que pode ocasionar uma hecatombe na
humanidade, e o COVID19 não vai ser nada comparado com uma ameça dessas.
Mutações do Sars-Cov-2. Isso pode ser acompanhado no site nextstrain (7).
ESPECIFICIDADE E SENSIBILIDADE - TEOREMA DE
BAYES
O artigo já está longo e denso, assim como o anterior que tratei sobre os "Céticos", mas antes de encerrar é preciso se aprofundar por um tema espinhoso em relação a testes, especialmente de anticorpos, em relação ao novo coronavírus.
O tema dessa seção não é fácil, e pode parecer extremamente contra-intuitivo para muitas pessoas. Eu mesmo não sei se dominei nem mesmo os fundamentos, e isso que passei algumas horas lendo e vendo vídeos a respeito.
Não existe um teste perfeito em medicina. Perfeito aqui no sentido de detectar sempre quando há uma doença, e não detectar quando a doença não está presente. Diz se sensibilidade a capacidade de um teste afirmar que uma pessoa doente realmente possui a doença. Diz-se especificidade a capacidade de um teste confirmar que uma pessoa que não possui a doença realmente não possui a doença.
Vou utilizar aqui vários gráficos retirados de um belo artigo do Peter Attia sobre o tema (8). Um exame para detectar câncer de mama pode produzir um resultado positivo verdadeiro (ou seja a pessoa possui câncer) ou um resultado positivo falso (ou seja a pessoa deu positivo no teste, mas não possui a doença).
Um exame de câncer de mama pode mostrar que uma pessoa sem doença não possui câncer de mama gerando um verdadeiro negativo, mas o teste pode apontar que a pessoa tem a doença quando na verdade a mesma não a possui gerando um falso negativo.
A sensibilidade de um exame é dada somando o número de casos verdadeiramente positivos, dividido pelo número de verdadeiramente positivo mais falsos negativos. A especificidade, por seu turno, é determinada pelo número de negativos verdadeiros, dividido pelo número de verdadeiros negativos mais falsos positivos.
1000 mulheres que possuem câncer de mama fazem uma mamografia, 840 testam positivos (positivo verdadeiro) e 160 testam negativo (falso negativo), gerando uma sensibilidade no teste de 84%
1000 mulheres que não possuem câncer de mama fazem mamografia, 910 delas são corretamente detectadas sem câncer (um negativo verdadeiro) e 90 são detectadas com câncer (falso positivos), gerando uma especificidade do exame de 91%.
No mundo ideal, um exame seria 100% específico e 100% sensível, ou seja seria um teste perfeito, ele corretamente diria quem possui a doença e quem não possui a doença sem qualquer erro. Entretanto, o mundo ideal é isso uma "ideia", na realidade não existe um teste assim. Na verdade, quanto mais específico é um teste, menos sensível ele é. Quanto mais sensível é um teste, menos específico ele é.
Há uma troca entre especificidade e sensibilidade.
Mas por qual motivo há essa troca entre sensibilidade e especificidade? Por uma razão simples. Se numa mamografia, para ficar no exemplo do Peter Attia, tiver como linha de corte a detecção de tumores de menos de 1 milímetro, ele pode ser muito sensível, captando cânceres muito iniciais. Porém, com tumores tão pequenos, é possível que se gere falsos alarmes de pessoas que não possuem a doença. Se a mamografia for calibrada para captar apenas tumores acima de cinco centímetros (e isso já seria um tumor enorme), esse exame teria uma especificidade enorme, pois poucas pessoas seriam falsamente diagnosticadas com a doença, mas a sensibilidade do mesmo seria diminuída pois haveria muito falsos negativos.
Especificidade, sensibilidade, falso negativo, verdadeiro positivo, sim eu sei prezado leitor, é contra-intuitivo mesmo. Porém, a coisa fica ainda mais difícil quando colocamos o conceito de Valor Positivo Preditivo e Valor Negativo Preditivo, e aqui não adianta, é preciso conhecer nem que seja um pouco Teorema de Bayes.
Eu sugiro enormemente o seguinte vídeo, que talvez que não esteja acostumado precisará ver mais de uma vez:
O vídeo é muito bom, o rapaz tem uma didática fantástica.
Eu não sou matemático ou estatístico, e posso estar falando bobagem. Porém, o Teorema de Bayes tenta responder a questão se há diferença de probabilidades quando novas informações vão sendo adicionadas ao sistema. Vejam essas duas proposições: a) Testei Positivo para exame de AIDS, logo possuo o vírus no meu organismo; b) Tenho o vírus positivo no meu organismo, logo vou testar positivo para HIV.
