Olá,
colegas! No artigo de hoje abordo um tema não muito tratado na blogosfera e que
é de vital importância para quem investe em Fundos Imobiliários de Papel.
Afinal, quais são os papéis que compõe uma carteira de um FII como o FEXC
ou o XPGA. O que esses títulos representam? Quais são os riscos desses papéis?
Todas são perguntas importantes e tentarei dar ao menos algumas indicações de
respostas.
Primeiramente,
o que são Fundos Imobiliários de "Papel" e qual é a diferença para
fundos de "Tijolo"? Essa é uma distinção adotada por investidores de
Fundos Imobiliários para separar fundos onde a fonte principal de receita é
oriunda de instrumentos financeiros de dívida de fundos onde a renda
preponderante vem de receitas de aluguel de propriedades imobiliárias. Eu
coloquei a palavra preponderante, pois há fundos de tijolo com alguma exposição
a instrumentos financeiros de dívida, sendo assim o mais correto seria
classificar esses fundos como mistos. Porém, como a exposição geralmente não é
de grande monta, ou quando o é geralmente se trata de dinheiro classificado
como "caixa" para futuras aquisições de novos imóveis, manterei a
classificação tradicional entre fundos de papel e fundos de tijolo.
Neste
artigo http://pensamentosfinanceiros.blogspot.com.br/2014/08/fii-fundo-de-papel-o-que-realmente-esta.html, eu
procurei demonstrar que essa espécie de Fundo Imobiliário em nada se confunde
com um Fundo Imobiliário como o XPCM ou RNGO, por exemplo, são dois
instrumentos financeiros completamente distintos. Fundos Imobiliários de
Papel são renda fixa e devem ser tratados como tal. O ponto de contato com os
Fundos Imobiliários de Tijolo é que os mesmos estão voltados para o mercado
imobiliário e a semelhança para por aí. Portanto, uma vez vi uma pessoa falando
sobre a complexidade dos FII, que muitos fundos carregavam papeis duvidosos e
colocou os fundos de papel na mesma posição de fundos imobiliários
onde a receita principal, e na maioria dos fundos única, advém de contrato de
aluguéis. Isso é um erro crasso, pois se trata de dois investimentos
completamente distintos.
Eu
infelizmente ainda não escrevi sobre Renda Fixa, mas presumo que a esmagadora
maioria dos leitores desse blog tenham os conceitos principais dessa forma de
ativo bem estabelecidos. Basicamente, os dois principais riscos da renda fixa
são: risco de default ou de atraso e risco de duration. Não irei tratar
especificamente sobre o segundo risco citado, mas é uma medida que se refere à
intensidade em que um título de dívida pode se apreciar ou depreciar de valor
de acordo com mudanças no custo de oportunidade da economia (ou taxa
básica de juros). O maior risco no mercado de dívida é o default, ou seja, o
não pagamento do principal ou de juros da dívida. Assim, a qualidade do emissor
da dívida é o principal aspecto a ser levado em conta quando se quer
analisar instrumentos de dívida. Emissores de dívida que o mercado acredita ser
mais confiáveis irão pagar menos juros para se endividar, emissores não tão
confiáveis irão pagar mais juros para se endividar.
