Olá, colegas. Eu já submeti o esboço dos meus escritos que podem vir a se tornar um livro sobre leilão a alguns advogados e professores de processo civil. O fiz principalmente na parte técnica. Quase todos disseram que achavam que seria cansativo para um público leigo a leitura de algumas partes. Eu procurei escrever da maneira mais clara e acessível possível, sem perder as nuances técnicas, numa forma de escrita que adoto aqui nos artigos do blog. Não tem como tratar esse tema de forma séria, sem as simplificações grosseiras de quase todo o material que existe, sem citar um monte de lei e de jurisprudência. Afinal, muitas pessoas leigas estão dispostas a colocar quantias razoáveis de seus patrimônios em imóveis de leilão, e não faz sentido fazer isso sem ter uma boa informação. Assim como não faria sentido operar 400 mil reais de derivativos cambiais sem ter qualquer conhecimento prévio sólido.
Portanto, vou disponibilizar uma pequena seção da parte técnica sobre leilões extrajudiciais. São 5 folhas num total escrito de 300 páginas sobre a parte jurídico-técnica de leilões judiciais e extrajudiciais. O esboço do livro ainda conteria mais 250 páginas sobre aspectos comportamentais, jurídicos mais gerais, práticos, financeiros e de imóveis propriamente dito. Gostaria de saber se o texto apresentado aqui está acessível e compreensível.
Por fim, o assunto tratado não é compreendido muito bem nem por advogados. Um bom amigo meu me ligou ontem pedindo meu posicionamento sobre o tema que trato abaixo, e principalmente o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (provavelmente ele tem algum caso que vai ser analisado por essa instância). Este amigo é sócio de um dos melhores escritórios de advocacia do Estado e tem um ex-ministro do STJ como sócio. Ou seja, a qualidade técnica ali é alta e não se compara com a média dos advogados. A qualidade técnica de defesas que já vi em casos de leilão de imóveis valendo centenas de milhares de reais às vezes pode ser muito deficiente, sendo generoso.
O tema é minucioso e possui enorme repercussão para quem quer comprar imóveis em leilão sem depender apenas da sorte. Para se ter ideia, há três semanas participei de um leilão que começou em 450k, e quando chegou a 850k, eu parei de dar lance. Creio que o imóvel deveria valer entre 1,8 a 2m. A principal linha de defesa do devedor era um Recurso Especial interposto para o STJ alegando bem de família (havia outras teses, o caso era complexo até do ponto de vista processual). Eu achei que nesse caso a tese jurídica era fraca, e valia a pena participar do leilão.
No mesmo dia, mas de tarde, deixei de dar lance num imóvel também inicial de 450k que deveria valer algo em torno de 1,2m. Não houve disputa, e apenas uma pessoa deu lance. No caso em concreto, depois de análise, eu tinha convicção de que a alegação de bem de família no caso concreto poderia ser uma grande fragilidade se eu me colocasse na posição de arrematante. Não sei se os devedores vão contratar algum advogado que saiba explorar essa deficiência (pela minha experiência poucos advogados sabem ser cirúrgicos naquilo que pode ter chance e se perdem em outras defesas, ao menos na questão de anulação de leilões), mas preferi não me colocar numa posição vulnerável, mesmo com possibilidade de vultosos ganhos (depois desses dois leilões narrados, adquiri dois imóveis com valores e margens parecidas e riscos jurídicos muito diminuídos, paciência é uma virtude). Se fosse eu na defesa jurídica dos ocupantes do imóvel retratado, eu travaria esse imóvel por alguns anos e levaria a discussão para o STJ sem sombra de dúvidas.
Os dois últimos parágrafos foram apenas exemplos pessoais meus recentes com o tema abaixo. Essa é apenas uma defesa, das treze que listo em relação a leilões extrajudiciais. Ou seja, isso é apenas a ponta do iceberg. Feedback sobre a construção do texto e inteligibilidade são bem-vindos.
A Alegação De Bem de Família
Uma
defesa usada com freqüência por devedores fiduciantes é alegação de bem de
família. A conceituação desse instituto
jurídico, bem como os seus pormenores, já foi feita em capítulo anterior. Apenas como rápida recapitulação, bem de
família é o imóvel único que serve de morada de uma entidade familiar e que não
é suscetível de ser penhorado por dívidas de qualquer natureza, salvo algumas
exceções legais contidas na Lei n° 8009/90.