As proposições acima podem parecer idênticas, mas elas são fundamentalmente diversas. O exemplo "b" nada mais é do que a sensibilidade do exame, a capacidade de um teste apontar que uma pessoa infectada pelo HIV realmente dê positivo. Se a sensibilidade do exame for 95%, uma pessoa com HIV possui 95% de chance de ser diagnosticada com a doença.
E qual é a probabilidade de uma pessoa com um teste positivo para HIV realmente estar infectada pelo vírus? Será que é 95%? Não, não é, pode ser muito menos, e isso é o poder preditivo positivo e porque o Teorema de Bayes é tão importante no diagnóstico médico.
Sempre fui afastado desse teorema, pois meu conhecimento matemático é limitado. O primeiro que me chamou a atenção para ele foi Taleb numa nota de rodapé do seu livro "A Lógica do Cisne Negro". Sem ele, fica difícil entender exames médicos, e mais importante se a saída para a crise do coronavírus por meio de testes de anticorpos faz sentido ou não, se é segura ou não.
A resposta a pergunta feita no parágrafo anterior depende de uma informação crucial: qual é a incidência do vírus HIV na população. Se a incidência de HIV numa população for de 1%, um teste positivo de HIV com sensibilidade de 95%, produz um poder preditivo positivo de apenas aproximadamente 16%.
Isso quer dizer que se alguém receber um teste positivo para HIV que possui 95% de sensibilidade e especificidade numa prevalência de 1% (ou seja a quantidade da população que possui esse vírus), ele tem uma chance de apenas 16% de realmente possuir a doença. Se ele fizer um segundo teste, e esse teste voltar positivo, ele possui uma chance de aproximadamente 75% de ter a doença (sim, depois de dois testes positivos ele tem uma chance em quatro de não ter HIV).
Eu não preciso dizer o quanto isso é estranho e não-intuitivo, mas é assim que a realidade funciona, e entender o Teorema de Bayes é essencial para melhor entender a realidade, especialmente probabilidade, para assim tomar melhor decisões sob incerteza. Eu talvez tenha entendido 1% desse teorema.
Ter AIDS e por isso ser diagnosticado positivo num teste é diferente de ser diagnosticado positivo e por isso ter AIDS. Assim como não ter AIDS e por isso ser diagnosticado negativo num teste é diferente de ter sido diagnosticado negativo para a doença e por isso não ser infectado. Teorema de Bayes. É por isso que um exame positivo para HIV necessariamente deve ser repetido, e eu só vim a aprender isso algumas semanas atrás.
TESTES DE ANTICORPOS - UM POSSÍVEL GRANDE PERIGO E ARMADILHA
Prezados leitores, a situação é a mesma para testes relacionados ao SARS-COV-2. Fui infectado e por isso vou apresentar um exame de anticorpos é diferente de possuo um exame positivo de anticorpos e por isso fui infectado. O que se quer com os testes sorológicos não é saber se um infectado possui anticorpos, mas sim se alguém que apareceu positivo para anticorpos foi ou não infectado.
A ideia por trás de uma "carteira de imunidade" é que se alguém apresenta IgG contra o SARS-COV-2, por exemplo isso significa que a pessoa foi infectada, o organismo se recuperou, e pelo menos por alguns meses essa pessoa teria imunidade, baixíssima probabilidade de ser infectada e poderia voltar ao trabalho ou à normalidade de sua vida (se é que isso é possível).
O pressuposto central dessa ideia é que um exame que teste positivo para anticorpos signifique que a pessoa realmente foi infectada. Porém, já vimos que testar positivo para algo e ter esse algo é diferente de ter algo e testar positivo para esse mesmo algo. Sendo assim, é imperioso saber a sensibilidade, e especialmente a especificidade desses testes rápidos, bem como a prevalência da infecção na população.
Em ambientes de baixa prevalência, quanto maior a especificidade de um exame maior o poder positivo preditivo. Quanto maior a prevalência, maior o poder preditivo negativo se o exame possui uma sensibilidade maior.
O Dr. Peter Attia tem um vídeo de 10 minutos que trata bem detalhadamente sobre especificidade e sensibilidade em contextos de baixa ou alta prevalência. E para o caso do COVID19 o que seria baixa ou alta prevalência? É a quantidade de pessoas que realmente já foi infectada.
Se apenas 1% da população brasileira foi infectada, isso significa que 2 milhões de pessoas já foram expostas. Para se ter ideia, a Fundação Fiocruz há uns 10 dias soltou uma análise que o índice de subnotificação do COVID19 no Brasil estava ocorrendo por um fator de 15, sendo assim para os 60 mil casos reportados até 26/04, na verdade haveria 900 mil infectados, ou seja menos de 0.5% da população. No caso brasileiro, parece claro que a incidência tende a ser baixa, a não ser é claro que o "Modelo Oxford" esteja mais correto do que errado, e quantidades imensas de brasileiros já foram infectados e nada sentiram.