No
mercado brasileiro, o emissor de dívida mais "confiável" é a União
Federal. São títulos de dívida da União Federal que se compra ao usar a
plataforma do tesouro direto, ou a comprar quotas de fundos de renda fixa via
bancos ou corretoras que investem em títulos federais. Empresas privadas ou
públicas também pode emitir títulos de dívida e elas geralmente o fazem por
meio de instrumentos conhecidos como debêntures. Como, pelo menos na teoria
financeira, os governos são mais confiáveis para se emprestar do que empresas,
é lógico se raciocinar que as empresas terão que pagar mais do que o governo
central para se endividar. Esse "ágio" é conhecido na doutrina
como Credit Risk Premium, ou seja qual o prêmio que será pago ao
investidor por suportar um risco de crédito maior do que simplesmente emprestar
dinheiro para o governo. Poucas pessoas conhecem o conceito de Equity
Risk Premium (o prêmio que teoricamente uma pessoa deveria ser
recompensada por investidor no mercado acionário), mas quase ninguém, pelo
menos aqui no Brasil, aborda os diversos outros conceitos de Risk Premium: Bond
Risk Premium (em relação a duration), Iliquidty Risk Premium (em
relação à iliquidez), Credit Risk Premium, Small Cap Risk
Premium, entre outros. Na verdade, toda essa variedade de prêmios
está relacionada ao custo de oportunidade do dinheiro e aos retornos
potenciais de cada ativo e os seus riscos específicos. Tais assuntos foram
tratados quando discorri brevemente sobre custo de oportunidade em http://pensamentosfinanceiros.blogspot.com.br/2014/09/financas-custo-de-oportunidade-o.html,
quando fiz uma relação lúdica entre incerteza e retornos financeiros neste
artigo http://pensamentosfinanceiros.blogspot.com.br/2014/11/financas-o-principio-da-incerteza-e.html.
Para uma análise sobre os prêmios, ou também conhecidos como fatores de risco, do mercado acionário, pode ser
consultado esse artigo um pouco mais específico sobre os fatores de risco de
Fama e French em http://pensamentosfinanceiros.blogspot.com.br/2014/05/acoes-os-tres-fatores-de-risco-de-fama.html.
Essa breve
introdução teve o escopo de relembrar alguns conceitos com os quais o mercado
financeiro trabalha e raciocina. Retorno ao tema do artigo sobre Fundos
Imobiliários de Papel. Essa espécie de ativo financeiro investe
preponderantemente em instrumentos de dívida relacionados ao mercado
imobiliário. Muitas pessoas cada vez mais investem nesse mercado por meio de
bancos ou corretoras em instrumentos de dívidas chamados Letras de Crédito Imobiliário,
as famosas e queridas por muitos LCI. Os fundos de papel também investem em
LCI, mas o foco principal desses fundos é o investimento em uma outra espécie
de ativo financeiro: o não tão conhecido Certificado de Recebível Imobiliário,
ou CRI. Para compreender o que são atualmente os FII de papel e quais são os riscos
que eles estão expostos, é imprescindível saber o que são Certificados de
Recebíveis Imobiliários.
Não vou dar a
definição do que seja CRI, pois isso o leitor pode consultar no google. Prefiro
apresentar a estrutura de que uma CRI assume com a figura abaixo:
Só
pela quantidade de etapas e intermediários já da para perceber que a CRI é um
instrumento de dívida complexo, muito mais complexo do que um instrumento de
dívida como a Letra Financeira do Tesouro emitida pela União Federal. A
formação de uma CRI e a posterior venda da mesma para investidores, sendo que
os FII são um destes investidores, se dá em várias fases. No começo da cadeia,
uma pessoa física ou jurídica toma um empréstimo a ser quitado num determinado
prazo tendo como objetivo algo relacionado ao mercado imobiliário. Vamos pegar
um caso simples de uma pessoa que quer comprar a sua casa própria financiada, e
chamaremos esse inusitado personagem de Sr. X. O Sr. X viu um apartamento
maravilhoso de 100m2 num bairro em valorização na cidade de São Paulo pela
módica quantia de 1M de reais, perfazendo uma relação de R$ 10.000,00 o
m2. O Sr. X possui apenas 300.000,00, mas acha que encontrou o imóvel
da vida para si e família. O que ocorre quando alguém quer antecipar a
gratificação do consumo quando não possui poupança suficiente (como o
Brasil está fazendo atualmente)? Toma-se empréstimo da poupança de outros
(exatamente como o Brasil está fazendo), fazendo com que a pessoa que antecipou
o consumo torne-se devedora do empréstimo e dos juros associados a este
empréstimo. Assim, o Sr. X toma emprestado o valor de R$700.000,00 a uma
determinada taxa de juros para pagar no curto prazo de 30 anos, tendo como
garantia para pagamento a sua renda, bem como o próprio imóvel dado numa forma
de garantia chamada Alienação Fiduciária (a AF é um pouco complexa e é algo que
eu entendo razoavelmente bem, muito mais do que sobre finanças, mas não irei
discutir esse tema no blog) .
