A habilidade de ganhar dinheiro é apenas uma habilidade derivada da nossa necessidade de sobrevivência. Para mim, a história de uma mulher que foi estuprada por 40 homens ao mesmo tempo, teve três dos seus cinco filhos assassinados, habitando um país esquecido e desolado como a República Democrática do Congo, e mesmo assim consegue sobreviver, sorrir e criar os seus outros dois filhos, é uma história muito mais extraordinária do que alguém que saiu de uma família mais humilde e construiu uma rede de padarias de sucesso, por exemplo. São histórias de sobrevivência humana, e metade da população humana, mais de 3 bilhões de seres humanos, vive com menos de dois dólares por dia, e a história dessas pessoas, a capacidade de sobrevivência, me impressiona mais do que a habilidade eventual de ganhar dinheiro num país de renda média como o Brasil.
Feitas as devidas digressões, foco no tema do presente artigo. Ultimamente, pelos blogs que às vezes acompanho, poucas postagens estão sendo feitas sobre temas relacionados estritamente ao mercado financeiro. Pois bem. O colega Além da Poupança escreveu um artigo sobre mais uma simulação, usando vários métodos. Como sempre a postagem foi interessante. Entretanto, ao passar pelos comentários, o que me chamou a atenção foi para uma resposta do colega do blog Di Finance (um dos blogueiros que se mantém fiel à tradição de focar em textos sobre finanças, o que é bom em minha opinião). Eu não sei dar control C e V nesse sistema operacional, mas o blogueiro dizia textualmente que finalmente tinha entendido a mensagem de Buffett sobre o mercado e que o mesmo serviria apenas para manter o patrimônio acumulado, não para multiplicá-lo, pois do contrário seria muito arriscado. Gostaria de refletir um pouco sobre os diversos conceitos e ideias existentes na afirmação citada alhures. Os comentários a seguir são feitos apenas com o intuito de reflexão e em maneira nenhuma constituem uma provocação, continuo acreditando que a melhor forma de evoluirmos é questionando conceitos, ideias, etc.
Primeiramente, eu penso ser temeroso achar que, a não ser que o indivíduo em questão tenha expressamente dito, falar que entendemos o que alguma pessoa pretensamente quis dizer. Se é difícil com uma pessoa conhecida, imagina saber o que um dos maiores investidores financeiros de todos os tempos realmente pensa sobre o mercado. Isso é tarefa para um biógrafo que realmente se debruça sobre a vida do investidor em questão. Entretanto, é possível que uma pessoa realmente tenha captado o que alguma personalidade do mercado realmente pensa.
Então, o mercado deve ser utilizado apenas para a manutenção do patrimônio? Se isso é verdade, e a pessoa acredita nisso, então a estratégia é simples. Qual o ativo, para qualquer investidor internacional, tem-se mostrado resiliente ao longo do tempo como forma de manutenção do valor? Sim, o vil metal poeticamente descrito por Shakespeare: o ouro. Há ciclos, há momentos de euforia e depressão, mas em longos períodos o ouro tende a ser uma ótima forma de manutenção do poder de compra de uma pessoa, ou seja o patrimônio é mantido. Assim, a pessoa deve apenas focar nos aportes e na taxa de poupança. Se ganha 3 mil, tentar ganhar 10 mil. Se ganha 10 mil, talvez tentar ganhar 20 mil. Se economiza 30%, talvez tentar economizar 50%. Encontrar uma forma segura e eficiente para se investir em ouro e a estratégia está montada.
Porém, será que é assim que funciona? Primeiramente, nenhum doutrinador de finanças irá dizer, até porque contrário aos resultados históricos na esmagadora maioria dos países, que o mercado é uma forma apenas de manutenção do patrimônio. O próprio Buffett é a antítese dessa interpretação, pois ele é o mago da multiplicação do patrimônio sobre sua responsabilidade. Além do mais, a afirmação contesta o princípio básico de valor do dinheiro no tempo. Explico-me no próximo parágrafo.
O motivo mais aceito sobre a existência de juros é a questão da preferência temporal. Se vou abrir mão de um consumo hoje, faz sentido que eu consuma mais amanhã, esse meu esforço de não consumir hoje deve ser recompensado, isto é remunerado. Quem já viu vídeos sobre o famoso teste do marsmallow com crianças, conseguirá entender a questão da preferência sobre o adiamento do consumo. Atualmente, devido à existência de juros nominais negativos em títulos não apenas de curta mas de longa maturação de alguns países europeus, há alguns questionamentos sobre se essa premissa em relação aos juros é correta ou não. Há textos interessantes no site do Instituto Mises Brasil sobre o assunto e eu sugiro a leitura, já que não é o foco desse artigo. Partirei da premissa que o consumo adiado deve ser recompensado, ou seja a poupança acumulada deve ser de alguma maneira remunerada.
