Olá, colegas. Aproveitando que estou dois dias sem fazer muita coisa , pude colorar algumas coisas em dia e escrever um pouco também. Estou na ilha de Jeju, extremo sul da Coréia do Sul. Alguns dizem que é o Havaí da Ásia, não chegaria a tanto, apesar de não conhecer a ilha americana. Muita chuva e em modo de espera, porque o voo era bem mais barato dia de semana. É bom poder descansar um pouco do ritmo às vezes intenso da viagem. Neste artigo, escrevo sobre a cultura da maldade que se manifesta em nosso país. Resolvi abordar esse tema, principalmente por causa do alegado relato de estupro de uma adolescente por mais de 30 homens.
Nós brasileiros, enquanto sociedade, cultivamos o mal que há em cada ser humano. Não há qualquer dúvida em relação a isso. Se não acredita, basta ver os relacionamentos doentios que se desenrolam na internet , no trânsito ou em situações banais do dia a dia. O ódio é uma doença e afeta sobremaneira a vida das pessoas. É o ódio por uma opinião diferente, é a raiva por um outro motorista no trânsito, é o ódio contra pretensos criminosos, o ódio contra alguma agremiação política. Talvez por estar fora um determinado tempo e ter a oportunidade de conviver com tantas pessoas de culturas diferentes, é assustador para mim quando eu vejo como os brasileiros em sua maioria estão cedendo à raiva e ao ódio.
Antes de mais nada, isso é um sinal de fraqueza, não de força. Há uma cena muito bacana no filme “A Lista de Schinder”, quando Schindler já está no processo de salvar vidas e ele tenta convencer o Comandante do campo de concentração de Cracóvia (Amon Goth - interpretado por um dos melhores atores vivos atualmente -Ralph Finnes) de que poder era o ato de perdoar, não de matar. Ele faz a alusão com imperadores romanos, onde eles tinham o poder de decidir quem viveria ou não, e que a capacidade de perdoar alguém que cometeu alguma ilegalidade, esse era o verdadeiro poder. Era uma tentativa de Schindler de atenuar o comportamento homicida de Amon, e as cenas sucessivas são muito interessantes no filme.
Logo, se você sucumbe ao ódio, você é um fraco. Muitos anônimos, e alguns que se indentificam com certos nomes, acham que mensagens raivosas direcionadas a mim de alguma maneira me ofendem. É um erro. Essas mensagens só me mostram a fraqueza deles, e eu sinto vontade de ajudá-los. Um até mesmo me perguntou “como você pode desejar o bem de alguém que disse odiar você?”. Essa pergunta me fez refletir, o quão arraigada a cultura do mal pode estar numa pessoa e numa sociedade inteira. Como a falta de empatia pode ser uma constante na vida de tantos, e quando são confrontados com isso, simplesmente ficam confusos, não tem respostas, pois tudo o que é dito a eles que existe são mensagens de raiva e ódio. Sentirmos raiva é normal. É por isso que há períodos de luto, quando alguma grande tragédia acontece. Isso é normal e humano. Quando a raiva se torna uma constante em nossa vida, isso não é normal, isso é sintoma de uma doença.
Todos os comentadores de política, todos os blogueiros sejam de finanças ou não, todo mundo que se interessa minimamente pelo assunto diz em uníssono: “é preciso uma reforma política, se quisermos melhorar a qualidade dos nossos políticos”. Eu concordo. O que está por trás desse raciocínio? A ideia de que a maneira como as nossas estruturas políticas, partidárias e eleitorais estão configuradas são um grande incentivo para desvios de condutas. Isso é uma consequência lógica da afirmação sobre a necessidade de reforma política. Ora, se os políticos sempre se comportassem bem, não haveria necessidade de qualquer reforma. Qualquer sistema serve. Se os políticos sempre se comportarem mal, qualquer reforma sempre será ineficaz. Logo, acreditar que uma reforma política pode melhorar a qualidade de representação da nossa política, implica necessariamente, sob pena de contradição lógica, aceitar a ideia de que a forma como um determinado meio (instituições políticas) é estruturada causa uma determinada consequência (políticos melhores ou piores).