A instituição
financeira que realizou o empréstimo pode fazer algo muito interessante, ela
pode transformar o empréstimo feito num título de crédito, criando assim uma
Cédula de Crédito Imobiliário, ou conhecida pela abreviação CCI. Títulos de
crédito são documentos que possuem força executória sem a necessidade de um
prévio processo de conhecimento na esfera judicial. Para não adentrar em
aspectos jurídicos técnicos, isso quer dizer que o detentor de um título de
crédito tem a presunção de que o seu crédito é exigível judicialmente, não há a
necessidade de uma sentença judicial para afirmar que o crédito é exigível. A
duplicata, o quase extinto cheque, a nota promissória são todos títulos de
crédito com força executiva. O interessante de se criar um título de crédito é
que o mesmo pode ser negociado sem a anuência do devedor original, o Sr. X no
nosso exemplo, e isso está explícito na lei n° 10.931/04. Logo, a instituição
que emprestou o dinheiro para o Sr. X pode criar um CCI e vender este
instrumento financeiro no mercado.
Como a
instituição que realizou o empréstimo talvez tenha necessidade de caixa, talvez
ela possua interesse de ceder os seus direitos creditórios por meio de um
contrato de cessão de crédito, que nada mais é do que vender o crédito que a
mesma tem em relação ao empréstimo feito ao Sr. X, para alguma outra
instituição financeira. Uma instituição que faz empréstimo para pessoas adquirir
imóveis não faz empréstimos apenas para uma pessoa, mas para varias
outras pessoas. Assim, teoricamente, a empresa que faz esses empréstimos pode
emitir diversos CCIs e vender os direitos creditórios para uma outra
instituição.
A instituição
que comprou esses diversos direitos creditórios, entre eles do nosso simpático
Sr.X, pode fazer algo também muito interessante. Ela
pode "empacotar" todos esses CCIs comprados em um único
instrumento e chamá-lo de Certificado de Recebível Imobiliário e colocá-lo a
venda geralmente para investidores qualificados. Assim, uma instituição como a
Brazilian Securities compra diversos CCI, empacota todos eles numa série de CRI
e vende diversos certificados geralmente a valor inicial de R$ 300.000,00. Um
Fundo Imobiliário como FEXC, depois de captar dinheiro de investidores em
alguma oferta de quotas, então compra diversos CRIs da mesma série ou de
diversas séries e recebe remuneração por isso. Essa remuneração vem da onde
Soul? Vem do pagamento das parcelas do financiamento imobiliário feito pelo Sr.
X e vários outros. Então, quando um FII de papel compra uma série de uma
CRI emitida por exemplo pela Brazilian Securities tendo como funding
principal o mercado residencial, quer dizer que os quotistas desde FII na
verdade compraram os direitos creditórios do recebimento de contratos
imobiliários de imóveis financiados às vezes por 30 anos.
Pausa para
balanço. Nessa altura, mesmo sem entrar nas métricas de uma determinada série
de CRI, dá para perceber que esses instrumentos são muito mais arriscados.
