Olá, colegas! No artigo de hoje escrevo um pouco sobre a documentação exigida pela nossa legislação quando se trata de imóveis, bem como esclareço uma confusão muito comum cometida por quase todas as pessoas sem conhecimento técnico da área. Qual seria? Dizer que um imóvel não tem escritura. Para entendermos a razão disso, é preciso detalhar, nem que seja superficialmente, alguns conceitos jurídicos.
Um dos princípios basilares do direito privado é a autonomia da vontade. Basicamente, significa que as partes envolvidas em qualquer tipo de negociação são autônomas para livremente pactuarem o que bem entenderem. Evidentemente, e sendo o Brasil um país com uma grande tendência paternalista, há inúmeras exceções a essa regra. O Direito do Trabalho é um exemplo disso. Há relativa autonomia para se negociar um contrato de trabalho, que nada mais é do que um contrato de prestação de serviços, já que há diversas disposições legais sobre o que pode e o que não pode constar num contrato regido pela Consolidação das Leis Trabalhistas, também conhecida como CLT, independente da vontade dos contratantes. Há diversas outras exceções em nosso sistema jurídico, mas a toda evidência não é a intenção desse artigo discorrer sobre elas.
Assim, caso não haja nenhuma disposição legal em contrário, dois indivíduos capazes juridicamente (há variados casos de incapacidade jurídica como menores de idade, pródigos, alienados mentais, etc) podem transacionar o que bem entenderem. E a forma como esses acordos de vontade se dão? Pode ser qualquer coisa? Um guardanapo com um rascunho de negócio serve como prova de um contrato de 500 mil reais ou não? Aqui, mais uma vez, a regra geral será que a vontade dos indivíduos poderá ser expressada de qualquer forma, seja verbal ou escrita, para que haja a perfectibilização de um negócio jurídico. Logo, não há teoricamente problemas de fazer qualquer contrato de forma verbal, a única dificuldade é relacionada a prova da existência desse contrato. Isso é um ponto interessante, pois muitas pessoas, inclusive operadores jurídicos com uma técnica não tão apurada, confundem a existência do direito com a prova deste mesmo direito, o que são coisas completamente diferentes. Portanto, um contrato verbal é juridicamente válido, porém difícil de ser comprovado num processo judicial sem que haja outros meios de prova.
Entretanto, a legislação brasileira excepciona alguns casos nos quais a forma de celebração de um acordo não é livre, mas sim determinada pela lei de antemão. É nessa categoria de contrato que entra as negociações de bens imóveis. A nossa legislação, mas especificamente o Código Civil Brasileiro, determina que os negócios jurídicos envolvendo imóveis devem ter a forma pública. O que isso quer dizer? Isso significa que para se comprar um apartamento, por exemplo, é preciso que haja um contrato escrito feito por um cartorário, sob pena do negócio não ter validade jurídica. Isso não se aplica a um veículo automotor, por exemplo. Alguém pode vender uma BMW por 250 mil reais e o contrato ser verbal. Não se pode comprar, todavia, do ponto de vista da validade jurídica, um Kitinete de R$50 mil reais sem a feitura de um contrato com assinatura de um tabelião. A razão disso é o art.108 do Código Civil:
"Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País."
Antes de mais nada, como tudo em direito, há exceções (como transações regidas pelo SFI - Sistema Financeiro Imobiliário, um resumo das exceções pode ser visto aqui), porém a regra geral é que negócios imobiliários devem ser feitos por meio de pública forma, ou escritura pública. Até mesmo se um pai quiser doar uma casa para o único filho, por exemplo, tal ato deve ser feito por meio de escritura pública.
Logo, colegas, a frase “o imóvel não tem escritura” não possui qualquer sentido jurídico. A escritura, pública no caso por determinação legal, é apenas a forma de se materializar um negócio jurídico envolvendo imóveis. Se assim o é, "por qual motivo quase todo mundo repete a mesma coisa?", alguém pode estar pensando. O que as pessoas querem dizer é registro imobiliário, não escritura.
O que é o registro imobiliário? Nada mais é do que um cadastro de todos os imóveis que existem numa determinada região. Assim, o 2 ofício de registro de imóveis da cidade de Criciúma-SC, por exemplo, é o local onde estão cadastrado todos os imóveis pertencentes a uma determinada região (geralmente essas subdivisões entre regiões são feitas por lei) da cidade catarinense em questão. Qualquer imóvel que ali exista deve estar registrado no registro de imóveis competente.
Se todos os imóveis já se encontram registrados, como um novo imóvel pode vir a existir em relação ao Registro de Imóveis? Com a criação de um “RG" próprio, que tecnicamente é chamado de matrícula imobiliária. Alguém possui um terreno de 10.000 m2 e quer dividir em dois terrenos de 5.000m2, como fazer? É preciso extinguir a matrícula imobiliária do terreno maior, e criar duas novas matrículas imobiliárias dos terrenos menores. Sendo assim, o terreno de 10.000m2 deixa de existir juridicamente, havendo agora dois imóveis novos de 5.000m2. É assim que se faz grandes loteamentos de terra, divergindo apenas na burocracia, pois loteamentos maiores de terra (loteamento na acepção jurídica é quando há divisão em terrenos menores com passagem de algumas áreas para a municipalidade para a feitura de obras públicas) envolvem mais etapas jurídicas e documentos do que um simples fracionamento de um terreno.