“Isso é evidente, Soul! E daí?”. Então, porque há tanta dificuldade de aceitar que nossos comportamentos nas mais variadas esferas são influenciados pelo meio que vivemos? Isso não é novo. O Buda Histórico disse isso há mais de 2500 anos, ao sugerir o caminho óctuplo para se atingir nirvana. Ele sugeriu falar corretamente, agir corretamente, pensar corretamente, etc. Ele sabia que como nós estruturamos nosso entorno tem influencia direta em quem nos tornamos. Como atingir um estado maior enquanto ser humano, se minhas falas e pensamentos não são adequados? Como atingir um estado de felicidade, se minhas falas e pensamentos são infelizes? O que as pessoas chamam de pensamento positivo, nada mais é do que uma consequência do que Buda disse há muito tempo. Muitos precisam passar por muitas situações na vida, ver que se vitimizar, ter pensamentos destrutivos em relação a si e a outros não leva a absolutamente a nenhum lugar, para daí começar a perceber o quão poderosa é essa mensagem.
O caso da menina aparentemente estuprada revela muitas nuances da nossa sociedade, muitas mesmos. Primeiramente, que as pessoas estão cada vez mais apressadas para fazer juízos de valor. Não importa se são acurados ou não. Se são reais ou não. Pessoas assim, e é realmente muito perigoso quando uma sociedade inteira se porta dessa maneira, são facilmente manipuláveis. Elas podem bater panelas, “desbater" panelas, destruir vida de pessoas, simplesmente sendo induzidas para agir dessa forma, independentemente da força ou acurácia das informações. Logo, no caso em comento, a polícia está correta em ter mínimas informações antes de tomar qualquer medida, principalmente se há notícia de informações conflitantes. O papel da polícia , e de qualquer órgão de controle como o MP ou o Judiciário, não é ser um vingador da emoção das pessoas, mas sim recolher evidências, fazer ilações lógicas e tomar as medidas preventivas que julgar necessárias para o esclarecimento de um alegado crime.
O outro aspecto que fica evidente é a polarização sem sentido, acrítica e absurda de qualquer tema no Brasil. Um caso horroroso de estupro, ou de exposição indevida de uma adolescente (caso não tenha havido o estupro), vira um debate entre esquerda e direita, entre feministas “alopradas" e pessoas tidas como “conscientes”, entre libertários e estadistas, é um verdadeiro show de horror.
Um terceiro aspecto é como as pessoas gostam de respostas simples. Isso é normal, isso é humano. Nada mais é do que o nosso sistema 1, o nosso sistema automático e mais preguiçoso de analisar o mundo, em plena ação. Uma resposta é porque vivemos numa sociedade machista. Isso é verdadeiro e muito real, mas isso pode explicar 50 mil estupros por ano? A outra é que não somos uma sociedade machista, e estes atos são praticados por pessoas más, “vagabundos”, mas pode isso explicar 50 mil estupros anuais?
Primeiramente, se foram 50 mil estupros no ano de 2014, o número atual deve ser muitas vezes maior. 50 mil são os casos reportados, a quantidade de mulheres que não fala nada por medo de represálias sociais ou até mesmo físicas, deve ser enorme. Quantos casos de estupro? 150 mil, 200 mil por ano? Não sei, o número qualquer que seja é mais ou menos horripilante a depender das estimativas, mas vamos nos ater ao número oficial.
O problema com a teoria dos “monstros" é que ela não se sustenta do ponto de vista lógico, nem estatístico. Não lembro quando foi, não sei se estava já namorando minha companheira, mas lembro-me de uma notícia tenebrosa. Um bando de pessoas armadas parou um ônibus de turismo vindo de Curitiba em direção ao Rio de Janeiro na entrada da cidade. Eles tocaram fogo no ônibus com as pessoas dentro, e várias tiveram queimaduras sérias, não recordo se alguma faleceu. Minha companheira uma vez pegou essa linha de ônibus, poderia ser ela, por um azar do destino, a pessoa a ter queimaduras sérias. Meu primeiro pensamento foi “isso foi obra de monstros, como alguém pode colocar fogo num ônibus com pessoas dentro ao esmo?”.
Mas daí, eu pensei “qual é a probabilidade estatística de várias pessoas realmente más existirem e habitarem o mesmo local?”. Vou partir do pressuposto de que existam pessoas muito más por natureza, seja o que essa expressão pode significar (e eu tenho vários “poréns” em relação a este assunto). Se isso é verdade, só pode ser um desvio genético , a pessoa nasceu com esta maldade inata. Se este fato também é verdadeiro, pessoas más devem nascer todos os anos em vários lugares do mundo. Assim, um maníaco do parque (lembram-se dele?) pode existir porque ele é inerentemente mau. Esta pode ser uma explicação. Agora, se 30 maníacos do parque existissem no mesmo bairro numa mesma cidade, alguma coisa estaria errada com a teoria dos “monstros”, pois não faz o menor sentido do ponto de vista estatístico, diversas pessoas más nascendo e vivendo no mesmo local.