Quando você compra uma LTF na plataforma do tesouro direto você compra o
direito de receber juros e depois de um determinado tempo o principal da
dívida, tudo isso garantido pelo governo federal. Quando um quotista compra uma
quota de um FII como o XPGA ou FEXC ele compra o direito de receber juros e o
principal de um devedor, se o funding for residencial, imobiliário muitas vezes
pessoa física. Deu para perceber a diferença? Se um gerente do BB
chegasse com a seguinte proposta para você ao saber que a sua intenção é
comprar LCA do próprio BB: "Olha, ao invés de investir em LCA, onde o
BB garante o empréstimo, você não gostaria de assumir a posição de credor do BB
nesse empréstimo imobiliário feito pelo banco para uma pessoa comprar um
apartamento pelo prazo de 30 anos, recebendo juros de 10%aa?". Você,
se tem alguma educação financeira, provavelmente iria responder apenas "Não,
obrigado", pois qual seria o sentido de assumir uma bronca dessas no
valor de várias centenas de milhares de reais para ganhar 10%aa se o custo de
oportunidade do dinheiro está acima disso? Primeira lição de FII de papel:
retornos de 0,9 ou 1% am não são nada espetaculares pelo risco muito maior que
esses papeis possuem, principalmente levando em conta que a taxa SELIC está
atualmente em 11,25% e que há debêntures incentivadas pagando algo em torno de
1% am. Sendo assim, cuidado ao se empolgar com taxas que não são nada elevadas,
pelo contrário eu acho que são extremamente baixas se comparadas com o custo de
oportunidade financeiro atual brasileiro.
"Poxa,
Soul, mas no caso hipotético do gerente do banco, era apenas um contrato, o que
ficava muito arriscado. No caso dos CRIs são dezenas, centenas de CCIs, e no
caso de fundos imobiliários de papel são dezenas de CRIs, o que quer dizer que
são milhares de CCIs", alguém pode estar pensando. Sim, é a mais pura
verdade. É inegável que há uma pulverização do risco individual de cada
empréstimo com os CRIs, e com os FII adquirindo diversos CRIs o risco se
pulveriza ainda mais. Pode-se chamar de diversificação, o que é algo bem
saudável. Porém, essa diversificação não é capaz de eliminar o risco de uma
crise aguda no mercado imobiliário em geral e nos empréstimos imobiliários em
especial, e aqui começo a tratar de métricas de análise.
Colegas, os
CRIs são muito parecidos com os instrumentos financeiros CDOs (Collaterized
Debt Obligation ) que estiveram no epicentro da crise financeira de 2008. Não
sabe ao certo oque é CDO ou CDS (Credit Default Swap)? Assista ao documentário
fenomenal ganhador do Oscar "Inside Job". Não vai te dar uma
compreensão técnica completa do que são esses instrumentos, mas vai dar uma
primeira base ao menos.
Um
belo documentário. Obviamente não é para saber profundamente sobre a crise
financeira de 2008, mas é um belo trabalho investigativo que deixa no ar
diversas questões profundas sobre o nosso sistema financeiro.
A simples
semelhança dos CRIs com os CDOs já deveria deixar algumas pessoas extremamente
cautelosas ao fazer investimentos em FII de papel que está recheado de CRIs.
Porém, por quais motivos a coisa degringolou nos EUA com os CDOs? Há várias
explicações, porém eu vou me ater a duas métricas principais que se deterioram
rapidamente: Loan to Value, ou LTV e Debt to Income ou DTI. O que é o LTV? Nada
mais é do que a razão entre o empréstimo e o valor do bem dado em garantia para
um empréstimo (no caso dos CRIs são os imóveis alienados fiduciariamente).
Quanto menor for essa métrica, mais seguro o empréstimo. Quando maior essa
métrica, mais inseguro é o empréstimo. Por qual motivo? Voltemos ao caso do Sr.
