Se você não leu, e principalmente
não entendeu corretamente, a diferença entre associação e causalidade em
estudos científicos, sugiro a leitura do primeiro artigo dessa série. Neste
artigo, iremos aprofundar um pouco mais a questão.
Abaixo
uma ilustração de como deveria funcionar a ciência:
Alguém
faz uma observação sobre algum acontecimento da natureza. Elabora-se uma
hipótese, que em alguns casos pode ser lindamente formulada, para explicar o fenômeno observado. Uma hipótese, porém, só pode ser considerada acertada se ela for testada empiricamente. A Teoria da Relatividade Geral de Einstein, por exemplo, só
começou a ser aceita quando foi possível fazer um experimento para colocá-la a
prova ( um desses experimentos, poucas pessoas sabem, foi feito no Ceará em 1919, se não me engano).
Isso vale para qualquer campo do
conhecimento. Alguns campos são muito mais fáceis de se fazer experimentos,
outros nem tanto (pense em experimentos sociais ou econômicos).
Como
experimentos devem ser feitos (e aqui vou começar a restringir o alcance para
assuntos relacionados à medicina e a saúde em geral)? Tentando-se isolar
variáveis. Imagine-se que alguém quer fazer um experimento para testar um
tratamento em relação ao câncer. Separam-se aleatoriamente um número razoável de
pessoas que possuem câncer em dois grupos. Num deles, o grupo controle, nada se
faz de diferente. No outro, o grupo experimental, se fornece seis drogas
quimioterápicas, radiação, mudança de alimentação, contato com animais e doses
diárias de vídeos de “filosofia” do Olavo de Carvalho.
No
final de um determinado tempo, vê-se que o tratamento deu certo. As pessoas do
grupo experimental tiveram uma sobrevida média maior do que o grupo controle.
Porém, o que se descobriu com esse tratamento? Rigorosamente, não muita coisa.
Foram as seis drogas quimioterápicas que fizeram efeito, ou foram apenas quatro que tiveram um efeito real? Ou foi a radiação junto com mudança de alimentação? Será que foram os vídeos de “filosofia”
do Olavo de Carvalho? Não se pode saber, pois não se isolou uma variável. Sendo assim, esse não é um experimento errado,
ou falho, ele apenas não agrega muito conhecimento na questão de melhoria de
vida de pacientes de câncer, porque a única conclusão que se pode chegar é que
um tratamento com seis drogas, que envolve radiação, uma mudança de
alimentação, contato com animais no sentido literal e figurado é melhor do que
tratamento nenhum.
Esse
exemplo serve apenas para demonstrar que um experimento pode ser bem conduzido
ou não, e acreditem, prezados leitores, existem inúmeros experimentos que são
extremamente mal conduzidos.
Voltando
ao nosso quadro inicial, tudo começa com uma observação e a geração de uma
hipótese. Como dito no primeiro artigo dessa série, os estudos observacionais
feitos em nutrição médica são baseados em questionários de freqüência alimentar.
É mais ou menos assim que funciona: 1) um grupo grande de pessoas responde um
questionário, que em muitos casos envolve mais de uma centena de perguntas, no
começo do estudo; 2) dependendo do estudo, esse questionário é repetido alguns
anos depois; 3) depois de um determinado prazo procuram-se achar associações, e
podem existir centenas delas, como quem come mais carne vermelha tem mais casos
de câncer de cólon ou quem come mais frutas tem menos eventos cardíacos, por exemplo. São chamados estudos observacionais, pois
eles apenas observam o que ocorre na vida das pessoas, não há nenhuma
interferência como num experimento.
A
própria metodologia desses estudos é absurdamente falha. Imagine responder um
questionário de mais de 100 perguntas sobre o que você comeu nos últimos quatro
anos (o que é o comum nesses estudos). A chance do que é reportado não corresponder à realidade é imensa. A coisa
é tão grave que a mídia há alguns meses noticiou um estudo observacional que
que dietas Low Carb encurtariam a vida em quatro anos. Evidentemente, um estudo observacional não
poderia provar que alguma coisa encurta a vida (que pressupõe uma relação
causal), e as manchetes jornalísticas quase sempre estão erradas nesse ponto,
mas para além disso o estudo parecia um queijo suíço de tantas falhas que ele
continha. Porém, o ponto não é nem esse. Eu fui olhar o estudo em si, e nos
anexos havia a informação, pela resposta das pessoas ao questionário, que o
consumo médio diário de caloria era da ordem de 1.600 calorias.
Meus
prezados leitores, a média de consumo diário de um americano (foi um estudo com
uma base de dados americana) é na ordem de 2.500 calorias diária. Sabe qual a
chance da média de um grupo de milhares de pessoas terem um consumo de 1.600 calorias diárias nos EUA? Próximo de zero. É óbvio e evidente que as pessoas
reportaram muito menos do que efetivamente comiam, ou seja, a própria
observação, a coleta de dados, foi falha.