Essa é uma defesa que costuma ser rechaçada por decisões judiciais,
sendo, portanto completamente ineficaz. A razão é simples. Quando o imóvel é
fornecido como garantia real de uma dívida, o art.3º, V, da Lei n° 8009/90
expressamente aduz que o imóvel, mesmo que seja a única morada familiar, perde
a condição de impenhorável:
“Art. 3º A
impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal,
previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido
V - para
execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou
pela entidade familiar;”
Como a Lei é de 1990, e alienação fiduciária de
bens imóveis foi estabelecida no Brasil apenas com a Lei n° 9.514 de 1997, o
artigo em questão não menciona alienação fiduciária, mas apenas hipoteca. Contudo,
se um devedor que dá um imóvel em hipoteca como garantia real, onde não há a
transferência de propriedade, perde a possibilidade de argüir bem de família se
houver uma execução direta sobre o bem ofertado, com muito mais razão quem
oferece um bem em alienação fiduciária, onde há a transferência da propriedade
resolúvel para o credor fiduciário, não pode vir a alegar a impenhorabilidade
do imóvel.
Aliás, a própria noção de impenhorabilidade a um
bem dado em garantia fiduciária não é tecnicamente correta, pois um imóvel dado
em alienação fiduciária não será penhorado se houver início o procedimento de
execução extrajudicial. Na bem da verdade, a jurisprudência pátria é pacífica
no sentido de impossibilidade de penhora de bem imóvel alienado
fiduciariamente. É possível apenas a penhora dos direitos sobre o bem dado em
garantia fiduciária seja na posição do devedor fiduciante (o direito de pagar a
dívida e ter direito a ser de novo o proprietário) ou do credor fiduciário (o
direito de receber o débito devido pelo fiduciante). O imóvel em si é
impenhorável:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO.
EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DÉBITOS CONDOMINIAIS. OBRIGAÇÃO PROPTER REM.
PENHORA DE IMÓVEL ALIENADO FIDUCIARIAMENTE. IMPOSSIBILIDADE. MERO EXERCÍCIO DE
POSSE DIRETA PELA EXECUTADA. BEM DE PROPRIEDADE DO CREDOR FIDUCIÁRIO QUE NÃO
INTEGRARA A RELAÇÃO PROCESSUAL. RECURSO DESPROVIDO. 1. (...) . 2.Somente
após a quitação de todas as parcelas do financiamento é que a propriedade do
imóvel consolida-se em benefício do devedor fiduciante, conforme artigo 1.361
do Código Civil, razão pela qual, na oportunidade, não se admite a penhora do
bem gravado com cláusula de alienação fiduciária, mas apenas a de eventuais
direitos consecutivos do contrato de alienação fiduciária (...).
(07119267220178070000, Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Relator
Cesar Loyola, 2ª Turma Cível, julgado em 25/10/2017)” (destaque nosso)
Em
termos mais concretos, isso significa que se, por exemplo, João é um devedor
fiduciante de uma obrigação de R$ 200.000,00 em benefício de um credor
fiduciário, sendo que o imóvel dado em garantia é avaliado em R$ 400.000,00, o
que se pode penhorar são os direitos tanto de devedor como do credor. E quais
seriam esses direitos? O devedor tem o direito de pagar R$ 200.000,00 para
adquirir um imóvel que é avaliado em R$ 400.000,00, e o credor tem o direito de
receber a dívida de R$ 200.000,00. Entretanto, o imóvel em si, avaliado em R$
400.000,00, não pode ser penhorado.
Portanto,
em que pese a completa imprecisão técnica de se opor impenhorabilidade do bem
de família numa defesa judicial em relação à execução extrajudicial de um bem
dado em garantia fiduciária, o simples fato é que o art. 3º ,V, da Lei n°
8009/90 expressamente diz que o devedor não pode alegar bem de família para
evitar que bem imóvel dado em garantia não seja executado para o pagamento de
dívida de credor com garantia real. A
razão de ser do dispositivo legal é que não seria compatível com a boa-fé
oferecer um bem em garantia para o pagamento de uma dívida, e depois alegar que
esse bem não poderia servir como garantia.
