segunda-feira, 27 de abril de 2020

CORONAVÍRUS - PARTE VIII - TESTES E IMUNIDADE


        Se você não leu as outras partes da presente série, sugiro a leitura a começar pela primeira parte

TESTING, TESTING, TESTING


     Esse é o mantra entoado em vários lugares do mundo. Ao menos nos países onde a crise está sendo travada de maneira séria, já que a crise COVID19 é uma grande ameaça de saúde pública e por via de consequência da estabilidade econômica de sociedades inteiras. Não sei se aplica ao Brasil que aparentemente escolheu mergulhar numa crise política talvez até maior do que a do governo Collor no meio de uma pandemia. 

       Mas, tirante nosso querido país, a comunidade internacional, os especialistas, os palpiteiros todos falam da necessidade de testar e testar para saber quem está infectado ou possa já ter sido infectado. A lógica por trás dessa forma de pensar é que apenas com dados de uma testagem feita em massa é possível saber, e de alguma maneira tentar controlar, o desenvolvimento da epidemia.

      Mas, como são feitos esses teses?  Quais são os tipos de testes? Basta sair testando todo mundo? Os testes são confiáveis? São essas perguntas que espero trazer ao menos alguma luz no presente artigo.


OS DOIS TIPOS DE TESTES

I - RT-PCR

       O teste RT-PCR é uma abreviação para reverse-transcriptase polymerase chain reaction. O nome é extenso e à primeira vista complexo. Esse tipo de teste tem como objetivo encontrar o próprio vírus ou fragmentos dele.  Antes de mais nada, o material genético de quase todos os seres vivos reside em estruturas chamadas DNA, ou no caso de alguns vírus RNA.

      É um teste relativamente complexo. Primeiramente, se coleta o material, geralmente do nariz ou da garganta, de uma pessoa e a amostra é enviada a um laboratório. No laboratório, são utilizados elementos químicos para remover qualquer proteína, gordura, ou qualquer elemento que possa estar presente na amostra, deixando apenas o DNA da pessoa e o RNA viral.

      É usado uma enzima então para converter o RNA viral em DNA (por isso o nome reverse transcriptase). Depois disso, com o uso de outra enzima, e por processos sucessivos de aquecimento e esfriamento, são produzidos dezenas de bilhões de moléculas de DNA viral para cada RNA viral (daí o nome Polymerase Chain Reaction). Depois disso são enviadas "sondas" fluorescentes para que se acoplem em regiões específicas do genoma viral, a depender da fluorescência da amostra pode-se dizer se há material genético viral ou não.

         O processo não é simples, precisa de pessoas especializadas, precisa de vários reagentes (as enzimas), e não é esse teste que virá aos milhões ao Brasil. Além de não termos capacidade de analisar centenas de milhares de testes desses por dia, pois não temos capacidade humana diferente, não há reagentes. A China produz quase todos os reagentes para esse teste, e nem mesmo os EUA estão conseguindo aumentar a testagem para números que vários especialistas dizem ser necessários. 

         Para se ter ideia, há planos de reabertura da economia baseados na possibilidade dos EUA realizar 10 milhões de testes por semana. Atualmente, os EUA estão realizando 1 milhão de testes e já ouvi especialistas, inclusive o Dr. Michael Osterholm dizer que com muito esforço os EUA em alguns meses podem chegar a 3 milhões de testes por semana.

        O Brasil não chegará nem perto de milhões de testes por semana, talvez nem mesmo centenas de milhares de testes por semana. O Brasil baseará a sua estratégia provavelmente apenas em testes rápidos sorológicos que possuem a sua finalidade, mas para o controle de uma epidemia, para localização de infectados sintomáticos, assintomáticos ou pré-sintomáticos, o exame a ser realizado é o RT-PCR, não um exame de anticorpos. 

         O PCR é o único exame que detecta a carga viral de um indivíduo. Apenas com ele autoridades de saúde podem detectar indivíduos, isolá-los, testar os contatos imediatos e planejar uma saída organizada para essa crise. O Brasil nesse quesito, ao contrário de países como Alemanha e Coréia do Sul, provavelmente voará no escuro nesse quesito.
       
É preciso várias enzimas (reagentes) para realizar um teste RT-PCR e os resultados geralmente ficam prontos apenas depois de de 6-8 horas (isso quando há força laboratorial, porque senão pode demorar vários dias, como está acontecendo em vários lugares no Brasil, onde as pessoas estão morrendo sem o teste ter voltado o resultado

             Assim, como a chance disso tudo não ser uma grande tragédia no Brasil depende do "Modelo Oxford" estar mais certo do que errado, a nossa "volta à normalidade" depende de surgir algum teste no mercado com boa sensibilidade e especificidade que seja barato, seja simples, não dependa de muitos reagentes, e possa detectar a carga viral. Esse teste ainda não existe, mas talvez venha a existir nos próximos meses. Nos resta torcer.


II – TESTES SOROLÓGICOS – DETECÇÃO DE ANTICORPOS


       Não quero fazer esse texto uma “aula” de biologia porque a) eu não vou fingir que tenho um grande conhecimento nessa área, pois não possuo, e b) não seria nem o objetivo desse artigo e imagino da maioria dos leitores. Porém, apesar dos dois motivos elencados, uma brevíssima explicação sobre o sistema imunológico é preciso ser feita.

          O corpo humano possui basicamente dois sistemas de defesa: o sistema imune inato e o sistema imune adaptativo. Inato é aquele que possuímos simplesmente por sermos humanos, é o que a evolução nos legou depois de milhões e milhões de anos. O adaptativo é aquele que a própria pessoa vai construindo ao longo da sua experiência de vida nesse mundo.  Quando um bebê nasce, ele precisa ter alguma resposta inata, ou seja,  pronta para que possua alguma defesa em relação a um patógeno invasor.  Se o sistema imune inato humano não existisse, aqui apenas especulo, dificilmente nossa espécie existiria, pois seria muito difícil bebês sobreviverem aos seus primeiros meses de vida.

        Por outro lado, no decorrer de nossa existência, nós somos submetidos a uma gama enorme de bactérias, vírus, protozoários, e nosso sistema imune precisa de alguma maneira responder a esses invasores, e uma das formas é o sistema imune adaptativo, a parte da nossa defesa imunológica que evolui no decorrer da vida de um ser humano.  Um dos mecanismos do sistema imune adaptativo é a produção de anticorpos por células específicas chamadas plasma cells (ou plasmócitos). 

        Para cada bactéria ou vírus nosso corpo produz um anticorpo específico para o patógeno específico. Se você, prezado leitor, já teve catapora, ou foi vacinado, o seu corpo terá a "memória" dessa infecção, e se por ventura algum vírus varicela (causador da catapora) entrar em seu corpo, o seu sistema imune adaptativo imediatamente começara a produzir anticorpos específicos para o vírus da catapora, impedindo que haja uma nova infecção. A proteção contra catapora é uma proteção de longa duração, e para a esmagadora maioria das pessoas dura a vida inteira.

         Porém, como o organismo do leitor conseguiria produzir tão rapidamente um anticorpo específico contra o vírus causador da catapora? Essa é uma pergunta bem interessante, e até algumas semanas atrás eu nunca tinha parado para pensar nisso. Nosso organismo consegue produzir anticorpos tão rapidamente, pois nosso organismo consegue reconhecer antígenos no agente invasor.

         Antígenos nada mais são do que proteínas ou açúcares que existem na superfície de bactérias ou vírus. Os anticorpos conseguem identificar esses antígenos, e quando um é reconhecido, diversos processos de defesa, como o aumento da produção de um anticorpo específico que detecta ou neutraliza aquele antígeno específico, é iniciado.



Seja apresentado a um Anticorpo, prezado leitor. Onde está escrito "local de ligação ao antígeno" é na verdade uma forma variável. Ou seja, a depender do antígeno há uma conformação própria dessa seção.

Uma representação gráfica de um anticorpo se ligando a um antígeno específico

      Existem cinco tipos de anticorpos chamados também de Imunoglobulinas IgG, IgM, IgA, IgE e IgD. Cada um deles tem uma função diversa, mas os mais "importantes" tendem a ser IgM que é uma primeira linha de defesa do organismo, e o IgG que é envolvido numa segunda fase de combate do sistema imune ao patógeno invasor.  Apenas como curiosidade, o IgA é presente em fluidos humanos, um deles o leite materno. Ou seja, a mãe passa para o filho que amamenta um pouco dos seus anticorpos. Eu não sabia desse fato até pouco tempo atrás. Talvez, entre outros motivos, crianças que amamentam até os dois anos tendem a ter sistemas imunes muito mais fortes do que crianças que foram pouco amamentadas. E no Brasil se amamenta pouco, o que é um grande problema que poucas pessoas falam.

          Sendo assim, é esperado que as pessoas que se recuperam do SARS-COV-2 produzam anticorpos contra esse invasor, mas precisamente contra o antígeno da Spike Protein que se liga ao receptor ACE2 nas células humanas. Por que se espera isso? Se uma pessoa se livra de uma infecção, presume-se que ela produziu anticorpos contra o agente causador. Há outras formas de defesa do organismo, inclusive o sistema inato, mas a defesa contra invasores patogênicos é muito influenciada pela atuação de anticorpos específicos contra o antígeno do invasor.

         É basicamente isso que os testes de anticorpos querem medir: a existência ou não de anticorpos contra o antígeno específico do SARS-COV-2. Isso é importante entender. Ao contrário do exame RT-PCR que mede se o organismo possui o vírus, o exame de anticorpos não mede a existência de vírus, mas sim se o organismo produziu defesas contra o vírus, ou seja, é uma medida "indireta" de uma infecção passada.

        Como dito alguns parágrafos acima, o anticorpo IgM é produzido numa primeira fase de defesa e o IgG numa fase posterior. Portanto, quanto mais recente for uma infecção, mais provável que haja IgM circulando no plasma e pouco IgG. Quanto mais distante uma infecção, mais provável que haja muito mais IgG do que IgM. 