Mesmo
que não existissem essas falhas gritantes, um estudo observacional apenas “observa”,
ele apenas levanta hipóteses que devem ser testadas em experimentos. Entender
isso é fundamental para compreender o estado de saúde atual do mundo. Sério. É
essa ordem de magnitude de importância.
"Por
qual motivo, Soul?" Muitas pessoas ficam confusas sobre as recomendações do que
é saudável ou não comer. Elas são levadas a crer que a evidência científica
está mudando a toda hora, mas isso não é verdade, aliás está muito longe de ser
verdade. O que de fato, infelizmente, ocorreu, e ainda ocorre, é que a esmagadora maioria das
recomendações nutricionais foi baseada em evidência científica fraca, isso
quando havia qualquer evidência científica para respaldar uma recomendação.
Repito
novamente que entender isso é fundamental para entender a crise de saúde que
nos encontramos atualmente. Talvez isso seja (talvez não com certeza o é,) muito
mais importante do que terrorismo, reformas da previdência, investimentos, etc.
Digo
isso, pois um comentário feito no primeiro artigo sobre o tema demonstra bem a total confusão que nos colocamos ao
basear recomendações de saúde em evidências fraquíssimas (estudos
observacionais com falhas metodológicas e um inúmero imenso de variáveis de
confusão). Esse foi parte do comentário:
"E aqui não me refiro às variáveis ocultas como no caso do
tubarão e do sorvete, mas de teses cientificamente defensáveis, por exemplo: a
produção de hidrocarbonetos aromáticos no preparo de carnes, bem como as altas
concentrações de ferro na carne vermelha.
Isso, obviamente, não comprova o nexo causal entre o consumo
de carne e o CCR. Contudo, estamos falando de uma relação não necessariamente
causal que justificaria a diretriz atual que manda restringir o consumo da
carne vermelha, ao contrário do caso tubarão e sorvete, na qual o calor
apresenta-se como uma variável independente. "
Pela
terceira vez reitero que esse ponto é fundamental. O colega no comentário disse
que realmente não há nenhum estudo experimental comprovando que o consumo de
carne vermelha causa um aumento nos casos de câncer de cólon. Porém, ao
contrário do exemplo dado de mera associação entre sorvetes e tubarão (ler o
primeiro artigo da série para entender), haveria mecanismos científicos que
poderiam explicar o motivo do consumo de carne levar ao aumento dos casos de câncer:
a produção de hidrocarbonetos aromáticos, principalmente quando se torra a
carne e a alta concentração de ferro (imagino que ele esteja se referindo ao
ferro heme que é muito mais facilmente absorvido pelo nosso organismo) presente na carne vermelha.
Até
essa parte estou 100% de acordo. Num futuro artigo irei falar especificamente
sobre um marcador de ferro chamado ferritina, e como os níveis laboratoriais
estão longe de ser otimizados, e uma forma simples de ter níveis ótimos de
ferritina no sangue. Pode ser que realmente o consumo de carne vermelha que
possui uma espécie de ferro altamente absorvível no organismo humano de alguma
maneira, por algum mecanismo, contribua para o aumento dos casos de câncer. É
uma hipótese a se considerar sem dúvida.
Porém,
no parágrafo seguinte, vem o salto de fé, o “salto epistemológico” que
provavelmente causou muito mais danos e sofrimento humano do que o nazismo,
socialismo e fascismo combinados. O
salto é esse : “Contudo, estamos falando de uma relação não
necessariamente causal que justificaria a diretriz atual que manda restringir o
consumo da carne vermelha”
Já
viram o fabuloso filme “Bastardos Inglórios”? Se sim, vão lembrar que há uma
cena do Hitler dizendo “Nein, Nein, Nein!”. Seria minha resposta ao prezado
leitor “Não, Não, não e mais uma centena de nãos!”. Não!
Percebam
prezados leitores, passamos de uma observação que carne vermelha estaria
associada a um aumento do câncer de cólon, para uma hipótese de porque isso
poderia ocorrer (presença de ferro heme) por algum mecanismo biológico, para
uma recomendação de autoridades governamentais ou não, sobre restrição do
consumo de carne. Isso está
flagrantemente errado. E, infelizmente, foi isso que fizeram na década de 70,
resolveram mudar a forma como as pessoas se alimentavam, fazendo recomendações
nutricionais baseadas em estudos que apenas mostravam associações, sem que
houvesse qualquer experimento científico. Na verdade, houve um grande
experimento científico em toda população, e as taxas de obesidade, doenças
crônicas, e piora na qualidade de vida mostram que esse experimento falhou
miseravelmente.
“Mas,
Soul, qual é o mal inerentemente nisso?” O problema, amigo leitor, é que em
nutrição se alguma coisa é retirada outra deve ser adicionada. Se a gordura é
retirada dos alimentos, alguma coisa precisa ser adicionada em troca, e não é à
toa que a “gordurofobia” que nasceu desse salto epistemológico entre uma
hipótese para uma recomendação fez com que o consumo de açúcar e de produtos
industrializados disparasse.