X. Ele pegou 700.000,00 emprestados para comprar um bem avaliado em 1M. Assim,
o LTV desse empréstimo é de 70%. Isso quer dizer que se o Sr. X parasse de
pagar já na primeira parcela, o credor teria que executar a garantia, no caso o
imóvel dado em alienação fiduciária, para assim poder vender o bem e recuperar
o dinheiro emprestado. Assim, quanto mais alto for o LTV mais arriscado vai
ficando o empréstimo, pois a garantia depois de vendida talvez não
cubra o saldo devedor do empréstimo. Agora, se o Sr.X ao invés de ter apenas
300.000,00 de poupança tivesse 800.000,00 e pegasse apenas 200.000,00
emprestado, teríamos um LTV do empréstimo de apenas 20%. Isso quer dizer que a
garantia teoricamente é mais do que suficiente para bancar qualquer
inadimplemento de pagamento. Portanto, uma métrica de LTV alta significa risco
cada vez maior de perdas líquidas no empréstimo. Eu uma vez li em algum lugar
que nos EUA se faziam empréstimo com LTV de incríveis 97%, significando que o tomador de empréstimo estava comprando 97% do bem de forma financiada, o que é
um risco enorme para quem concede o empréstimo.
Além do LTV,
há uma métrica muito importante para se analisar a segurança de um empréstimo,
que é o Debt to income ou DTI. Essa métrica analisa a capacidade financeira de
um tomador do empréstimo de honrar os seus compromissos. Assim, para efeitos de
praticidade vou considerar as parcelas constantes no tempo, se o Sr. X precisa
pagar R$ 5.000,00 mensalmente do empréstimo feito e possui uma renda mensal de
R$ 20.000,00, quer dizer que o Sr. X possui uma DTI de 25% (5.000/20.000),
representando que o pagamento da dívida representa um quarto da renda corrente
do Sr. X. Logo, DTI maiores significam empréstimos mais arriscados. DTI menores
significam empréstimos mais seguros. No caso do EUA, ficaram famosas as
hipotecas sub-prime, ou seja empréstimos feitos para pessoas sem uma renda tão
alta ou estável. Nunca vi números, mas imagino que os DTI dessas hipotecas
sub-prime deviam ser altos. O que acontece quando se junta empréstimos com LTV
alto e DTI alto? Boa coisa com certeza não é, e a crise gigantesca de 2008
provou mais uma vez o quão míopes alguns investidores podem ficar em relação a
métricas claramente deterioradas e extremamente arriscadas.
"Soul,
essas métricas DTI e LTV são estáticas?" alguém pode perguntar. Não,
colegas, não são. Primeiramente, o devedor pode ir pagando o empréstimo
fazendo que o saldo devedor diminua cada vez mais, fazendo com que o LTV
diminua. O imóvel pode aumentar de valor, fazendo com o que o LTV também
diminua. Imaginem que um ano depois do Sr. X comprar financiado o imóvel de 1M,
o mesmo passe a ter um valor de mercado de 1,2M. O LTV irá baixar (estaremos
aumento o valor do denominador) e o empréstimo terá ficado mais seguro. E o
DTI? O devedor pode conseguir uma melhora salarial e ter a sua renda aumentada,
o que fará com o que DTI diminua. A economia como um todo pode crescer fazendo
com o que o nível de renda da maioria das pessoas suba fazendo com que os
empréstimos fiquem mais seguros. Esse é o cenário otimista, onde tudo dá certo,
o que faz as pessoas ficarem otimistas e menos cautelosas e aceitarem receber
remunerações cada vez menores mesmo em títulos que oferecem riscos
significativos. E o cenário pessimista?
No cenário
ruim, os imóveis diminuem de valor, o país entra em estagnação ou recessão
fazendo com que os salários fiquem estagnados ou recuem, o desemprego aumenta
(fazendo com que a métrica DTI perca o sentido para uma pessoa que perdeu
completamente a renda). Se os imóveis perdem valor, o LTV aumenta. Se o imóvel
que o Sr. X comprou por 1M cair para 700.000,00, o LTV irá subir sensivelmente.
Se os salários decrescem, O DTI provavelmente irá aumentar ou perder o sentido
quando a renda deixa de existir pelo desemprego. Assim, num cenário de
contração da economia como um todo e do setor imobiliário em especial, pode
fazer com que os empréstimos financeiros baseados em garantias imobiliárias
fiquem extremamente arriscados, dependendo da variação do LTV e da capacidade
das pessoas pagarem os seus empréstimos.