Se assim também o é, por qual motivo se vê menos violência na Nova Zelândia ou na Austrália? Aliás, quase não se observa esse tipo de violência nos países citados. Não há pessoas más lá? Parece-me que a teoria “dos monstros” é no mínimo manca para dizer o mínimo. Parece que o ambiente onde as pessoas estão inseridas faz sim toda a diferença. A explicação apenas do caráter individual não é suficiente para explicar por qual motivo países se tornam extremamente violentos. A explicação dos “monstros" também é conveniente, pois é fácil, cria a ilusão de que é um problema em que nós não temos nenhuma responsabilidade. Já tratei sobre a noção de cidadão de bem (Cidadão de Bem?), e como ela não se sustenta em pé depois de uma análise mais criteriosa.
Por outro lado, e aqui muitas pessoas erram, as pessoas são responsáveis pelos seus atos. Se assim não o fosse, não seria possível estruturar uma sociedade. Logo, se alguém participa de um estupro coletivo, essa pessoa fez um ato abominável e precisa ser responsabilizada por sua conduta individual. Não se trata, como quase todos os textos sobre o tema, entre uma dicotomia entre responsabilidade individual e ausência de responsabilidade individual. É reconhecer que somos responsáveis por nossos atos, enquanto seres humanos com personalidades individuais, mas reconhecer que o ambiente onde estamos inseridos pode exercer uma grande influência nos comportamentos individuais, seja para o mal ou para o bem.
Num livro que li recentemente chamado “ The Tipping Point” (li outro semana passada do mesmo autor chamado “Outliers" que é simplesmente fabuloso), há uma abordagem muito interessante sobre a teoria criminal chamada “Broken Windows” e a resolução da violência na cidade de New York. O capítulo sobre esse tema é muito interessante mesmo, e recomendo a leitura, já que o livro foi traduzido para o português. Basicamente, a teoria diz que se há uma janela quebrada (daí o nome) e ela não é consertada imediatamente, isso dá uma sensação para as pessoas de que a ordem não é respeitada no local. Em pouco tempo, outras janelas estarão quebradas, num processo que se auto-alimentará até que haja paredes pichadas e o sentimento de desordem aumente cada vez mais, levando ao cometimento de crimes cada vez mais sérios.
Na cidade de Nova York na década de 80, a quantidade de crimes cometidos no metrô era enorme. Ninguém conseguia solucionar o problema. Os vagões eram todos pichados, muitas pessoas pulavam as catracas, e crimes graves como estupros aconteciam. Até que um dia um novo secretário de segurança veio com uma ideia radical. Adepto da teoria do broken windows, ele determinou que todos os vagões fossem limpos imediatamente. Se o vagão fosse pichado novamente, no mesmo dia ele deveria ser limpo. Se acontecesse de novo no outro dia, ele deveria ser reparado na mesma noite. O responsável pela segurança da cidade colocou vários policiais, sobre protesto dos mesmos, em estações do metrô para impedir que pessoas pulassem a catraca sem pagar. “Por qual motivo policiais vão ficar aqui impedindo esses crimes menores, quando há crimes maiores sendo praticados” protestavam os policiais. A mensagem era clara: não seriam admitidos crimes menores no metrô, o ambiente de ordem seria restaurado.
Para surpresa e assombro de muitos, funcionou. A taxa de crimes diminuiu drasticamente no metrô de NY. Evidentemente, outros fatores influenciaram, como sempre é o caso em questões complexas, mas ficou claro de que o ambiente em que as pessoas estão inseridas pode ser um inibidor ou catalisador de ações violentas. Uma vagão de metrô sujo pode ser a porta de entrada para crimes maiores.
Se assim é verdade, o Brasil está proporcionando diversas “portas de entrada” para crimes maiores. Nós nas mais diversas relações estamos cultivando a maldade, não a bondade. Como querer que os seres humanos se comportem bem num ambiente tão carregado assim? Pense nisso na próxima vez que quiser compartilhar alguma coisa na internet com dizeres agressivos como “imbecil, idiota”, etc. Pense nisso quando dizer que quer a morte ou a destruição de pessoas. Pensemos nisso quando formos tolerantes com pequenos delitos. A corrupção de um servidor para uma licença de funcionamento aqui, uma furada de fila acolá, uma pequena andada pelo acostamento “pois estou atrasado para o trabalho” e tantos desvios que estamos nos acostumando.