      Essa é uma representação do que ocorre com o nosso corpo em relação a produção de anticorpos contra um antígeno onde haja imunidade por vários anos (como contra o vírus da catapora). Há a infecção, e numa primeira fase ocorre a produção de IgM. A produção de IgG acontece numa segunda fase de resposta do organismo. Se, por ventura, anos depois houver uma novo contato contra o antígeno do vírus, a resposta imunológica, especialmente do IgG é muito mais rápida e vigorosa.

       Sendo assim, os testes rápidos para ver a existência de anticorpos contra o SARS-COV-2 medem se o sangue coletado possui anticorpos contra o antígeno específico do novo vírus. Basicamente, dos testes rápidos que já olhei, basta colocar um pouco de sangue num aparelho. Uma linha chamada C (controle) deve acender, e há duas outras linhas que podem ou não acender : uma para IgM e outra para IgG. Se aparecer uma linha, significa que a pessoa possui anticorpos IgM ou IgG ou os dois.


No primeiro caso, apenas a linha C (controle) acende, anticorpos não são detectados. No segundo, apenas anticorpos IgG são detectados, sugerindo que a pessoa foi infectada já há pelo menos algumas semanas. No terceiro, apenas o IgM aparece significando que há uma infecção em curso, já que apenas o primeiro tipo de anticorpo da linha de defesa foi detectado. Na quarta, os dois anticorpos são encontrados, querendo dizer que pode haver uma infecção em curso, mas a mesma já está sendo quase que debelada.


            Portanto, esse é o panorama geral do racional por trás de testes de anticorpos. Por qual motivo eles podem vir a ser extremamente importantes? Há dois motivos de extrema relevância. O primeiro, do ponto de vista epidemiológico e de conhecimento da nova doença, é saber quantas pessoas podem já ter sido infectadas e que não se submeteram a um teste de RT-PCR, seja porque não havia testes, seja porque as mesmas foram infectadas, mas permaneceram assintomáticas ou com sintomas muito leves. 

     Se muitas pessoas já foram infectadas e não sentiram nada, ou pouca coisa, isso significa que o IFR (Infection Fatality Rate - Índice de Fatalidade da Infecção) é muito menor do que o CFR (Case Fatality Rate - Índice de Fatalidade dos casos reportados), o que seria um alívio enorme para boa parte da humanidade. Na verdade, quanto mais o IFR se dissociar do CFR mais o "Modelo Oxford" estaria correto, conforme já tratado diversas vezes aqui nessa séria, especialmente na Parte VII - Os Céticos.

       Em segundo lugar, do ponto de vista individual, uma pessoa que apresentar anticorpos contra o SARS-COV-2, em teoria (mais disso na próxima seção), teria imunidade contra a doença e assim poderia voltar a trabalhar ou a um mínimo de normalidade. Há países que semanas atrás inclusive começaram a discutir "certificados de imunidade", ou seja, algum documento que ateste que a pessoa estaria imune à doença, pois anticorpos teriam sido identificados por meio de um teste sorológico. 

      Logo, a esperança depositada nesses testes, para amenizar os problemas econômicos, e para que se possam fazer planos para uma volta "a normalidade", é enorme, e por isso é preciso analisar, ir a fundo, em conceitos que talvez nem médicos que analisam exames de saúde conheçam tão bem.


ALGUMAS QUESTÕES SOBRE IMUNIDADE E ANTICORPOS


          Antes de se falar sobre a precisão de testes, especialmente os de anticorpos, é preciso comentar sobre algumas questões ainda sem resposta pelo mundo científico. A primeira, e mais óbvia, é se ter anticorpos contra antígenos do SARS-COV-2 induziria imunidade. Ou seja, se alguém foi infectado, essa pessoa pode ou não ser infectada novamente? Se a pessoa tem imunidade, por quanto tempo ela duraria?

        Ninguém sabe dizer ao certo a resposta a essas duas perguntas, mas a presença de anticorpos costuma significar que a pessoa está imune. Por quanto tempo? Essa é muito mais difícil de responder, já que só o tempo pode dizer por quanto tempo uma imunidade pode durar. 

        Para a catapora, por exemplo, costuma ser para a vida inteira. Para infecções pelo vírus da Influenza (gripe) costuma ser de alguns meses. Para os dois Coronavírus mais agressivos (SARS e MERS), há estudos mostrando que a imunidade dura pelo menos de 1 a 2 anos, e quando há uma nova infecção, a mesma é  mais amena. Para outros coronavírus (229E, NL63, OC43 e HKU1) que são muito menos agressivos (estima-se que eles são responsáveis por 30-35% dos casos atribuídos a Influenza), a imunidade costuma ser de meses ou de um ano. 

    Como o SARS-COV-2 não é tão agressivo como a SARS e MERS, mas muito mais agressivo do que os outros, talvez a imunidade do novo coronavírus fique no meio do caminho. Isso talvez signifique que a imunidade deve durar pelo menos alguns meses, e talvez para algumas pessoas por mais de um ano, ou talvez até um pouco mais. Aqui é apenas achismo.

       E por qual motivo a imunidade se esvai com o tempo em relação a um patógeno? Por dois motivos: 1) o patógeno teve tempo suficiente para evoluir, o que transforma a sua composição genética, e provavelmente o antígeno, fazendo com que o sistema de anticorpos do sistema imune não reconheça o novo antígeno e 2) os anticorpos produzidos contra um determinado patógeno se esvanece no decorrer do tempo, no caso SARS-COV-2 é como se o IgG fosse ficar no corpo em média por apenas 12-18 meses.

      Os dois cenários não são animadores para que possamos voltar à normalidade. Em "1" o vírus irá se modificar, e irá voltar ano sim, ano não, para assolar a humanidade, fazendo com que vacinas sejam mais difíceis de serem feitas. Em "2", significa que se não houver uma vacina em 18 meses, boa parte das pessoas infectadas podem vir a ser infectadas novamente, e se a nova infecção será mais branda (como no caso da MERS) ou mais severa (como no caso da Dengue), é algo que somente o futuro poderá dizer.

    Há ainda uma outra nuance, quase nunca discutida especialmente pela mídia. Anticorpos podem ser neutralizantes ou não. Bem resumidamente, já que estou longe de ser especialista nisso, anticorpos neutralizantes são aqueles que impedem a infecção de qualquer célula humana, pois se ligam ao antígeno do agente invasor, impedindo que este se ligue a qualquer receptor de uma célula saudável.  

  Anticorpos não-neutralizantes, por seu turno, não possuem o encaixe "perfeito" com o antígeno do agente invasor não neutralizando uma possível infecção. Para que serviria um anticorpo desse tipo? Ele funciona como um sinalizador, ao se ligar ao vírus e bactérias, para que outras células do sistema imune (Células T, Linfócitos, etc) possam então combater diretamente a infecção. Portanto, anticorpos não-neutralizantes não são inúteis, longe disso, mas eles não garantem que não possa haver uma nova infecção.

Um anticorpo neutralizante contra uma cepa do vírus da Dengue (existem quatro diferentes). O antígeno do vírus se liga ao receptor da célula, um anticorpo então impede que possa haver essa ligação, neutralizando assim qualquer ameça ao corpo.

Anticorpos não-neutralizantes não se ligam perfeitamente ao antígeno do vírus da Dengue (nesse exemplo), não neutralizando o agente invasor, fazendo com que a célula possa ser infectada

Aqui mais uma visualização. Percebam que o Anticorpo não consegue neutralizar o agente infecioso, por uma conformação espacial ou por não conseguir se ligar perfeitamente ao antígeno


Aqui uma visualização do vírus SARS-COV-2. Percebam que há o RNA viral (o filamento) dentro de uma camada de lipídio (é por isso que lavar a mão é eficaz em destruir o vírus), e na superfície há a famosa Spike Protein que se liga no receptor ACE2 de células humanas (e há receptores, muitos deles, ACE2 no pulmão, mas também no coração, intestino, por isso que esse vírus também causa problemas no coração). O anticorpo neutralizante então se ligaria na "chave" que a Spike Protein usa para acessar a célula humana via receptor ACE2.



         Há um texto interessante, no contexto do vírus da Dengue (onde inclusive foram retiradas algumas imagens), sobre a diferença de anticorpos (1). Por qual motivo isso é importante? Por duas razões principais. A primeira delas é que é preciso saber se pessoas infectadas pelo SARS-COV-2 produzem anticorpos neutralizantes ou não. 

    Num estudo, ainda não publicado e revisado por pares, feito na China chegou a conclusão de que 25% de pessoas infectadas e "recuperadas" não produziram anticorpos neutralizantes em níveis considerados altos. E o que foi mais "intrigante" é que um pouco mais de 5% não produziram anticorpos neutralizantes em níveis detectáveis (2). É preciso ressaltar que esse estudo foi feito por meio de análise das amostras feitas em laboratório, ou seja, são muito, muito mais precisos do que esses testes rápidos de detecção de anticorpos que começam a chegar no Brasil.

         Mas, como essas pessoas do estudo conseguiram se livrar da infecção sem a produção de anticorpos neutralizantes em grau adequado? Talvez, pelo auxílio do sistema imune inato, por meio de células que possuem o sugestivo nome de Natural Killers Cells. Porém, essas pessoas estão em risco de novas infecções? Conclusão do próprio estudo:


"Whether these patients were 305 at high risk of rebound or reinfection should be explored in further studies"
"Se esses pacientes estão num risco ato de resurgimento ou reinfecção deve ser explorado em estudos futuros"

            
          Ou seja, não dá para saber, até porque ninguém vai expor essas pessoas, conscientemente, ao vírus para saber se a ausência, ou um número diminuto, de anticorpos neutralizantes, é um fator de risco para uma nova infecção ou não.

        A segunda razão é porque esses testes rápidos sorológicos não medem se um anticorpo é neutralizante ou não, o que precisa ser feito num laboratório, pois é complexa, demorada e cara esse tipo de análise. Não dá para testar dezenas de milhões de pessoas, como é a ideia de algumas empresas e governos, para medir anticorpos neutralizantes. 