Voltemos ao
exemplo inicial do Sr. X. Lembrem-se que o LTV era de 70% para um empréstimo de
700.000,00 para o valor de imóvel de 1M. Acreditando que era o imóvel da vida
dele, e que o valor intrínseco do imóvel era fenomenal não importando tanto o
preço a ser pago já que ia financiar o mesmo em suaves prestações durante 30
anos, o Sr. X, bem como quem emprestou dinheiro para ele, deu o azar de
comprar o imóvel num pico de valorização imobiliária e a beira de uma recessão
da economia. Assim, dois anos depois da compra realizada o imóvel caiu
30% de valor, o saldo devedor não diminuiu muito (vou considerar igual para
fins de simplificação) e o Sr. X perdeu o emprego (que fase Sr. X!). O LTV do
empréstimo se tornou de 100% já que o imóvel diminui 30% (1.000.000 x 0.7) e o
DTI perdeu o sentido, já que o Sr. X não terá mais dinheiro para pagar o seu
empréstimo. Como o Sr. X ficará inevitavelmente inadimplente, o credor terá que
obrigatoriamente executar o imóvel dado em alienação fiduciária. Porém, há
custos para se tomar um imóvel e vendê-lo em leilão. A agência de classificação
de risco Fitch (em diversos relatórios de classificação de risco que li da
agência sobre algumas séries de CRIs) estima que uns 20% seriam os custos
envolvidos para a transformação em dinheiro do imóvel dado em garantia. Isso
está para lá de otimista. Os custos finais podem ser muito maiores, pois em
leilão os deságios exigidos pelos investidores serão muito maiores do que meros
20% (sem contar os pesados custos de advogados, que com certeza não irão cobrar
barato). Se a situação for de crise sistêmica é possível que não se
encontre nem mesmo compradores para esses imóveis, a não ser que se dê
descontos de 70/80% do valor do imóvel (sim, isso existe, o que faz a alegria
de quem entende um pouco do assunto). Portanto, no caso do Sr. X que o LTV
passou de 70% para 100% é certo que o credor terá perdas líquidas pesadas no
empréstimo feito, pois o imóvel dado em garantia não será suficiente, depois de
pagos todos os custos e o spread grande bid/ask da venda do imóvel em leilão,
para pagar o saldo devedor. Foi isso que aconteceu nos EUA. Alguns tomadores de
empréstimo pararam de pagar, começou a se ver que os LTV eram imensos, veio
pânico, o valor dos imóveis começou a cair, o que fez com que o LTV aumentasse
ainda mais, os bancos retomavam as casas jogando muitos imóveis no mercado ao
mesmo tempo, não apareciam compradores suficientes mesmo com grandes deságios
em short sale ou foreclousure, o que fazia com que as pessoas que emprestaram
dinheiro (ou que última instância compraram esses créditos) ficassem com
grandes prejuízos líquidos. Um bom momento de estar líquido deve ter sido nos
meses de pânico de 2008, consigo imaginar casas em La Jolla San Diego sendo
vendidas em short sale ou em procedimento de foreclousure a preço de
banana. Portanto, crises econômicas e imobiliárias podem cair com uma
verdadeira bomba em instrumentos como CRI e por via de consequência em Fundos
Imobiliários de Papel.
Depois dessa
longa digressão, irei colocar algumas breves análises que venho fazendo séries
de CRIs onde o Fundo Imobiliário FEXC possui grande participação como
investidor. Depois das explicações creio que o leitor poderá facilmente
compreender os dados abaixo. Todas as informações podem ser vistas no site da
Brazilian Securitires (http://www.bfre.com.br/braziliansecurities/pt).
1) 1) Série
269 – 8% + IGP-M (é quanto a CRI paga para os compradores) emitida em 2011
Fundo Imobiliário FEXC possui 14M cota Sênior
de uma emissão de 26M. Há ainda 3M de quotas subordinadas (10% do total, essa é
a margem de segurança). A Taxa da CRI subordinada (série 270) é de módicos
51,1% aa, não você não leu errado.