Seja como for, a alegação de bem de família para evitar que um imóvel
seja vendido num leilão extrajudicial da Lei n° 9.514/97 não costuma prosperar
em nossos Tribunais:
“EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO -
PRELIMINAR - INÉPCIA RECURSAL - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - BEM DE FAMÍLIA - VENDA
DO IMÓVEL - SUSPENSÃO DO PROCEDIMENTO - TUTELA PROVISÓRIA - AUSÊNCIA DE
REQUISITOS. (...). Ao imóvel dado em garantia fiduciária à instituição
financeira, não se aplica a regra da impenhorabilidade, por força do art. 3º,
inciso V, da Lei 8.009/90. (...)
Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.16.076114-4/001, Tribunal de Justiça de
Minas Gerais, Relator(a): Des.(a) Evangelina Castilho Duarte , 14ª Câmara
Cível, julgado em 16/02/2017)” (destaque nosso)
“EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO.
TUTELA ANTECIPADA REQUERIDA EM CARÁTER ANTECEDENTE. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA.
IMÓVEL OFERTADO EM GARANTIA. BEM DE FAMÍLIA. MORA NÃO PURGADA. BOA-FÉ OBJETIVA.
PROBABILIDADE DO DIREITO. AUSÊNCIA. I - (...) - Ao imóvel livremente ofertado como
garantia em alienação fiduciária, não se aplica a impenhorabilidade do bem de
família. III - O princípio da boa-fé objetiva exige dos contratantes a
adoção de postura ética e leal, devendo o julgador aplicar a Lei 8.009/1990 em
consonância com tais princípios de forma a vedar a má-fé contratual e permitir
que as obrigações sejam cumpridas em conformidade com o avençado.
(Agravo de Instrumento-Cv 1.0043.17.001585-3/001, Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Relator(a):
Des.(a) Vicente de Oliveira Silva , 10ª CÂMARA CÍVEL, julgado em 12/09/2017)”
(destaque nosso)
“DIREITO CIVIL E PROCESSUAL
CIVIL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL. BEM DE FAMÍLIA. EXECUÇÃO
EXTRAJUDICIAL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. FALTA DA VEROSSIMILHANÇA. PROVA
INEQUÍVOCA. INDEFERIMENTO. 1. (...). 2. A mera alegação de que se trata de bem
de família não possui o condão de desconstituir obrigação contratual assumida
de livre e espontânea vontade pela parte, sem a qual o negócio não teria se realizado.
3. (...) (20150020001185AGI, Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Relator
Maria de Lourdes Abreu, 5ª TURMA CÍVEL, julgado em 15/04/2015)”
Sendo assim, alegações de
bem de família para desconstituir a garantia fiduciária fornecida pelo devedor
fiduciante não são eficazes em juízo. Entretanto, há uma linha de defesa em
relação à alegação de bem de família que pode ser extremamente eficaz, levando
eventualmente a anulação da garantia fiduciária, bem como de eventuais
arrematações extrajudiciais realizadas sobre o bem.
A a Lei n° 10.931/04 previu em seu artigo 51 que todos os
tipos de obrigação, inclusive prestadas para garantir dívidas de terceiro,
poderiam ser garantidas por imóveis alienados fiduciariamente. Isso foi uma
inovação na legislação pátria, já que anteriormente a esta mudaça legislativa o
oferecimento de garantias fiduciárias era limitado a financiamentos
imobiliários em nome próprio. Essa é a redação do artigo:
“Art. 51. Sem prejuízo das disposições do
Código Civil, as obrigações em geral também poderão ser garantidas,
inclusive por terceiros, por cessão fiduciária de direitos creditórios
decorrentes de contratos de alienação de imóveis, por caução de direitos
creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou promessa de
venda de imóveis e por alienação fiduciária de coisa imóvel.” (destaque
nosso)
Destarte, a partir dessa
inovação legal uma gama enorme de empréstimos, inclusive prestados por
terceiros, poderia ser garantido com alienação fiduciária, o que tornava a
operação muito mais segura para o credor, e mais barata para o devedor em
termos de juros pagos pela obrigação assumida.
Começou então a ser normal que pessoas jurídicas (empresas) tomassem
empréstimos junto a instituições financeiras fazendo com que terceiros (pessoas
físicas) fornecessem bens imóveis em alienação fiduciária para garantir a
operação.
Suponha-se a
situação onde a empresa A toma um empréstimo de R$ 300.000,00 junto à
instituição financeira X para obter capital de giro. Para garantir a obrigação
Pedro aliena fiduciariamente imóvel de sua propriedade à instituição, bem este
avaliado em R$ 350.000,00. Sendo assim,
a situação jurídica do exemplo hipotético é a seguinte: a empresa A é o devedor
fiduciante, a instituição financeira X é o credor fiduciário e Pedro é um
terceiro que forneceu um imóvel para garantir a operação. Esse tipo de situação já ocorria com
hipotecas.