  Portanto, se uma parcela razoável de pessoas não produz anticorpos neutralizantes, e isso de alguma maneira possa ser um risco para novas infecções (o que não se sabe), um teste positivo para anticorpos não necessariamente irá conferir imunidade a essas pessoas, o que coloca ainda mais um problema em "certificados imunológicos" e aos testes rápidos.

        Para um artigo leigo bem interessante sobre imunidade e coronavírus, sugiro a leitura desse artigo do NYT (3).  Para um compêndio da opinião de vários especialistas sobre anticorpos neutralizantes ou não e imunidade (4). 


PRIMEIRA PAUSA - O MÉTODO CIENTÍFICO PRECISA SER SEGUIDO, E ELE NÃO É TÃO RÁPIDO


       A ciência, prezados leitores, possui um método para análise da realidade. Esse método não só é uma forma extraordinária de desvendar os inúmeros mistérios da realidade, mas é também um antídoto para não haver abusos ou erros pelos praticantes do método (ou seja, os cientistas). 

   Há método para a publicação de artigos em revistas científicas. Quanto mais prestigiosa é uma revista, pensem numa Nature, maiores são os padrões de exigência para que um estudo seja aceito. Um estudo feito por pesquisadores para ser publicado numa revista precisa passar por um processo de revisão por pares, ou peer review. 

      Por qual motivo um estudo precisa ser revisado pelos pares? Por que os pesquisadores do estudo não são competentes ou possam estar de má-fé? Sim, os pesquisadores podem não ser tão competentes, ou em alguns casos mais raros estarem de má-fé, mas esse não é o motivo principal. Um estudo científico, a depender do tópico, pode ser algo bem complexo. Os pesquisadores podem ter cometidos erros que nem mesmo eles perceberam. Pode haver vieses na forma de apresentação do estudo. A forma que a ciência utiliza par minimizar esses problemas é submeter um estudo científico para cientistas independentes analisarem de maneira equidistante para que possam dizer se um estudo é digno de publicação ou não. 

       No tópico anterior, foi citado um artigo chinês sobre anticorpos não-neutralizantes. Esse paper não foi publicado ainda e ainda não foi revisado por pares. Então, toda cautela é necessária. Em tempos de politização até mesmo de uma droga (Hidroxicloroquina), o que é algo estúpido (desculpem a palavra, mas não há outro jeito de expressar), é preciso entender que a ciência nem sempre, mesmo em tempos de pandemia, pode ser tão rápida como o público em geral queira. 

      Há motivos para um estudo de uma droga passar por testes em animais, depois passar por ensaios clínicos de primeira fase (segurança), segunda fase (dosagem e segurança) e terceira fase (grandes testes clínicos com centenas ou milhares de pessoas comparando com placebo). Há motivos para todo esse procedimento, o que às vezes leva meses ou anos. Há motivos para se ter todo o cuidado no desenvolvimento de uma vacina, já que as coisas podem sair errado, muito errado. Uma vacina feita para a Dengue, por exemplo, fez com que crianças vacinadas tivessem reações muito piores quando infectadas do que crianças não vacinadas, por causa de um fenômeno chamado Enhanced Imunne Response.

       Portanto, prezados leitores, algumas áreas em relação a essa crise do coronavírus são incertas e permanecerão incertas por muitos meses, talvez anos, pois a ciência possui um método. Tentar apressar esse método não é algo que devemos sugerir ou pressionar, enquanto cidadãos, por mais que essa pandemia esteja causando mortes e destruição econômica. O método científico é como a institucionalidade de um país, depois que os alicerces são abalados, é difícil voltar atrás, é como a nossa ex-presidente tentou explicar na célebre frase sobre a pasta de dente.


SEGUNDA PAUSA - MUTAÇÃO DO CORONAVÍRUS - QUÃO PERIGOSA É A SITUAÇÃO - HIPER EVOLUÇÃO


       Uma segunda pausa desse longo texto, relacionada à imunidade, diz respeito à mutação do SARS-COV-2. Quem quer saber mais sobre mutações de vírus, sugiro a leitura desse paper científico chamado "Complexities of Viral Mutation Rates" (5). O artigo é muito técnico, eu li apenas metade dele, e foi de difícil entendimento, não posso negar. O que entendi do artigo é que vírus RNA possuem índices de mutação muito altos (algo em torno como de 1000 a 10000 vezes mais rápidos do que vírus DNA) , mas coronavírus, possuem um mecanismo de reparação de erros de cópias, o que faz com que o ritmo de mutação seja menor do que outros vírus RNA, mas maior do que vírus DNA. Ou seja, coronavírus estão no meio termo. Do estudo:

"The higher per-site mutation rates of RNA viruses can be explained in part by the RNA-dependent RNA polymerases (RdRp) that replicate their genomes. Unlike many DNA polymerases, RdRp do not have proofreading activity and are thus unable to correct mistakes during replication. Notable exceptions are members of the Nidovirales family, including coronaviruses, toroviruses, and roniviruses, which have an RdRp-independent proofreading activity and thus lower mutation rates"
"Os maiores per-site índice de mutação do RNA viral pode ser explicado em parte pela RNA-dependente RNA polymerase (RdRp) que replica seus genomas. Ao contrário de muitas DNA polymerases, RdRp não possuem "prova de leitura" atividade e são portanto incapazes de corrigir erros durante a replicação. Exceções notáveis são membros da família Nidovirales, incluindo coronavírus, torovírus e ronivírus, que possuem atividade RdRp-independente "prova de leitura" o que ocasiona um índice de mutação menor"


       
      Sendo assim, apesar de coronavírus serem formados por RNA, eles possuem uma enzima que ajuda a diminuir cópias defeituosas quando a replicação viral acontece. Nós humanos, possuímos enzimas assim, para que erros não ocorram quando o DNA é replicado. Leitores, a evolução do genoma de qualquer ser vivo só ocorre quando há erro na replicação, seja do DNA ou RNA, ou quando uma mutação é ocasionada por um agente externo como radiação. Para que o material genético seja diferente, ele precisa sofrer mutação, e a maior parte delas ocorre quando o DNA, ou RNA no caso de vírus, se replicam. Aparentemente, alguns vírus não possuem essas enzimas que ajudam a corrigir eventuais erros de replicação, o que faz com que as mutações sejam muito maiores, pois mais erros serão cometidos na replicação, e não haverá um mecanismo de "proofreading". 

       Passado esse detalhe técnico, é preciso citar que mais mutações acontecem, quando mais oportunidade um ser vivo ou não (há discussão se vírus é uma entidade viva ou não) possui possibilidades de se multiplicar. Um ser humano se reproduz pouquíssimas vezes, em 100-200 anos, apenas algumas poucas gerações de seres humanos existem. São pouquíssimas vezes , ou seja, poucas oportunidades para que mutações ocorram.

     Um vírus, ao contrário, em um ano talvez tenha milhares, ou dezenas de milhares, de gerações. Logo, no tempo cronológico da evolução, o ser humano é uma tartaruga, e um vírus é um carro de Fórmula I. Um vírus é uma entidade em constante mudança, pois ele está sempre se replicando. Um vírus para se replicar, porém, precisa de organismos. Talvez exista um vírus que possa ser mortal para seres humanos em algum animal na floresta amazônica, mas se ele não infectar humanos, pois está dentro da floresta, ele não terá oportunidades de sofrer mutações (e esse é um dos problemas de desmatamento e do aquecimento global).

     Para não ficar tão abstrato, pense-se no vírus Ebola. Este vírus foi reconhecido na década de 60, e desde então já houve centenas de pequenos surtos. Ele é um vírus extremamente letal em seres humanos, mas o contágio dele não é fácil, é preciso ter contato com os fluidos corporais de pessoas infectadas, e o vírus só infecta outras pessoas quando as mesmas se tornam sintomáticas, e os sintomas são severos. Logo, é bem mais fácil fazer quarentena e isolamento.

     Porém, e se o vírus do Ebola sofresse mutação e pudesse ser transmitido por vias respiratórias, como a gripe ou o SARS-COV-2? É possível que isso ocorra? Pelo que li, alguns virologistas acreditam que sim outros acreditam que não. Em 2014, começou um surto imenso de Ebola em três países africanos. O mundo entrou em pânico, mas nada aconteceu nos países mais ricos, mas os países africanos afetados sofreram muito. Como o surto foi imenso, o vírus Ebola teve a oportunidade de infectar muitos corpos, replicar muita vezes, e com isso oportunidades de evoluir, ou seja modificar o seu material genético. 

     O especialista Michael Osterholm, o qual já citei aqui e estou terminando o seu livro (apenas por curiosidade, o capítulo 13 trata de uma pandemia ocasionada por uma coronavírus), diz que esse surto de Ebola fez com que o vírus tivesse mais contato com corpos humanos em alguns meses do que teve em centenas ou milhares de anos, quando estava escondido provavelmente no corpo de algum primata nas densas florestas equatoriais da África. Ele chama isso de Hiper-evolução

      Pensem agora, prezados leitores, no Coronavírus. Talvez ela já tenha passado por dezenas de milhares de corpos humanos, e vai passar por centenas de milhões de outros. O que vai acontecer? Será que ele pode sofrer mutação e ficar mais letal? Mais infecioso? Geralmente, vírus sofrem mutações e ficam mais amenos, até porque assim conseguem infectar mais organismos. Mas absolutamente nada garante que não se possa criar uma monstruosidade ao se dar a oportunidade desse vírus passar por dezenas, centenas, de milhões de corpos humanos.

    Isso apenas os meses irão nos dizer o que irá acontecer. E sobre uma mutação do Ebola para ser transmissível por vias respiratórias, Michael Osterholm diz que o vírus está apenas algumas mutações disso ocorrer. O vírus Zica, por exemplo, que era transmitido apenas por mosquitos, sofreu mutação e hoje em dia pode ser transmitido por relações sexuais como o vírus HIV. Há uma família de vírus da Influenza da gripe aviária que são extremamente mortais, com índices de letalidade quase 50% em humanos como o H5N1 e H7N9 (6). Animais podem passar para seres humanos, mas a transmissão humano-humano ainda é muito rara ou inexistente. 