Na matrícula do imóvel irá existir todas as informações sobre o mesmo: dimensões, quem foi o primeiro dono, se há cláusula de usufruto, averbação de alguma ação judicial, etc, etc. É por meio da matrícula imobiliária que se consegue descobrir se há algum problema jurídico ou não, e quem é o dono de direito do imóvel. Essa última frase é essencial: para a legislação brasileira só é dono de um imóvel quem possui o mesmo registrado no competente registro imobiliário em seu nome. Se não está registrado no nome, juridicamente não se é dono do imóvel, simples assim.
Para aclarar mais esses conceitos, vamos imaginar o exemplo do terreno já citado. Vamos supor que o terreno de 10.000 m2 esteja devidamente registrado com matrícula imobiliária e esteja no nome de João. Vamos supor que João queira vender o terreno, mas tenha percebido que se ele vendesse o terreno em duas metades distintas, poder-se-ia conseguir mais dinheiro. João poderá vender dois terrenos, mesmo que ele não tenha feito o processo de fracionamento no Registro Imobiliário com a criação de duas novas matrículas e a extinção da matrícula do terreno maior? A resposta jurídica correta é não, pois na verdade está se vendendo algo que não existe do ponto de vista jurídico.
Se João encontrar um interessado em comprar metade do seu terreno (como um imóvel autônomo, não em condómino, pois nesse caso não haveria problema jurídico algum), nenhum cartorário irá lavrar escritura pública de compra e venda, pois simplesmente como não há matrícula imobiliária, a metade do terreno não existe como um imóvel autônomo. Não há como se tornar juridicamente proprietário de apenas metade do imóvel de 10.000 m2, sem haver o fracionamento do terreno no registro de imóveis, com a criação de uma nova matrícula.
“Soul, como assim não pode? É o que mais se tem em vários lugares do Brasil!”. É verdade. Porém, essas transações são feitas à margem da lei. Se alguém compra um terreno sem que esse tenha uma matrícula própria, para o direito brasileiro ele não será o dono do terreno. Evidentemente, há riscos em situações como essa.
Se eu quero comprar um apartamento que esteja devidamente legalizado com matrícula própria (posso escrever um artigo específico sobre como funciona tudo isso em condomínios de unidades autônomas), é muito fácil se precaver. Basta pedir uma certidão atualizada da matrícula imobiliária, ver se o vendedor é realmente o dono (vocês ficariam espantados na quantidade de pessoas que cometem erros banais como esse, de compras minhas de imóveis em leilões já peguei dois casos onde houve erro grave nesse quesito, inclusive por imobiliárias), se há algum ônus sobre o imóvel, etc. Como a forma do negócio deve ser pública, ou seja por escritura pública, depois de concretizado o negócio basta levar a escritura para registro no Registro de Imóveis. Se houver um due diligence básico, a chance de dar problemas é quase zero.
Agora, se uma pessoa compra um imóvel sem este ter matrícula, fica muito difícil saber se o imóvel pode ter algum problema, ou se o dono é realmente o vendedor. Além do mais, nada impede que o vendedor já tenha vendido o mesmo imóvel para mais de uma pessoa, aliás esse tipo de prática não é incomum. Não há absolutamente nada que se possa fazer para extirpar 100% esse risco, não há como. É por isso que terrenos sem matrícula, sem registro próprio, são mais baratos. É a velha relação, bem conhecida pelos leitores desse blog, entre risco x retorno. Pode-se ganhar dinheiro com isso, como em qualquer outra coisa. Se a pessoa tiver conhecimento e paciência, pode-se comprar terrenos e “legalizá-los”, ganhando um belo dinheiro em cima. É um nicho, como comprar imóveis em leilão, empresas em dificuldade, importação e exportação. Não há nenhum problema, desde que a pessoa saiba o que esteja fazendo, bem como possua check-lists para ao menos diminuir substancialmente o risco de perdas maiores.
Além do mais, imóveis que não possuem matrícula não podem ser usados como colateral. Em finanças, sempre que ouvir o termo “colateral" pense em garantia. Ninguém pode financiar a compra de um imóvel sem matrícula, pois nenhum banco emprestará dinheiro tendo como garantia um imóvel que não existe do ponto de vista jurídico. A questão é tão séria que muitos economistas de renome aludem que a informalidade fundiária em muitas comunidades pobres é algo que estanca e muito a possibilidade de crescimento econômico. Nisso, eles parecem ter toda razão. Quanto mais confiança e estabilidade jurídica, mais próspera é uma nação. Logo, quanto mais desconfiança e instabilidade jurídica, menos próspera é uma nação. Portanto, uma forma de se criar um dinamismo muito maior na economia, seria proporcionar formas de regularização fundiária, porém não irei me alongar nesse interessante tópico, mas posso voltar qualquer dia.
Há muitos outras temas relacionados que poderia abordar , mas vou ficando por aqui para que o artigo não se torne desnecessariamente longo. Se achar que o texto foi de valia para algumas pessoas, pretendo escrever outros a respeito de aspectos mais fundamentais em relação a imóveis para trazer um pouco mais de luz sobre o tema. Portanto, quando ouvir novamente alguém dizer “o imóvel não tem escritura”, pergunte para o interlocutor se ele na verdade não está querendo dizer matrícula imobiliária, se ele não entender, você, prezado leitor, já é capaz de explicar os motivos.
Grande abraço a todos!