- Funding - residencial (216 contratos originários
de empréstimo). Porém 80% dos contratos são de refinanciamentos. Em 2014, o
número de contratos caiu para 139. O saldo devedor da CRI Senior para 17,4M. O
saldo do FII nesse CRI é de 14M (o que representa 80% da CRI Senior dessa
emissão)
- LTV dos empréstimos – 47% em 2012, passando para
50% em 2014.
- DTI – DEBT TO INCOME – 30% na emissão
- A Inadimplência em setembro de 2014 não era
baixa. Apenas 55% dos pagamentos estavam em dia. Mais de 18% do saldo
devedor estava com atrasos superiores a 90 dias (atrasos superiores a 90 dias
tem uma probabilidade grande de implicar em default do devedor original e
necessidade de execução da garantia). Tal métrica vem piorando desde a emissão,
o que pode significar um certo stress no fluxo de pagamentos.
2) Série
251 – 8,2% + IGP-M
Emissão Sênior de 35,3M (mais 10% de CRIs
subordinados com remuneração de 44%,8 aa).
Funding – Residencial e comercial. Em setembro de
2014, havia 159 contratos. Apenas 46.9% do saldo devedor estava em dia.
24% do saldo devedor estava com atraso superior a 90 dias, o que é um número
bem elevado. Saldo remanescente de 16,1M sendo que o FII possui 5,6M (o que
representa uns 35%)
LTV – Em setembro de 2014, o LTV médio era de 57%.
Porém, dos contratos em atraso em mais de 180 dias era de altíssimos 80%. Sendo
assim, a própria agência de risco diz que nestes casos há possibilidade real de
perdas patrimoniais, caso haja desvalorização dos imóveis.
DTI – Não encontrei.
Assim, a série 269 que o FEXC comprou parte significativa da mesma rende IGP-M +8%. Nada tão espetacular se compararmos com NTNB pagando IPCA +6,5%. Alguém pode argumentar que há IR no título público federal, o que é verdade, mas se pode responder que o investidor em quotas do FEXC paga taxa de administração, que não são nada baratas em fundos de papel, assim o investidor final em FII não receberá IGP-M +8%. Pelas métricas, observa-se que atualmente há 139 contratos de financiamento. O LTV está em média em 50%. Uma parte significativa (45%) do saldo devedor apresenta atraso, sendo que 18% do saldo devedor total está com atrasos superiores a 90 dias. Será que alguém realmente analisou ou analisa cuidadosamente esses 139 contratos de financiamento? Nessa série, por exemplo, há uma grande concentração do saldo devedor na cidade de São Paulo. Assim, bastaria um arrefecimento do mercado imobiliário em São Paulo (não precisa nem ser no Brasil inteiro) para que o LTV cresça tornando mais arriscada toda a operação. Além do mais, será que a qualidade dos tomadores de empréstimo foi muito bem conferida? Será que a empresa que concedeu os empréstimos sabia que poderia emitir CCIs e vender para uma securitizadora para essa transformar essas CCIs em CRIs e vender para investidores qualificados, não pode ter feito uma análise mais "frouxa" de crédito, tudo com o intuito de gerar esses instrumentos financeiros, já que o risco do empréstimo não ficaria mais com ela? Foi exatamente isso que ocorreu na crise das hipoetcas sub-prime do mercado americano. Isso pode vir a acontecer no Brasil? Eu não sei. Porém, eu acho que uma taxa de IGP-M + 8% aa (essa taxa pode ser maior se houver compras com deságio no VP) tendo que ainda descontar taxas administrativas pesadas, está longe de remunerar adequadamente o risco com SELIC a mais de 11% e FII de tijolo pagando de 10 a 12%.
Não vou continuar
na análise para não deixar esse artigo muito pesado. Porém, deu para perceber
como pode ser complexa a análise de um FII de papel. Para analisar apenas duas
séries de CRI, e o FEXC possui participação em dezenas de séries de CRI, é
preciso um bom tempo e paciência para olhar todas as métricas. Alguém faz isso?