    Porém, e se, esses vírus sofrerem mutações que façam que eles possam ser transmitidos entre humanos? E se esse vírus tiver tempo de incubação de dias ou semanas, e puder ser transmitido enquanto a pessoa for assintomática (como o SARS-COV-2)? Talvez estamos apenas algumas poucas mutações de um vírus que pode ocasionar uma hecatombe na humanidade, e o COVID19 não vai ser nada comparado com uma ameça dessas.
Mutações do Sars-Cov-2. Isso pode ser acompanhado no site nextstrain (7).

     
ESPECIFICIDADE E SENSIBILIDADE - TEOREMA DE 
BAYES


    O artigo já está longo e denso, assim como o anterior que tratei sobre os "Céticos", mas antes de encerrar é preciso se aprofundar por um tema espinhoso em relação a testes, especialmente de anticorpos, em relação ao novo coronavírus.

    O tema dessa seção não é fácil, e pode parecer extremamente contra-intuitivo para muitas pessoas. Eu mesmo não sei se dominei nem mesmo os fundamentos, e isso que passei algumas horas lendo e vendo vídeos a respeito. 

     Não existe um teste perfeito em medicina. Perfeito aqui no sentido de detectar sempre quando há uma doença, e não detectar quando a doença não está presente. Diz se sensibilidade a capacidade de um teste afirmar que uma pessoa doente realmente possui a doença.  Diz-se especificidade a capacidade de um teste confirmar que uma pessoa que não possui a doença realmente não possui a doença.

      Vou utilizar aqui vários gráficos retirados de um belo artigo do Peter Attia sobre o tema (8). Um exame para detectar câncer de mama pode produzir um resultado positivo verdadeiro (ou seja a pessoa possui câncer) ou um resultado positivo falso (ou seja a pessoa deu positivo no teste, mas não possui a doença). 

      Um exame de câncer de mama pode mostrar que uma pessoa sem doença não possui câncer de mama gerando um verdadeiro negativo, mas o teste pode apontar que a pessoa tem a doença quando na verdade a mesma não a possui gerando um falso negativo.

     A sensibilidade de um exame é dada somando o número de casos verdadeiramente positivos, dividido pelo número de verdadeiramente positivo mais falsos negativos. A especificidade, por seu turno, é determinada pelo número de negativos verdadeiros, dividido pelo número de verdadeiros negativos mais falsos positivos. 

1000 mulheres que possuem câncer de mama fazem uma mamografia, 840 testam positivos (positivo verdadeiro) e 160 testam negativo (falso negativo), gerando uma sensibilidade no teste de 84%

1000 mulheres que não possuem câncer de mama fazem mamografia, 910 delas são corretamente detectadas sem câncer (um negativo verdadeiro) e 90 são detectadas com câncer (falso positivos), gerando uma especificidade do exame de 91%.

     No mundo ideal, um exame seria 100% específico e 100% sensível, ou seja seria um teste perfeito, ele corretamente diria quem possui a doença e quem não possui a doença sem qualquer erro. Entretanto, o mundo ideal é isso uma "ideia", na realidade não existe um teste assim. Na verdade, quanto mais específico é um teste, menos sensível ele é. Quanto mais sensível é um teste, menos específico ele é.

Há uma troca entre especificidade e sensibilidade.


    Mas por qual motivo há essa troca entre sensibilidade e especificidade? Por uma razão simples. Se numa mamografia, para ficar no exemplo do Peter Attia, tiver como linha de corte a detecção de tumores de menos de 1 milímetro, ele pode ser muito sensível, captando cânceres muito iniciais. Porém, com tumores tão pequenos, é possível que se gere falsos alarmes de pessoas que não possuem a doença. Se a mamografia for calibrada para captar apenas tumores acima de cinco centímetros (e isso já seria um tumor enorme), esse exame teria uma especificidade enorme, pois poucas pessoas seriam falsamente diagnosticadas com a doença, mas a sensibilidade do mesmo seria diminuída pois haveria muito falsos negativos.

      Especificidade, sensibilidade, falso negativo, verdadeiro positivo, sim eu sei prezado leitor, é contra-intuitivo mesmo. Porém, a coisa fica ainda mais difícil quando colocamos o conceito de Valor Positivo Preditivo e Valor Negativo Preditivo, e aqui não adianta, é preciso conhecer nem que seja um pouco Teorema de Bayes.

      Eu sugiro enormemente o seguinte vídeo, que talvez que não esteja acostumado precisará ver mais de uma vez:


                                      
O vídeo é muito bom, o rapaz tem uma didática fantástica.
        
          Eu não sou matemático ou estatístico, e posso estar falando bobagem. Porém, o Teorema de Bayes tenta responder a questão se há diferença de probabilidades quando novas informações vão sendo adicionadas ao sistema.  Vejam essas duas proposições: a) Testei Positivo para exame de AIDS, logo possuo o vírus no meu organismo; b) Tenho o vírus positivo no meu organismo, logo vou testar positivo para HIV.

         As proposições acima podem parecer idênticas, mas elas são fundamentalmente diversas. O exemplo "b" nada mais é do que a sensibilidade do exame, a capacidade de um teste apontar que uma pessoa infectada pelo HIV realmente dê positivo. Se a sensibilidade do exame for 95%, uma pessoa com HIV possui 95% de chance de ser diagnosticada com a doença.

        E qual é a probabilidade de uma pessoa com um teste positivo para HIV realmente estar infectada pelo vírus? Será que é 95%? Não, não é, pode ser muito menos, e isso é o poder preditivo positivo e porque o Teorema de Bayes é tão importante no diagnóstico médico.

Sempre fui afastado desse teorema, pois meu conhecimento matemático é limitado. O primeiro que me chamou a atenção para ele foi Taleb numa nota de rodapé do seu livro "A Lógica do Cisne Negro". Sem ele, fica difícil entender exames médicos, e mais importante se a saída para a crise do coronavírus por meio de testes de anticorpos faz sentido ou não, se é segura ou não.


     A resposta a pergunta feita no parágrafo anterior depende de uma informação crucial: qual é a incidência do vírus HIV na população. Se a incidência de HIV numa população for de 1%, um teste positivo de HIV com sensibilidade de 95%, produz um poder preditivo positivo de apenas aproximadamente 16%.

       Isso quer dizer que se alguém receber um teste positivo para HIV que possui 95% de sensibilidade e especificidade numa prevalência de 1% (ou seja a quantidade da população que possui esse vírus), ele tem uma chance de apenas 16% de realmente possuir a doença. Se ele fizer um segundo teste, e esse teste voltar positivo, ele possui uma chance de aproximadamente 75% de ter a doença (sim, depois de dois testes positivos ele tem uma chance em quatro de não ter HIV).

         Eu não preciso dizer o quanto isso é estranho e não-intuitivo, mas é assim que a realidade funciona, e entender o Teorema de Bayes é essencial para melhor entender a realidade, especialmente probabilidade, para assim tomar melhor  decisões sob incerteza. Eu talvez tenha entendido 1% desse teorema.

       Ter AIDS e por isso ser diagnosticado positivo num teste é diferente de ser diagnosticado positivo e por isso ter AIDS. Assim como não ter AIDS e por isso ser diagnosticado negativo num teste é diferente de ter sido diagnosticado negativo para a doença e por isso não ser infectado. Teorema de Bayes. É por isso que um exame positivo para HIV necessariamente deve ser repetido, e eu só vim a aprender isso algumas semanas atrás.


TESTES DE ANTICORPOS - UM POSSÍVEL GRANDE PERIGO E ARMADILHA



      Prezados leitores, a situação é a mesma para testes relacionados ao SARS-COV-2. Fui infectado e por isso vou apresentar um exame de anticorpos é diferente de possuo um exame positivo de anticorpos e por isso fui infectado. O que se quer com os testes sorológicos não é saber se um infectado possui anticorpos, mas sim se alguém que apareceu positivo para anticorpos foi ou não infectado.

    A ideia por trás  de uma "carteira de imunidade" é que se alguém apresenta IgG contra o SARS-COV-2, por exemplo isso significa que a pessoa foi infectada, o organismo se recuperou, e pelo menos por alguns meses essa pessoa teria imunidade, baixíssima probabilidade de ser infectada e poderia voltar ao trabalho ou à normalidade de sua vida (se é que isso é possível). 

   O pressuposto central dessa ideia é que um exame que teste positivo para anticorpos signifique que a pessoa realmente foi infectada. Porém, já vimos que testar positivo para algo e ter esse algo é diferente de ter algo e testar positivo para esse mesmo algo. Sendo assim, é imperioso saber a sensibilidade, e especialmente a especificidade desses testes rápidos, bem como a prevalência da infecção na população.

     Em ambientes de baixa prevalência, quanto maior a especificidade de um exame maior o poder positivo preditivo. Quanto maior a prevalência, maior o poder preditivo negativo se o exame possui uma sensibilidade maior.

       O Dr. Peter Attia tem um vídeo de 10 minutos que trata bem detalhadamente sobre especificidade e sensibilidade em contextos de baixa ou alta prevalência. E para o caso do COVID19 o que seria baixa ou alta prevalência? É a quantidade de pessoas que realmente já foi infectada.

    Se apenas 1% da população brasileira foi infectada, isso significa que 2 milhões de pessoas já foram expostas. Para se ter ideia, a Fundação Fiocruz há uns 10 dias soltou uma análise que o índice de subnotificação do COVID19 no Brasil estava ocorrendo por um fator de 15, sendo assim para os 60 mil casos reportados até 26/04, na verdade haveria 900 mil infectados, ou seja menos de 0.5% da população. No caso brasileiro, parece claro que a incidência tende a ser baixa, a não ser é claro que o "Modelo Oxford" esteja mais correto do que errado, e quantidades imensas de brasileiros já foram infectados e nada sentiram.


                                
Excelente vídeo e explicação sobre sensibilidade, especificidade e como a prevalência altera o poder preditivo negativo e positivo de um teste

        O Peter Attia também disponibilizou uma planilha (que pode ser baixada no artigo indicado na nota 8), onde vários cenários podem ser simulados em relação à sensibilidade, especificidade e incidência da condição na população. Um teste com 100% de especificidade e 85% de sensibilidade numa população de infectados de 1%, por exemplo, significa que uma pessoa aleatória que testar positivo, tem aproximadamente 100% de chance de ter sido infectado. 