Se o capital acumulado deve ser remunerado, parece uma conclusão óbvia que o mercado é uma maneira natural de crescimento do patrimônio, e não apenas de manutenção do mesmo, já que o capital acumulado, ou seja a poupança, deve ser remunerado (sobre o assunto, diversos textos do Mises e o Livro do Piketty são dois nortes para visões com perspectivas diversas sobre o tema). Se assim não o fosse teríamos que admitir que não há a questão de preferencia temporal. Logo, se alguém possui capital acumulado, é natural que haja remuneração desse capital. Se há renda do capital e a mesma não é totalmente consumida, mas parte reinvestida, então o patrimônio deve necessariamente crescer e não apenas se manter.
Porém, a questão principal não é nem o aspecto teórico discutido nos parágrafos acima, mas sim outra questão mais prática e tangível: o risco. Poetas escrevem de maneira muito peculiar sobre a ideia de que uma vida sem riscos não vale a pena ser vivida. Pensem, caros leitores, em algumas conquistas suas, ou histórias divertidas, e reflitam se não envolveu algum tipo de risco (nem que seja o risco de ser "ridicularizado" por outros). Eventuais empreendedores, creio não haver muitos leitores empreendedores desse blog (acho que preferem blogs de empreendedores como o Corey e o Rover), podem responder se as eventuais histórias de sucesso não envolve certo tipo de risco. Até um guru de avaliação de ativos como o Damodaran diz em seus ótimos textos do seu blog que a partir de certo limite não se pode mais estimar muita coisa, e que uma certa dose de risco sempre estará envolvida. Logo, o risco faz parte da nossa vida. É evidente que devemos tentar mensurar os riscos que valem ou não a pena correr. Porém, uma vida mais significativa, e falo aqui num escopo muito maior do que apenas finanças, necessariamente apresentará mais riscos do que uma vida mais "acomodada". Aliás, assumir riscos é o que leva à humanidade para frente, nos faz evoluir.
E se o risco se materializar de forma negativa e realmente um evento ruim acontecer? Bom, se não for o risco de morte ou de ficar com alguma incapacidade física severa, eu pergunto e daí? E se for para pessoas jovens, o meu "e daí?" será ainda mais enfático. Foi abrir uma loja, não deu certo, perdeu dinheiro, levante-se de novo. Foi prestar um concurso não passou, tente de novo. "Soul, eu entendo e concordo, mas riscos financeiros do mercado não são diferentes?" alguém pode pensar. Sim, claro que são. É por isso que eu descobri uma estratégia mais confortável para mim, mexer com certos tipos de investimentos onde eu tenha mais capacidade de mensurar os riscos e retornos associados. Também acredito, e talvez tenha sido essa a mensagem, apesar de não ser a literalidade do escrito, do Di Finance, de que enriquecer facilmente, multiplicar diversas e diversas vezes o patrimônio, em pouco tempo com produtos financeiros seja uma ilusão. É verdade, também acho. Porém, uma taxa real de crescimento de "apenas" 4% aa faz com que o patrimônio em aproximadamente 36 anos (época de uma geração) multiplique por 4. Pode parecer pouco, mas o meu pai sempre me falou isso, e hoje eu consigo entendê-lo melhor. Se a pessoa tiver dois herdeiros, eles serão duas vezes mais ricos do que a geração anterior. Isso é multiplicação do patrimônio e é como os países ricos se tornaram ricos e como muitas famílias se tornaram ricas e permanecem ricas. Se a taxa for de 6% aa, o patrimônio será 8 vezes maior, e os herdeiros 4 vezes mais ricos. Assim, a poupança acumulada pode sim fazer uma diferença enorme para gerações futuras ou para longos períodos de tempo.
Portanto, em minha opinião, os mercados não são instrumentos apenas de manutenção do patrimônio. Além do mais, riscos não são para ser evitados a todo custo. Riscos desnecessários talvez, não qualquer tipo de risco. A vida fica muito mais colorida quando nos arriscamos. Falando em risco, amanhã vou de skydive a mais de 15.000 pés, risco desnecessário? Eu acho que não, penso que será uma experiência fantástica.
Será que vale a pena correr riscos? Será que o maior risco de pessoas que possuem o mínimo existencial assegurado não é levar uma vida abaixo, em alguns casos bem abaixo, do seu potencial?
Abraço a todos!