As
recomendações nutricionais nunca foram embasadas em evidências científicas
sólidas, portanto, prezados leitores, não é que a ciência fica toda hora
dizendo uma coisa, não, foi o uso político de estudos observacionais, muitos
deles mal feitos, que criou essa confusão toda em que nos metemos enquanto
sociedade.
Encaminho-me
para o final desse artigo dando um exemplo concreto (e há inúmeros outros). Uma
meta-análise é um estudo científico que procura agrupar outros estudos científicos,
fazendo a análise dos mesmos. Imagine que existam 10 estudos observacionais
sobre o efeito que não comer café da manhã possui sobre o ganho ou perda de
peso. Uma meta-análise desses estudos vai pegar todos os dados dessas pesquisas,
e por meio de métodos estatísticos, chegar a uma conclusão sobre o que esses
dez estudos concluíram.
Quem
nunca ouviu? “É preciso tomar café da manhã, menino!” Quantas vezes não ouvi
isso de minha mãe. Ou quando uma nutricionista é entrevistada “sim, o café da
manhã e a refeição mais importante do dia, não se pode pular de jeito nenhum”.
Um médico falou essa pérola para a minha mulher antes dela engravidar. É óbvio,
é conhecimento comum, é como “coma fibras para melhorar sua função intestinal” (obs: não há provas que isso seja verdadeiro), ou frutas para ser saudável.
Imagina
até um profissional de saúde citando a conclusão desse estudo do ano de 2011 (uma meta-análise de estudos observacionais sobre o tema):
This meta-analysis
suggests that a positive association between skipping breakfast and overweight
and obesity is globally observed regardless of cultural diversity among
countries. Promoting the eating of breakfast in all populations may be
beneficial.
(Essa meta-análise sugere que uma
associação positiva entre pular o café da manhã e sobrepeso e obesidade é
globalmente observada, independente da diversidade cultural entre países.
Promover o consumo de café da manhã em todas as populações pode ser benéfico
Uau.
Potente, uma meta-análise dizendo isso. Porém, é apenas uma hipótese que não
comer café da manhã causa um ganho de peso e obesidade. E os cientistas
testaram essa hipótese. Será que essa associação se mostrou verdadeira?
O maior
nível de evidência científica é uma meta-análise entre experimentos clínicos.
Foram ao longo dos anos realizados diversos experimentos. Ou seja, a um grupo
aleatoriamente divido pedia para não se comer café da manhã (grupo
experimental) e a outro pedia para se comer café da manhã normalmente. Essa meta-análise do ano de 2019 pegou 13 experimentos desse tipo, não dois ou três, mas treze
experimentos controlados. O resultado?
Conclusion This
study suggests that the addition of breakfast might not be a good strategy for
weight loss, regardless of established breakfast habit. Caution is needed when
recommending breakfast for weight loss in adults, as it could have the opposite
effect. Further randomised controlled trials of high quality are needed to
examine the role of breakfast eating in the approach to weight management.
(Conclusão: Esse estudo sugere
que a adição de café da manhã pode não ser uma boa estratégia para a perda de
peso, independentemente do hábito estabelecido de comer café da manhã. Cautela
é necessária quando recomendado café da manhã para a perda de peso em adultos,
já que isso poderia ter o efeito oposto. Mais experimentos ramdomizados de alta
qualidade são necessários para examinar o papel de comer café da manhã no
manejo do controle de peso)
Auch!
Mas é o oposto do que a meta-análise dos estudos observacionais de 2011
concluiu. Não é algo como um pouco diferente, é literalmente o oposto. A
hipótese de que não comer café da manhã causa ganho de peso não é só falsa,
como aparentemente é o oposto que ocorre (quem não toma café da manhã tende a
perder peso).
Vejam, não é que a ciência mudou em relação a hipótese de se comer ou não café da manhã para fins de perda de peso. Não. Nunca existiu a evidência científica robusta sobre a hipótese. O que existia era apenas uma hipótese que se mostrou falsa, independentemente do que o seu nutricionista ache ou pense.
Entenderam
prezados leitores o perigo de se fazer recomendações baseado em evidências
fragilíssimas? O mal que isso não pode ocasionar? Foi exatamente o que ocorreu
com nossas sociedades nos últimos 40 anos. O mais incrível é que você
continuará ouvindo de profissionais de saúde que é “loucura pular o café da
manhã”. Você pode até argumentar "mas e
a meta-análise de 2019 sobre experimentos controlados que concluiu o oposto?" E
é possível que o profissional dê de ombros, e não entenda nem mesmo a diferença
entre uma associação e uma relação causal, e mantenha-se na afirmação errônea sobre
café da manhã.
É
isso, colegas. Esse artigo junto com o primeiro, e mais um que produzirei sobre
riscos relativos e absolutos já serão uma boa base para se navegar sobre o
arsenal de bobagens que são ditas por aí.
Um
abraço!