         Se o teste ao invés de 100%  tiver 99% de especificidade, isso significa que uma pessoa que apresenta positivo pra anticorpos no teste tem uma possibilidade de menos de 50% de ter sido infectada. Sim, uma queda de apenas 1% na especificidade do teste faz com o valor preditivo positivo seja diminuído sensivelmente. E se a especificidade for de 94% (o que aparenta ser um bom número)? O valor positivo preditivo cai para quase 10%. Sim, você não leu errado. Se um funcionário de uma empresa for testado, e partindo do pressuposto que ele está assintomático, para um teste rápido com 94% de especificidade e 85% de sensibilidade (um teste longe de ser ruim nesses requisitos), ele vai ter 9 chances em dez de não ter sido infectado.  

     Deixa eu repetir novamente. Se alguém apresentar um teste positivo para anticorpos com 94% de especificidade e 85% de sensibilidade, a probabilidade dele realmente ter sido infectado é de aproximadamente 10%, Se uma "carteira de imunidade" for fornecida a ele, será um erro terrível, pois ele muito provavelmente não terá qualquer imunidade, e por causa disso pode ter condutas não compatíveis com medidas de segurança. Um teste nessas condições aplicado isoladamente é basicamente inútil, ou no pior dos cenários perigoso. A única solução seria repetir o teste várias vezes nessa pessoa, e se dois ou três testes derem positivo em sequência, pode-se ter uma certeza bem maior que ele realmente foi infectado.

          A melhor forma de ganhar alguma afinidade com esses conceitos, é simplesmente ficar mexendo na planilha indicada no artigo (8) que é de fácil manuseio.

         Portanto, se o objetivo é criar passaportes de imunidade, então os testes precisam ser muito bons, com especificidade próxima de 100%, sob pena se assim não o for, de causar enormes mal entendidos que vai ser difícil explicar para a população, e pode atrapalhar planos de reabertura da economia. 

      O mercado vai ser inundado por dezenas de milhões de testes com qualidade muito diversa um do outro. Teste para detecção de anticorpos podem ter duas técnicas de análise. Uma chamada ELISA (Enzyme-Linked Immunosorbent Assay) outra chamada LFI (Lateral Flow Immunoassays) . Aquela é uma técnica que depende de análise laboratorial, e demora algumas horas para ficar pronto o resultado, esta é um exame mais simples que pode ser feito sem necessidade de exame de um laboratório com resultado em alguns minutos. Por tudo que eu li a técnica ELISA produz testes mais precisos, mas os milhões de testes que chegarão no Brasil com quase toda certeza serão a maioria LFI. Diversos testes foram analisados num paper ainda não publicado, e os testes ELISA foram muito melhores do que exames LFI (9).

      Eu espero, sinceramente, que as autoridades públicas no Brasil, nos seus planejamento de contenção da epidemia e reabertura do comércio, estejam bem assessoradas por estatísticos e epidemiologistas sobre o problema da confiança "cega" nesses testes, e que aqui no Brasil haja investigação rigorosa sobre a qualidade de todos os testes importados. Para se ter ideia, há 160 empresas com testes a venda no mercado, o FDA autorizou apenas 4 para utilização nos EUA.

       É isso, leitores, o artigo ficou extenso e técnico, os próximos serão mais amenos.

    Um abraço a todos!
       
          
    


(5) https://jvi.asm.org/content/92/14/e01031-17 
(7) https://nextstrain.org/help/coronavirus/human-CoV

terça-feira, 21 de abril de 2020

CORONAVÍRUS - PARTE VII - OS CÉTICOS


               Olá, prezados leitores. Caso não tenham lido, sugiro a leitura das outras partes dessa série (sexta parte aqui). Esse artigo será o mais longo da série até então, e terá muitos detalhes, mas é importante para um mergulho mais profundo na questão.


CETICISMO


     O título desse artigo é “céticos”. Ceticismo, no sentido de duvidar das verdades  colocadas, é uma atitude saudável e é o fundamento principal por trás método científico. O método científico, por seu turno, é a ferramenta mais poderosa criada pela humanidade. Com ele foi e é possível revelar segredos e facetas extraordinários da realidade. Portanto, ser cético é essencial.



                     Vejam a recomendação acima da Organização Mundial da Saúde para a nutrição durante a pandemia de Coronavírus. Coma gorduras insaturadas e não coma gorduras saturadas. Entre as gorduras recomendadas estão os venenos óleos de soja, canola, sunflower e de milho. Entre o que não se deve comer está carnes e manteiga. Sim, essa baboseira é repetida há dezenas de anos, o que ocasionou, entre outros fatores, esse contingente de centenas de milhões de pessoas obesas e metabolicamente doentes (como se Salmão e Abacate, algo que eu consumo muito, não tivesse gorduras saturadas e como se carnes a maior parte da gordura não fosse insaturada). Como uma Organização de Saúde pode recomendar o consumo de um óleo industrial como o de milho, que passa por 5-6 processos químicos-industriais (se não acredita, tente espremer uma semente de milho e veja se sai algum óleo. Tente fazer o mesmo como uma azeitona, e reflita se tem alguma diferença entre os dois óleos), para produzir um óleo cheio de pontos de oxidação e claramente tóxico para o ser humano, e não recomendar o consumo de comidas que foram a base da evolução da nossa espécie? Bullshit total que é repetido acriticamente por um monte de médicos, nutricionistas e pessoas da imprensa. O ceticismo é fundamental para nos defender de informações errôneas, inclusive de organizações sérias como a OMS.


       Porém, não se pode confundir ceticismo com cinismo. Eu, pessoalmente, adoro um cinismo inteligente, especialmente no humor. Algo como o Wood Allen consegue em alguns filmes. Ou a ironia Socrática. Ou o humor de um comediante como George Carlin. Se há algo que não aprecio é quem tenta fazer ironia de forma tosca.  Se gosto do cinismo inteligente em algumas ocasiões, isso não significa que o cinismo em excesso é uma boa faceta de uma vida bem vivida. Nós, enquanto humanos, precisamos confiar, ter empatia e acreditar na boa vontade de outras pessoas.  É algo difícil de explicar, algo que vem da experiência de vida, o difícil balanço entre ceticismo, cinismo e confiança.


Não é tão brilhante e inteligente como um George Carlin? Sério não tente ser irônico, pois na maioria das vezes o resultado é tosco.


            Portanto, o nome do presente artigo não é uma qualificação negativa do ceticismo. Eu mesmo sou cético em várias situações. O que pretendo fazer aqui, e o que chamo de céticos, é a ideia, ou conjunto de ideias, de que a reação ao SARS-COV-2 foi e está sendo exagerada, e provocará danos econômicos, emocionais e sociais profundos muito maiores do que a ameaça do próprio vírus.  Eles estão corretos?


CETICISMO NÃO É BIZARRICE, TOLICE OU IDIOTICE

     Esse espaço, e esse artigo em especial, será devotado a discussão de questões técnicas, de argumentos que fazem sentido ou não. Não vai se tratar de tolices como "O Vírus Chinês", ou o "Vírus criado pelo partido comunista chinês para dominar o mundo e avançar o globalismo" ou "isso é um golpe da esquerda fabiana para tomar o controle do mundo" ou qualquer outra bizarrice. Aqui não é o espaço para isso, e eu não perderia o meu, nem o seu prezado leitor, tempo com isso.


         FONTES


         Há inúmeras fontes com uma posição mais crítica à “histeria” em relação ao COVID19. Eu já li dezenas e dezenas de artigos, e não faria sentido citá-los todos aqui.  Há um site de um Médico Suíço que faz uma compilação quase diária de notícias, fatos, entrevistas, etc, que de alguma maneira questionam a narrativa predominante sobre o COVID19.  Sugiro a consulta dele para maiores informações. Quem tiver interesse, pode ficar horas e horas lendo as diversas fontes ali indicadas.


A POLUIÇÃO DO NORTE DA ITÁLIA E DE WUHAN


      Um dos primeiros argumentos que li no site suíço recomendado foi de que as mortes em Wuhan na China, e especialmente no norte da Itália, poderiam ser explicadas não porque o SARS-COV-2 fosse necessariamente mais letal do que um dos diversos vírus da gripe, mas sim que a poluição nesses lugares faria com que a probabilidade por insuficiência respiratória aguda de vir a óbito fosse muito aumentada em relação a outras regiões. Como o norte da Itália e Wuhan são regiões de muita poluição, essa seria uma explicação para as cenas (de 4 semanas atrás) de centenas de pessoas entubadas e morrendo em hospitais lotados.

A região do norte da Itália é um dos lugares mais poluídos da Europa

E isso explicaria a diferença de mortalidade das regiões norte e sul da Itália, por exemplo, e seria uma explicação de um vírus diferente chegando numa população sem imunidade ocasionando problemas respiratórios.


          Essa explicação poderia fazer total sentido. Porém, como algumas semanas passaram, como novos focos de muita mortalidade aconteceram em Madrid, Nova Iorque, Bélgica, Guayaquil, entre outros lugares, essa explicação parece não se sustentar. Com certeza a poluição de um lugar piora bastante o prognóstico para uma doença que ataca principalmente a capacidade de respirar, mas apenas a poluição com certeza não parece explicar esse excesso de internações em variadas cidades no mundo.


A INEXISTÊNCIA DE EXCESSO DE MORTALIDADE


          Um dos argumentos muito utilizado há 3-4 semanas pelo site do médico suíço era de que os serviços que mostram a mortalidade na Europa não apontavam nenhum excesso de mortalidade. Ou seja, as cenas na Itália poderiam ser chocantes, mas não estava morrendo mais gente do que seria  esperado, baseado em anos anteriores, ou seja, não haveria excesso de mortalidade. Poderia parecer contra-intuitivo, mas os dados mostravam que o que estava acontecendo na Itália talvez fossem uma miragem. O autor se utilizava, para a sua análise, de um site chamado Euro Momo (1) - European Monitoring of Excess Mortality.