Para situações
semelhantes envolvendo garantia hipotecária, muitos devedores que deram o bem
em hipoteca para assegurar dívidas de terceiros começaram a alegar
judicialmente que, em que pese o fornecimento do bem como garantia, o art. 3º,
V, da Lei n° 8009/90 não poderia ser aplicado. Assim sendo, mesmo que o
terceiro garantidor tenha se comprometido com o oferecimento do imóvel em
hipoteca, o mesmo não poderia ser penhorado, caso ficasse provado que o imóvel
era bem de família. Na opinião do autor
desse livro, isso viola claramente a lealdade contratual que deve se esperar de
todos os intervenientes num contrato. Porém, apesar disso, o Superior Tribunal
de Justiça adotou o entendimento de que para essas situações, para a garantia
hipotecária ser considera válida e eficaz, não sendo possível a alegação de
impenhorabilidade do bem de família, seria necessária a comprovação de que de
alguma maneira a entidade familiar se beneficiou do empréstimo garantido por
hipoteca. Nesse sentido pode-se citar o seguinte julgado da corte superior:
“AGRAVO
REGIMENTAL NO AGRAVO (ART. 544 DO CPC) - EMBARGOS À EXECUÇÃO - IMPENHORABILIDADE
DO BEM DE FAMÍLIA – DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO. IRRESIGNAÇÃO
DA EMPRESA EMBARGADA.
(...) 2.
A exceção do art. 3º, V, da Lei 8.009/90 não se aplica às hipóteses em que a
hipoteca é dada em garantia de mútuo contraído por sociedade empresária cujo
sócio é titular do imóvel gravado ou quando o empréstimo foi adquirido em
benefício de terceiro. A impenhorabilidade do bem de família só não será
oponível nos casos em que o empréstimo contratado foi revertido em proveito da
entidade familiar. Precedentes. 3.
Agravo regimental desprovido, com aplicação de multa. (AgRg no AREsp 48.975/MG, Quarta Turma, Relator
Ministro Marco Buzzi, DJe de 25/10/2013)”(destaquenosso)
Assim sendo, o Superior Tribunal de Justiça interpretou o art.3º,
V, da Lei n° 8.009/90 que só faria sentido uma entidade familiar perder a
proteção da impenhorabilidade do bem de família, caso houvesse um claro
proveito econômico dessa mesma entidade familiar. No caso de oferecimento de um
imóvel em garantia hipotecária para a dívida de um terceiro, esse proveito
econômico não é uma certeza. Podem ter casos que o proveito exista, podem ter outros
casos que isso não ocorra. Como saber?
Primeiramente, é de se reconhecer que o mesmo raciocínio aplicado
a hipoteca, pode-se aplicar-se a alienação fiduciária de bens imóveis, apesar
de, como já discorrido, tecnicamente não ter sentido falar em impenhorabilidade
em relação a uma garantia fiduciária. O
Tribunal de Justiça de Pernambuco já decidiu nesse sentido:
“AGRAVO INTERNO EM AGRAVO DE
INSTRUMENTO. HIPOTECA. PRELIMINAR. MOTIVAÇÃO SUFICIENTE. NULIDADE AFASTADA.
MÉRITO. BEM DE FAMILIA DADO EM GARANTIA DE CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. INEXISTENCIA DE PROVA DE PROVEITO DA ENTIDADE
FAMILIAR. IMPENHORABILIDADE. RECURSO IMPROVIDO. 1. (...) . 3.. Mérito. Nos
termos da Lei nº 8.009/90 e do Código Civil (arts. 1.711 e seguintes) o imóvel
de residência do casal, ou da entidade familiar, é, regra geral, impenhorável.