Precisamos parar com o comportamento de maldade e ofensas no Brasil. Cada um tem uma responsabilidade nisso. Isso quer dizer que se você não ofender as pessoas, os estupros vão parar? Evidentemente que não, colega. É apenas um passo na solução de um problema que é dos mais complexos. Se 30 indivíduos resolvem colocar fogo com ser humanos como eles dentro de um ônibus, alguma coisa de profundamente errada está acontecendo com o país e com o ambiente dessas pessoas. Essas 30 pessoas continuam sendo responsáveis por seus atos, elas devem ser responsabilizadas no limite que a lei estabelece. Não há solução para o arrefecimento dos crimes no país, se não houver responsabilização de agentes que cometem crimes brutais. Agora, não se iludam que a solução nunca poderá ser apenas policial. Vão colocar 50 mil estupradores na cadeia? 150 mil se todas as mulheres reportarem? O nosso sistema nem comporta esse número de pessoas, se o Judiciário não funciona com menos de 10% de julgamento desses casos, ele simplesmente iria implodir se resolvesse solucionar todos os casos. É impossível. A única maneira é a aplicação da lei e a criação de um ambiente onde os crimes não sejam encorajados.
Particularmente, no caso de estupros, nós homens temos que reconhecer que nós celebramos uma cultura que muitas vezes diminui o papel da mulher. Dizer “feminismo destrambelhado”, etc, etc, é simplesmente fugir do problema. Quando viajei pela Índia com a minha companheira, ela sentiu na pele o que é ser um cidadão de segunda categoria. Ela, mesmo com a minha presença, foi assediada diversas vezes, algumas vezes de forma sutil, outras vezes de forma mais acintosa. Não é à toa que a Índia é um dos países com mais estupros no mundo. A posição da mulher é diferente no Brasil, ainda bem, mas em muitos casos não é tão superior assim.
Até poucas décadas atrás, a mulher casada era considerara relativamente incapaz para fins jurídicos, tinha até mesmo o Estatuto da Mulher Casada. Uma mulher casada não era um sujeito completamente capaz de exercer os seus direitos. Minha mãe pegou um pouco essa época. Todos amam as suas mães e filhas, mas muitos veem outras mulheres como apenas um pedaço de carne. Muitas mulheres, infelizmente, assumem esse papel que as diminuem enquanto cidadãos e seres humanos. As mulheres infelizmente ainda não assumiram o verdadeiro papel que deveriam em nossa sociedade. Ganham menos, tem menos posições de destaque, quase nenhuma representação no congresso e governo, mas todos nós amamos as nossas Mães, e muitos não observam nada de errado nesse estado de coisas. Aliás, como não amar nossas mães, que nada mais são do que mulheres, se sem elas nem existiríamos. Se você não contrataria mulheres para a sua empresa, tem que se virar para sua amável mãe e dizer “Mãe, sem você eu não existiria, mas sem qualquer chance de ser contratada por mim ou pela empresa de qualquer conhecido”.
Eu mesmo reproduzo velhos hábitos que diminuem o papel das mulheres e muitas vezes tenho que ser chamado atenção pela minha companheira. Quase sempre ela está correta. Se realmente queremos diminuir a violência no Brasil em geral, e contra a mulher em particular, precisamos começar a repensar as nossas condutas como um todo. Podemos não ser estupradores, como muitos gostam de dizer e achar que o problema termina, mas será que não estamos deixando muitas janelas quebradas por aí com nossas condutas? Eu tenho certeza que sim, muito mais do que janelas quebradas, estamos fomentando uma sociedade que cultiva a maldade, o rancor e o ódio nas mais variadas relações.
Portanto, antes de fazer um comentário de raiva, compartilhar alguma mensagem de ódio, reflita se isso vai adiantar alguma coisa. Muito provavelmente nada de bom aconteceu na sua vida depois de você fazer isso, certo? Na verdade, isso apenas mostra fraqueza, fraqueza de ceder a sentimentos fáceis e convenientes. Não mostra força. Se é algo que demonstra fraqueza, não melhora em nada a sua vida, não é melhor tentar outra coisa? Eu acho que sim. Cabe a cada um de nós.
Abraço a todos!