      Eu tinha lido de algumas pessoas que eram críticas a esse argumento da não existência de excesso de mortalidade, que as estatísticas levam algumas semanas para serem atualizadas, e que o dado da semana não necessariamente representa em tempo real o que está acontecendo.

         Pois bem, resolvi ir ao site há uns dias, e olha o que se encontra no primeiro parágrafo:

"Pooled mortality estimates from the EuroMOMO network continue to show a marked increase in excess all-cause mortality overall for the participating European countries, coinciding with the current COVID-19 global pandemic. This overall excess mortality is, however, driven by a very substantial excess mortality in some countries, primarily seen in the age group of 65 years and above, but also in the age group of 15-64 years"

"A Mortalidade combinada estimada da rede EuroMOMO continua a mostrar um aumento acentuado no excesso de mortalidade por todas as causas para os países europeus participantes, coincidindo com a pandemia global de COVID19. No geral o excesso de mortalidade é, contudo, ocasionado por um aumento substancial do excesso de mortalidade em alguns países, primariamente visto no grupo etário acima de 65 anos e acima, mas também no grupo de 15-64 anos."




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Gráfico tirado diretamente do site Euromomo. As áreas num azul mais escuro são aquelas que apresentam um excesso de mortalidade muito alto. O Excesso de mortalidade vem justamente dos países mais duramente atingidos: Itália, Espanha, França  e Inglaterra. Interessante notar que também há aumento de excesso de mortalidade na população mais jovem classificada entre 15-64 anos.


        Como uma imagem vale mais do que mil palavras, vou disponibilizar algumas outras imagens sobre excesso de mortalidade em vários lugares.


As linhas vermelhas são os picos de mortes na cidade de NY. Reparem no pico no atentado de 11 de setembro em 2001, com o que aconteceu a partir do início de abril desse ano.

Mortes semanais nos EUA. Câncer e doenças cardíacas são as causas de morte maiores nos EUA (e no mundo em geral). Aproximadamente 50-55% das mortes no mundo são causadas por Câncer e doenças cardíacas. No gráfico. se mostra o número de mortes  por acidente de carro (uma linha reta basicamente) e por algumas temporadas mais amenas e piores de gripe. A linha vermelha representa o COVID19.

Excesso de Mortalidade França e algumas regiões.



Excesso de Mortalidade Inglaterra

Excesso de mortalidade Lombardia, norte da Itália


Excesso de mortalidade Inglaterra

COVID19 comparada com a média de mortalidade de gripe e Pneumonia na Inglaterra (média dos últimos cinco anos).

         Por fim, no Equador, o excesso de mortalidade talvez seja 10 vezes maior na cidade de Guayaquil.  A mortalidade oficial por COVID19 de todo o Equador está em apenas 500 mortos (até 20 de abril), mas apenas na província de Guayos (onde a cidade está localizada) talvez haja um excesso de 6000 mortos, apenas até 15 de abril, não contabilizados. O colapso do sistema de saúde no Equador parece muito pior do que nos países europeus, e me incomoda que a imprensa brasileira não está prestando atenção nisso, pois essa cidade pode ser muito mais parecida do que pode acontecer em alguns locais no país do que o que ocorreu na Europa. A reportagem tem um pequeno vídeo que eu sugiro que os leitores vejam (2).

     Portanto, esse argumento da inexistência de excesso de mortalidade, assim como o da poluição, parece não ter mais apoio nos dados


IT IS NOT WORSE THAN THE FLU


          O argumento é utlizado ad nauseam  no Twitter (eu acompanho o Twitter atualmente, pois sigo alguns cientistas, e eles sempre disponibilizam muito material e insight valiosos) é de que o COVID19 não é pior do que a gripe. Para nós brasileiros é difícil de entender esse argumento, pois a gripe no Brasil numa temporada não muito severa mata centenas de pessoas, e numa temporada mais severa mata menos de duas mil pessoas por ano. 

     Nos EUA, porém, a situação não é essa. Numa temporada amena, a gripe mata de 10 a 20 mil pessoas. Numa temporada mais severa, algo em torno de 60 mil. Então, numa temporada severa de gripe nos EUA morre mais gente por causa dessa doença do que há homicídios no Brasil. Por isso, essa insistência de americanos e europeus toda hora estarem comparando com a gripe.

            O COVID19 não seria pior do que uma temporada ruim de gripe, sim dezenas de milhares de pessoas morem, mas não se fecha a economia ocasionando prejuízos de trilhões de dólares para combater a mortalidade da gripe, então porque se está fazendo isso em relação ao COVID19? Não faz sentido, segundo essa linha de raciocínio.

           Mas, como pode ser a mesma coisa que a gripe? Nos EUA, já passam de 40 mil mortes em algo em torno de quatro semanas, como uma doença como essa, que já matou mais de 0.125% de toda população de NY (apenas para efeito de comparação, 0.125% de toda população no Brasil seriam 250 mil pessoas, algo em torno de cinco anos de número total de homicídios, isso que o Brasil é o país com mais assassinatos em números absolutos do mundo inteiro) pode ser parecido com a gripe sazonal?  



É PIOR DO QUE A GRIPE, MAS MATA COMO A GRIPE


        Muitas pessoas desconfiam do argumento anterior, eu mesmo desconfio apesar de não ser especialista. Por que algumas cidades estão tendo uma mortalidade tão alta? Como isso pode se comparar uma temporada de gripe? Parece que não há como conciliar esses fatos, mas há uma explicação possível.

      Essa seria uma doença muito mais contagiosa do que a gripe, mas não é mais letal. Ou seja, o que uma temporada ruim de gripe leva seis a sete meses, já que o R-Naught é baixo,  o COVID19 leva apenas quatro-seis semanas, já que o R-Naught é alto. Portanto, o COVID19 é apenas uma gripe muito forte concentrada em pouco tempo, mas em última instância o vírus SARS-COV-2 não é mais letal do que o vírus da Influenza. 

       Ele seria pior, apesar de ter a mesma letalidade, porque como ele é mais transmissível, muitas pessoas são infectadas num espaço de tempo menor, ao invés de 4-5 meses numa temporada de gripe, a infecção do SARS-COV-2 se dá em 4-6 semanas.  Sendo assim, mais pessoas precisam de hospitalização ao mesmo tempo, o que pode ocasionar que alguns sistemas de saúde possam colapsar, não pela gravidade do vírus, mas sim porque as hospitalizações são concentradas. 

           Uma maneira de pensar nesse argumento é que  a gripe seria uma COVID19 mas com a curva achatada, ou seja (espera-se que os leitores dessa série já tenham dominado esse conceito, senão, leia a partir da Primeira Parte), o número de infectados é o mesmo, e de mortes também, mas as infecções e as mortes por uma temporada ruim de gripe são espalhadas por vários meses e não concentradas em algumas semanas.

    Como saber se esse argumento é válido? Isso nos leva, novamente, aos modelos Imperial College x Oxford. Mas, além disso, e eu não vejo ninguém falando sobre isso, mesmo em espaços de especialistas,  essa comparação do índice de fatalidade da gripe e das estimativas mais baixas para o COVID19(da ordem de 0.1%) possui alguns problemas.



SIM, É UMA QUESTÃO DE DENOMINADOR (INFECTADOS), MAS TAMBÉM DE NUMERADOR (MORTES) - CFR X IRF


          Na verdade, o único argumento, em minha opinião, realmente válido diz respeito ao número de infectados, e o real índice de fatalidade da doença. Peguemos o caso da Itália, por exemplo. Segundo o worldometers.info/coronavirus/ no dia 21 de abril de 2019 havia 183.957 casos positivos diagnosticados e 24.648 mortes. Sendo assim, o Case Fatality Rate (CFR) seria de 13.3% (24.648/183.957), o que seria algo assustador. Porém, qual seria o Infection Fatality Rate (IFR), ou seja, qual é a letalidade da doença? No primeiro caso, CFR, calcula-se apenas a mortalidade em relação aos casos infectados comprovados. No segundo caso, IFR, calcula-se a letalidade potencial da doença.

      É evidente, e isso há muito é sabido, que uma parcela significativa dos casos de infecção de COVID19 são de pessoas assintomáticas ou com sintomas leves. Como não há testes suficientes, esses casos não são testados na maioria dos países. A grande discussão então é qual é o denominador, quão grande o número de pessoas diagnosticadas em relação a não diagnosticadas.

    Peguem-se os números Italianos. Se para cada Italiano identificado com a doença, há outros 10 não identificados (seja por serem assintomáticos, sintomas leves ou não testados), o IFR seria de 1.3% (13.3%/10). "Poxa, Soul, 10 pessoas não identificadas para cada uma pessoa identificada? Não é demais?" Acredito que não, para o caso Italiano o número deve ser até mesmo maior.

         Porém, para que o IFR do COVID19 seja de 0.1%, ou seja parecido com o da gripe sazonal, deve haver não 10, 20 ou 30 pessoas não testadas mas infectadas para cada um testado e infectado, mas sim 130 (13.3%/130 = 0.1%). Ter 10-20 vezes mais pessoas não identificadas porque assintomáticas ou com sintomas leves, parece-me uma proposição razoável para alguns lugares, 130 vezes não me parece nem um pouco razoável. Isso significa que a quantidade de assintomáticos ou com sintomas leves não seria 85% dos casos, mas algo como 99% dos casos, e nenhum dado por enquanto aponta nessa direção.

         Entretanto, ainda existe mais nuance. Para saber o verdadeiro IFR, é preciso saber o verdadeiro denominador representado pelo número total de infectados (ou ao menos uma aproximação mais próxima da realidade), mas é imprescindível também saber o número mortes, o que será tratado melhor nas próximas seções

       Apenas, e aqui remeto ao último parágrafo da seção anterior, é preciso fazer outro adendo em relação a gripe. No site do CDC (órgão americano para controle de doenças) consta diversas estimativas para os números de infectados, hospitalizados e mortos em cada temporada de gripe nos EUA nos últimos anos.  Realmente, a mortalidade fica em torno de 0.1-0.12% (3). 