As exceções à proteção legal ao domicílio familiar acham-se expressamente
arroladas no art. 3º da Lei nº 8.009/90, distribuídas dentre os seus incisos I
a VII. 4.. "A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no
sentido de que "a finalidade da Lei 8.009/90 não é proteger o devedor contra
suas dívidas, mas visa à proteção da entidade familiar no seu conceito mais
amplo, motivo pelo qual as hipóteses de exceção à impenhorabilidade do bem de
família, em virtude do seu caráter excepcional, devem receber interpretação
restritiva" (AgRg no AREsp 537.034/MS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA
TURMA,DJe 1.10.2014).5.. Ao menos em sede de cognição sumária, própria do
presente estágio processual, a inexistência de prova de que o crédito
percebido pelos agravantes tenha sido revertido em prol da família. 6. (...)(Agravo
447190-70008778-52.2016.8.17.0000, Tribunal de Justiça de Pernambuco, Relator
Jones Figueirêdo, 4ª Câmara Cível, julgado em 16/03/2017)” (destaque nosso)
Portanto, parece claro que os Tribunais Pátrios terão uma
tendência forte de interpretar a validade da alienação fiduciária de maneira
semelhante como o STJ fez com a hipoteca. No exemplo hipotético, se Pedro não
tivesse qualquer relação com a empresa A, seria muito difícil dizer que o
empréstimo contraído pela pessoa jurídica de alguma maneira aproveitou a
entidade familiar da qual Pedro faz parte. Logo, haveria uma grande
possibilidade da garantia fiduciária, acaso Pedro questionasse judicialmente,
ser considerada inválida e impossível de ser executada extrajudicialmente.
Agora, se Pedro fosse sócio da empresa? Aqui a interpretação fica
mais sutil e subjetiva. Nos casos onde
as pessoas físicas que deram o bem em garantia para assegurar dívida de uma
empresa sejam as únicas sócias dessa mesma companhia, fica muito difícil
argumentar que o empréstimo não aproveitou a entidade familiar. Ora, se Pedro é
o único sócio da empresa A, parece claro que o empréstimo concedido beneficiou
diretamente a Pedro, pois o sucesso da empresa reverterá em benefícios claros
para a sua entidade familiar. O bem dado
em garantia fiduciária nesses casos muito provavelmente não será considerado
bem de família para fins de proteção legal do devedor:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO
DE CONHECIMENTO. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. INADIMPLEMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA
EM GARANTIA. BEM DE FAMÍLIA. CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA EM FAVOR DO
CREDOR. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. REQUISITOS DO ART. 273 DO CPC. DECISÃO MANTIDA.
1. (...) 2. No caso dos autos, não se encontram presentes os requisitos
autorizadores da concessão da medida emergencial, porquanto os agravantes
assumiram a condição de avalistas, em cédula de crédito bancário, em que a
devedora principal era sociedade empresária da qual eram os únicos sócios.
2.1. A exceção à impenhorabilidade do bem de família, prevista no art. 3º,
inc. V, da Lei 8.009/90, incide quando o imóvel é dado em garantia de dívida da
própria entidade familiar, o que ocorre no presente caso, pois a obrigação
garantida é de responsabilidade dos agravantes, únicos sócios da empresa devedora.
3. Precedente do STJ. 3.1 "1. É autorizada a penhora do bem de família
quando dado em garantida hipotecária da dívida contraída em favor da sociedade
empresária, da qual são únicos sócios marido e mulher. (REsp 1435071/PR, Rel.
Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe 06/06/2014). 4. Agravo desprovido.(,
20150020074899AGI, Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Relator João Egmont, 2ª Turma Cível, julgado
em 27/05/2015)” (destaque nosso)
Por outro lado, quando
as pessoas físicas ofertantes da garantia fiduciária forem sócias da empresa,
mas não as únicas sócias, a análise deverá ser feita no caso concreto para
comprovar se o empréstimo à companhia beneficiou de fato a entidade familiar
daqueles que deram o bem em garantia. Parece claro que há ao menos um forte
indício de que um empréstimo feito a uma pessoa jurídica irá beneficiar o seu
sócio, mesmo que ele não seja o único, e por via de conseqüência a sua entidade
familiar. Entretanto, reconhece-se que há espaço para argumentação de caráter
mais subjetivo nessa situação.
Por fim, é
preciso ressaltar que a impenhorabilidade do bem de família diz respeito a
apenas um imóvel da entidade familiar. Logo, não necessariamente, mesmo que não
tenha beneficiado a entidade familiar, um bem dado em garantia fiduciária para
assegurar dívida de um terceiro será considerado bem de família. Portanto, essa
defesa só poderá ser eficiente em relação ao devedor, caso realmente se
comprove que o bem oferecido como garantia constituir-se-ia bem de família e
que o empréstimo não beneficiou a entidade familiar.