Excelente vídeo e explicação sobre sensibilidade, especificidade e como a prevalência altera o poder preditivo negativo e positivo de um teste
O Peter Attia também disponibilizou uma planilha (que pode ser baixada no artigo indicado na nota 8), onde vários cenários podem ser simulados em relação à sensibilidade, especificidade e incidência da condição na população. Um teste com 100% de especificidade e 85% de sensibilidade numa população de infectados de 1%, por exemplo, significa que uma pessoa aleatória que testar positivo, tem aproximadamente 100% de chance de ter sido infectado.
Se o teste ao invés de 100% tiver 99% de especificidade, isso significa que uma pessoa que apresenta positivo pra anticorpos no teste tem uma possibilidade de menos de 50% de ter sido infectada. Sim, uma queda de apenas 1% na especificidade do teste faz com o valor preditivo positivo seja diminuído sensivelmente. E se a especificidade for de 94% (o que aparenta ser um bom número)? O valor positivo preditivo cai para quase 10%. Sim, você não leu errado. Se um funcionário de uma empresa for testado, e partindo do pressuposto que ele está assintomático, para um teste rápido com 94% de especificidade e 85% de sensibilidade (um teste longe de ser ruim nesses requisitos), ele vai ter 9 chances em dez de não ter sido infectado.
Deixa eu repetir novamente. Se alguém apresentar um teste positivo para anticorpos com 94% de especificidade e 85% de sensibilidade, a probabilidade dele realmente ter sido infectado é de aproximadamente 10%, Se uma "carteira de imunidade" for fornecida a ele, será um erro terrível, pois ele muito provavelmente não terá qualquer imunidade, e por causa disso pode ter condutas não compatíveis com medidas de segurança. Um teste nessas condições aplicado isoladamente é basicamente inútil, ou no pior dos cenários perigoso. A única solução seria repetir o teste várias vezes nessa pessoa, e se dois ou três testes derem positivo em sequência, pode-se ter uma certeza bem maior que ele realmente foi infectado.
A melhor forma de ganhar alguma afinidade com esses conceitos, é simplesmente ficar mexendo na planilha indicada no artigo (8) que é de fácil manuseio.
Portanto, se o objetivo é criar passaportes de imunidade, então os testes precisam ser muito bons, com especificidade próxima de 100%, sob pena se assim não o for, de causar enormes mal entendidos que vai ser difícil explicar para a população, e pode atrapalhar planos de reabertura da economia.
O mercado vai ser inundado por dezenas de milhões de testes com qualidade muito diversa um do outro. Teste para detecção de anticorpos podem ter duas técnicas de análise. Uma chamada ELISA (Enzyme-Linked Immunosorbent Assay) e outra chamada LFI (Lateral Flow Immunoassays) . Aquela é uma técnica que depende de análise laboratorial, e demora algumas horas para ficar pronto o resultado, esta é um exame mais simples que pode ser feito sem necessidade de exame de um laboratório com resultado em alguns minutos. Por tudo que eu li a técnica ELISA produz testes mais precisos, mas os milhões de testes que chegarão no Brasil com quase toda certeza serão a maioria LFI. Diversos testes foram analisados num paper ainda não publicado, e os testes ELISA foram muito melhores do que exames LFI (9).
Eu espero, sinceramente, que as autoridades públicas no Brasil, nos seus planejamento de contenção da epidemia e reabertura do comércio, estejam bem assessoradas por estatísticos e epidemiologistas sobre o problema da confiança "cega" nesses testes, e que aqui no Brasil haja investigação rigorosa sobre a qualidade de todos os testes importados. Para se ter ideia, há 160 empresas com testes a venda no mercado, o FDA autorizou apenas 4 para utilização nos EUA.
É isso, leitores, o artigo ficou extenso e técnico, os próximos serão mais amenos.
Um abraço a todos!
(5) https://jvi.asm.org/content/92/14/e01031-17
(7) https://nextstrain.org/help/coronavirus/human-CoV
(8) https://peterattiamd.com/how-to-interpret-screening-tests-video-spreadsheet-and-primer/
(9) https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.04.09.20056325v1.full.pdf ( paper ainda não publicado analisando diversos testes de anticorpos)
(9) https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.04.09.20056325v1.full.pdf ( paper ainda não publicado analisando diversos testes de anticorpos)