     Há, um enorme, porém. O site do CDC diz expressamente que a mortalidade é calculada sobre os casos estimados sintomáticos para a doença. Ora, se é para ser coerente com o argumento, e os casos assintomáticos de gripe? Também entram no cálculo? Numa rápida consulta, vi que os casos assintomáticos de gripe podem chegar a quase 80% dos casos (4). Se este for o caso, o IFR da gripe na verdade seria muito menor do que o 0.1% estimado, e se assim o for, COVID19 tem o potencial, mesmo com um IFR de 0.1% de ser algumas vezes mais letal.



MORTES COM COVID19 NÃO POR CAUSA DO SARS-COV-2


         Se o argumento da inexistência de excesso de mortalidade aparentemente não se sustenta, um argumento correlacionado é que as pessoas estão morrendo com COVID19, não por causa do vírus. Por algum motivo, o excesso de mortes se daria por algum motivo outro, e não pela pandemia de um vírus desconhecido. Há vídeos circulando, inclusive de alguns médicos, dizendo que haveria uma pressão para colocar nos certificados de morte que uma das causas principais seria COVID19, mesmo que não haja qualquer relação com o vírus, e o simples fato de alguém morrer por insuficiência respiratória e testar positivo para COVID19 não significaria que o vírus teria sido um fator importante, e haveria uma notificação em excesso, inflando artificialmente o número de mortes pelo SARS-COV-2.

         Eu acho esse argumento ainda mais inverosímil. Na verdade, eu acredito que a inúmeros fatos apontando justamente para a direção oposta:  há na verdade uma subnotificação enorme no número de mortos pela doença em vários lugares do mundo.

         Hoje saiu uma reportagem no NYT (5) mostrando que pela consulta do excesso de mortalidade, e pelos números oficiais de mortos pela COVID19, na verdade em apenas 11 países haveria quase 30 mil mortos a menos contados (isso considerando números apenas até duas semanas atrás, a subnotificação pode ser até mesmo maior). Uma reportagem da CNN mostra o mesmo para Inglaterra com 4 mil mortes não contabilizados (6). Alguns dados da reportagem do NYT:


                         
A tabela mostra na primeira coluna o percentual de mortes acima da média anual para o mesmo período em anos anteriores. Chama atenção a  cidade de Nova Iorque com 300% de aumento. A segunda coluna mostra o número total de excesso de mortalidade. A terceira coluna mostra o número oficial de mortes associado ao COVID19. E a última a diferença entre os números oficiais de morte pelo vírus e o número absoluto de excesso de mortalidade. Haveria 4 mil mortes a mais na cidade de NY, o que levaria a mortalidade total até agora da cidade para incríveis 0.21% (para efeito de comparação 0.21% da população brasileira seria algo em torno de 460 mil pessoas)


Excesso na Suíça e Suécia



Grande excesso na Holanda e Bélgica 

O mesmo na França.



            O que achei interessante, no sentido não da tragédia óbvia mas pelos dados, foi que eles buscaram dados para países que tenho muito interesse e não há quase nenhuma informação (Indonésia e Turquia). Tenho interesse, pois esses países são de renda média como o Brasil, com grandes populações, problemas com governos, problemas econômicos anteriores (especialmente a Turquia) e onde os dados oficiais com certeza são subnotificados por uma grande margem. Tanto Brasil, Turquia e Indonésia possuem números ridículos de testes realizados em suas populações com menos de 300-400 testes por 1 milhão de habitantes, enquanto países como a Alemanha, por exemplo, possui algo em torno de 25 mil testes por 1 milhão de habitantes (sim, um fator de 80 vezes a menos, estamos tão ruins assim).




 Enterros em Jakarta (capital da Indonésia, país com o maior número de Muçulmanos. Não, não é um país no Oriente Médio) com grande excesso, isso apenas até o final de março. 

O mesmo está acontecendo em Istambul



         Portanto, esse argumento de que pessoas estão morrendo com COVID19 e não de COVID19 não faz muito sentido em face desse aumento enorme de mortalidade no período. Já é muito sabido que pessoas obesas, com diabetes, com doenças cardíacas (praticamente a maior parcela de adultos nos EUA e provavelmente no Brasil) possuem um risco muito mais aumentado de mortalidade e complicação do que uma pessoa saudável. Isso foi tratado na Segunda Parte dessa série.

   Porém, uma pessoa com diabetes pode vir a falecer de diabetes, mas isso pode demorar anos, talvez décadas, já que a doença pode ser mantida sob relativo controle e piora gradual da saúde. Sendo assim, uma diabético morrer em questão de dias depois da infecção por causa de um vírus, e dizer que a pessoa morreu de diabetes e não do vírus não faz o menor sentido. A diabetes, o problema cardíaco, ou a obesidade, são fatores de risco, mas isso não quer dizer que as pessoas iriam morrer em poucas semanas. Se não fosse o vírus não faria sentido haver uma aumento enorme no excesso de mortalidade.


          Na verdade, os números podem ser ainda maiores. No gráfico abaixo, é mostrado um aumento enorme em mortes por ataque cardíaco em NYC no período de março até o começo de abril de 2020 comparado com 2019. Não faz sentido as pessoas num mês começarem a morrer de 5 a 10 vezes mais por mortes súbitas cardíacas sem que haja um fator por trás disso. O vírus SARS-COV-2 não ataca apenas os pulmões, mas também o coração, em algo chamado myocarditis, uma inflamação no coração. Será que é isso que explica esse aumento enorme de eventos cardíacos na capital financeira do mundo no período? Eu acredito que essa é uma explicação plausível.






PROFESSOR JOHN IOANNIDIS 

  Na seção das fontes para uma compilação de notícias "céticas" em relação à "histeria" das diversas respostas governamentais ao COVID19 , eu coloquei o site do médico suíço, pois ele é um compilador. Porém, deveria ter mencionado, que talvez o nome de maior peso no "ceticismo" da reação dos governos e das pessoas, é o professor John Ioannidis.

     Talvez esse nome não queria dizer nada para vocês, prezados leitores. Porém, quem acompanha os debates nutricionais conhece muito bem quem é John Ioannidis. Ele é um professor de Stanford cuja especialidade basicamente é a análise de dados e de estudos científicos. Ele é especialista em analisar estudos científicos. Ele é muito respeitado, é um cientista de um renome muito grande.

      É dele que vem críticas profundas ao que se chama de Epidemiologia Nutricional. Ele basicamente diz que a maior parte desses estudos não servem para absolutamente nada, no que acredito que ele tem razão. É por causa da fraqueza desses estudos, que a toda hora aparece que "ovo faz bem", "ovo faz mal", "comer carne vermelha causa câncer", "comer carne vermelha não causa câncer", e o público fica confuso, pois acredita que os cientistas a toda estão mudando de ideia. Não, meus amigos, é que os estudos são ruins mesmo, e epidemiologia nutricional é uma piada, e o professor John Ioannidis é um dos expoentes por trás dessa crítica.

        Ele já escreveu alguns artigos sobre o tema, e deu duas entrevistas para o mesmo canal de mídia social. Uma no dia 24 de março e outra no dia 17 de abril. Hoje, eu assisti as duas. Aconselho a quem tem interesse também a ouvir as duas.



         No artigo anterior, eu falei que tudo, em várias áreas estava muito incerto. Pois bem, nessa entrevista do dia 24 de março, o Professor Ioannidis errou bastante em suas previsões, e até mesmo em alguns fatos, e olha que foi a menos de um mês atrás.

          No começo do vídeo, ele explana que há uma chance grande do COVID19 não ser pior do que a gripe. O entrevistador então pergunta o que explica o que estaria acontecendo no norte da Itália (no final de março, o lugar mais caótico do mundo era o norte da Itália). Ele então diz que a Itália seria um outlier (ou seja um ponto fora da curva) e que os italianos seriam mais idosos e teriam mais doenças cardíacas do que qualquer país da Europa. Eu achei essa informação no mínimo estranha e fui checar:

Não, a Itália está longe de ser o país da Europa com maior comorbidade por doenças cardíacas (um fator de risco bem estabelecido atualmente para a severidade e eventual morte pela infecção pelo SARS-COV-2)

Na verdade, muito longe.

       
    Portanto, o professor errou feio nesse fato. E agora, 3-4 semanas depois, ficou claro que a Itália estava longe de ser um ponto fora da curva, e que o simples fato de ter uma população mais idosa não seria suficiente para explicar o aumento súbito no número de mortes, a cidade de NY e a cidade de Guayaquil seriam contra-exemplos. Ele fala também que Italianos fumariam mais, e isso aumentaria o risco. Por incrível que pareça, vários estudos estão mostrando que fumar ou ter sido ex-fumante não é um fator de risco significativo para um desfecho ruim em caso de infecção.

    Nos minutos 34 a 37, ele diz que haveria uma chance da mortalidade nos EUA não passar nem mesmo de 10 mil pessoas. Sim, ele fala que a mortalidade poderia ser superior a 10 mil pessoas, mas ele enfatiza bastante o fato de que talvez não chegasse nem nesse número. Quatro semanas depois esse número está em quase 50 mil nos EUA. Portanto, ele estava equivocado aqui também.



        Nesta segunda, entrevista, no começo ele fala de um estudo que ele está por trás, patrocinado por Stanford (7). Foi um teste de anticorpos para ver quantas pessoas no condado californiano de Santa Clara já teriam sido infectados pelo SARS-COV-2. O que me causou estranheza, é que esse estudo ainda não foi revisto por pares, está cheio de falhas potenciais graves, e ele, um grande estudioso de estudos científicos, dá um crédito enorme aos dados desse estudo. Eu, sinceramente, não entendi. Tendo em vista as conclusões desse estudo, ele então arremata de que é muito provável que a letalidade do COVID19 seja igual a uma temporada um pouco pior de gripe. 

      
       Os motivos da fraqueza do estudo serão abordados no próximo artigo onde discutirei apenas o tema Testes de detecção de anticorpos ou do próprio vírus.  O Professor John Ioannidis é uma sumidade na área. Se você se interessa deve ver as duas entrevistas, ele aborda diversos tópicos de uma maneira clara e objetiva. Apenas coloquei as minhas impressões, pois do primeiro para a segunda entrevista as projeções dele se mostraram equivocadas sobre a Itália e sobre o número de mortes nos EUA.



IFR DE NOVO: O NUMERADOR TAMBÉM É IMPORTANTE (NÚMERO DE MORTES)


         Se saber o denominador (número de infectados) é importante para saber o IFR da doença, é importante também saber o numerador (número de mortes). Parte-se do pressuposto que o número de mortes é algo que não tem como errar, mas nas outras seções foi mostrado que não é bem assim. 

         Além disso, muitos mortos já foram enterrados, não foram testados, e jamais entrarão nas estatísticas.  Sendo assim, para saber o IFR, e a ameaça real desse vírus, é necessário que tanto o número real de infectados e de mortes seja corretamente estimados. Imagine se a Itália subestimou o número de mortes em 50%. Isso significa que para o IFR ser de 0.1% num cenário como esse, o número de pessoas não identificadas para testadas deveria ser algo de 200 para uma, ou seja para cada um dos 184 mil infectados italianos identificados, teria que haver 200 outros italianos já infectados, ou aproximadamente 36 milhões, 60% de toda população. Possível? Talvez. Provável? Hum, eu diria que é extremamente improvável.

          Eu sei que esse artigo já está bem grande e cheio de nuances e conceitos. Mas, se você está lendo essa série, é porque provavelmente quer ter uma visão mais geral e ao mesmo tempo sobre essa situação inusitada em que vivemos. Há ainda mais uma detalhe.

        Há um Lag, ou seja, um espaçamento entre a infecção e a morte de uma pessoa. E esse conceito pouquíssimas pessoas, inclusive boa parte da mídia, estão entendendo. Há um período onde a pessoa é infectada e não sente nada. O prazo médio é de cinco dias, mas pode ir até 14 dias. Depois que os sintomas aparecem, em média, nas pessoas que isso ocorre, eles se agravam de uma semana a 10 dias depois. Quando a pessoa é hospitalizada, se ela necessita ser internada numa UTI, entre a hospitalização e a morte, em média esse tempo é de duas semanas. Ou seja, entre uma infecção e a morte se passam quase 30 dias. Entre uma hospitalização e a morte algumas semanas.

          Logo, ao se olhar para as mortes ocorridas num dia, na verdade está se olhando a situação que ocorreu há quatro semanas, não é a situação atual.  Esse conceito é de fundamental importância que seja entendido, até para entender em que pé um país, ou região, possa estar em relação à curva do surto.

         Quando se calcula a CFR (ou a IFR), leva-se em conta os infectados testados e a morte até o momento. Porém, isso é falho. Só é possível saber o número total de mortes, depois que todos os casos são resolvidos como recuperados ou mortos. Pegue-se a Itália, por exemplo. Há em torno de 184 mil pessoas infectadas, com cerca de 24 mil mortos com 51 mil recuperados (e isso ainda é polêmico), tendo 107 mil casos ativos. 

         Como na Itália talvez apenas os casos com sintomas mais agudos foram testados, é bem possível que desses 107 mil casos, talvez 7-8% dessas pessoas venham a falecer. Só será possível saber daqui umas 4-5 semanas. Portanto, se na Itália não houvesse mais nenhum infectado novo, é provável que o número de mortes subiria ainda mais ainda uns 7/8 mil, o que levaria a mortalidade para algo em torno de 31/32 mil pessoas, aumentando assim o CFR para algo em torno de 17.4% (32mil/184mil x 100%). 

         É por isso que mesmo depois das mortes terem chegado num pico de 800-900 por dia na Itália, e continuarem a diminuir, elas se encontram num platô pelos últimos 20 dias em torno de 450-550 pessoas por dia. E isso vai muito provavelmente acontecer nos EUA também, o que provavelmente fará que o número de mortes em território americano nessa primeira onda até meados de maio seja de pelo menos 70-80 mil pessoas.

Esse gráfico mostra bem esse conceito de Lag entre infecção e morte. A Coréia do Sul teve um aumento enorme de casos em duas semanas a partir do final de fevereiro e a partir da metade de março o número de novos casos começou a ficar quase que estagnado. O número de mortes, não, ele continuou aumentando. Tanto é verdade que o CFR da Coréia do Sul estava no começo em apenas 0.6% e atualmente está em 2.2% (quase o quádruplo)

         Porém, a pergunta fundamental, a dúvida maior dos céticos, e minha também, quão infectados nós estamos enquanto população?


FOMOS TODOS INFECTADOS E NÃO SENTIMOS NADA?

              Não há como fugir, prezados leitores, tudo leva a esse tema. O Peter Attia soltou um artigo na data de ontem, o qual sugiro a leitura, dizendo que está mais otimista, pois não acredita que os modelos iniciais capturaram as diversas incertezas (8). Ele então expõe que não acredita que o número de mortos nos EUA vai sequer passar de 100 mil, o que dirá um milhão.  Isso porque ou o vírus não é tão letal como se imaginava, e, ou, a população aprendeu que terá que praticar distanciamento social, o que com certeza vai diminuir o R-Naught do vírus. Ele acha que vai ser uma mistura dos dois.

         Nas últimas semanas, eu venho citando as diversas entrevistas feitas pelo Peter Attia. O admiro muito, pois ele produz talvez o podcast mais técnico na área de saúde. Ele é um cara que se formou em engenharia no MIT, depois fez medicina em Stanford, largou a profissão para ser analista de risco em Wall Street, e voltou para ser pesquisador na área de longevidade. Ele é técnico, minucioso, preciso (qualidades que admiro em qualquer discussão), e sabe muito sobre muita coisa, o que faz dele um entrevistador brilhante, especialmente quando entrevista outras pessoas brilhantes. Um médico que acompanha esse blog, e que virou meu amigo, no aniversário de um ano da minha filha (sim o convidei para festa, nossas famílias já se encontram algumas vezes) me disse que estava impressionado com o podcast dele (The Drive) e veio me agradecer pela indicação. 

         O que Peter Attia está falando, na verdade, é a discussão antiga sobre quem está mais correto: O Imperial College ou o "Modelo Oxford". Na parte que tratei sobre modelos, e é o foco do artigo do Attia, disse que modelos são falhos por natureza, eles são uma aproximação da verdade. Um bom modelo, e especialmente quem faz as modelagens, precisa ser humilde o suficiente para reconhecer isso, e especialmente para adaptar o modelo assim que novos fatos vão surgindo. Um modelo numa pandemia como essa não pode ser estático, dele deve ser dinâmico assim como a própria doença. Logo, é sandice ficar criticando modelos, especialmente quando eles são feitos em momentos de grande incerteza. O que se deve criticar é o apego a ideias e a modelos, não sendo abertos  aos fatos e dados novos que vão surgindo.

         O que, porém, o Peter Attia não trata expressamente no artigo dele, o que me deixou um pouco frustrado, é que a mortalidade não vai atingir centenas de milhares de pessoas apenas se uma parcela enorme da população americana já tiver sido infectada, fazendo com que a letalidade desse vírus, o IFR, seja na faixa de 0.1-0.15%. Se isso não for verdade, assumir que apenas com o distanciamento social, o vírus pode ser mantido sobre controle, parece-me uma premissa difícil de se aceitar. O especialista Michael Osterholm, citado aqui no último artigo, já disse algumas vezes que tentar parar um vírus que ataca as vias respiratórias superiores e inferiores (e não apenas inferiores como o SARS-COV-1 e o MERS-COV) e que pode ser transmitido por pessoas assintomáticas e pré-sintomáticas é como tentar "parar o vento".

       Ou seja, o vírus não vai deixar de existir, e a população será suscetível a infecção, até o surgimento de uma eventual vacina. Disso, Peter Attia não trata no artigo dele de forma expressa.  Mesmo se 30% de toda população de NY já tiver sido infectada (atualmente são algo em torno de 130 mil casos confirmados, isso significa dizer que haveria 2.6 milhões de pessoas já infectadas, ou seja uma relação de subnotificação de 20 vezes), a fatalidade da doença seria de 0.4%. Ora, seria necessário um distanciamento social enorme em todos os EUA durante muito tempo com consequências sociais, econômicas e políticas imprevisíveis, pois se 50% das pessoas forem infectadas, isso significaria uma mortalidade de aproximadamente 660 mil americanos num período de 12-15 meses (330 milhões x 50% x 0.4%) . Essa questão não foi respondida no artigo em questão.

        Aliás, essa pergunta não é respondida por nenhum dos céticos, nem mesmo nas entrevistas do professor John Ioannidis. Mesmo se a letalidade da doença for de apenas 0.1%, e se 50% dos americanos forem infectados, isso significa a morte de aproximadamente 165 mil americanos. Porém, para o IFR da COVID19 ser de 0.1%, é preciso que muita gente já tenha sido infectada, sendo uma esmagadora maioria assintomática.

         Fomos todos, ou a maioria, infectados ou não? Apenas com testes de anticorpos essa questão poderá ser respondida, só assim saberemos qual modelo é uma aproximação mais verdadeira da realidade: Imperial College ou Oxford.

          Como a questão de testes, e eventuais certificados de imunidade, é um tema complexo e cheio de nuances, e como a minha ideia sobre o tema mudou radicalmente nos últimos 10 dias, o próximo artigo será dedicado apenas a esse tema.

Um grande abraço!


(2) Colapso do Sistema de Saúde do Equador
(3) https://www.cdc.gov/flu/about/burden/index.html
(4) https://www.nhs.uk/news/medical-practice/three-quarters-of-people-with-flu-have-no-symptoms/
(5) https://www.nytimes.com/interactive/2020/04/21/world/coronavirus-missing-deaths.html - 28 mil mortes a menos em relação a dados oficiais
(6) https://edition.cnn.com/2020/04/21/uk/uk-death-toll-coronavirus-statistics-gbr-intl/index.html
(7) Estudo Stanford