Eu duvido, acho que até mesmo os gestores dos FII de papel não fazem isso. Para
fazer uma análise completa, eu creio que teria que se analisar todos os CRIs do
fundo, colocar os dados atuais de LTV e DTI, e simular dezenas de cenários de
Stress em algum modelo de análise mais complexo. Sim, colegas, não é simples
não. Não é à toa que os Quants (denominação que se dá a gênios de física ou
matemática que vão trabalhar para o mercado financeiro) adoram esses instrumentos
complexos de dívida, onde quase ninguém sabe ao certo precificar se o preço
está correto ou não, mas apenas alguns poucos Quants com seus modelos de
análise poderosos. Os Quants tiveram participação decisiva na crise financeira
de 2008, e o livro "Mentes Brilhantes, Rombos Bilionários" é uma
forma agradável de se saber mais sobre essa nova forma de encarar o mercado
financeiro.
Um
livro bacana que conta a história de diversos Quants e os seus fundos Hedges e
como a forma de pensar de se criar instrumentos financeiros cada vez mais
complexos onde apenas um punhado de pessoas compreendia bem acabou arrebatando
W. Street e muitos incautos investidores.
Muitos
colegas olham apenas o preço da quota no mercado secundário e o preço do valor
patrimonial da quota. Outros investidores mais sofisticados talvez olhem o
preço da quota e tentem fazer alguma projeção com a curva futura de juros.
Porém, eu me pergunto, se esses investidores sabem exatamente o que estão
comprando. Não há nenhum problema em se comprar o que quer que seja no mercado
financeiro, desde que o investidor saiba os riscos associados e desde que seja
corretamente remunerado por esses riscos. Mesmos instrumentos complexos e
arriscados como os FII de papel podem ser bons investimentos, caso a margem de
segurança seja grande. Se a compra é feita com um deságio de 20% do valor
patrimonial, quer dizer que se muita coisa der errada e 20% do saldo devedor
micar o investidor mesmo assim não sairá perdendo nada.
Porém, os retornos potenciais devem ser atrativos. Não há qualquer sentido
financeiro em comprar um FII de papel pensando num retorno financeiro de 11% ou
até mesmo 12% aa, quando a SELIC encontra-se no patamar de 11.25%. Além do
mais, é insólito ter um retorno quase idêntico, ou às vezes idêntico, de um FII
de tijolo onde a fonte de receita é de aluguéis de empresas. Se tudo der errado
para um FII de tijolo ele fica com 100% de vacância e pagando os custos de
manutenção, porém o ativo permanece lá com toda a possibilidade de gerar
receitas. Se tudo der razoavelmente bem, o FII de tijolo não só fornecerá renda
de aluguel, como apresentará dividendos crescente com o tempo, como é normal em
alugueis, já que o yield de um FII tende a ser uma métrica real. Portanto, é
ilógico termos FII de tijolo e FII de papel pagando o mesmo yield, e isso está
acontecendo atualmente no mercado brasileiro. Não acredita? Quando fiz uma
série sobre REITs (que considero um dos melhores artigos que já escrevi, pois é
um tema quase não tratado no Brasil), eu fiz uma comparação dos Yields dos
Mortage Reits (FII de papel americano) e do Yield do S&P
500 (Os Equity Reits - FII de tijolo americano - possuem um
yield pouco superior ao S&P 500. Atualmente o Yield é na faixa de 3,5% aa -
o leitor pode conferir a série em http://pensamentosfinanceiros.blogspot.com.br/2014/04/reits-um-estudo-sobre-suas.html,
são três artigos) :
Percebam a
diferença abissal do yield que os Mortage Reits proporcionam. Isso nem
remotamente acontece no Brasil. Quando escrevi a série há seis meses, eu não
entendia muito bem o motivo de não haver quase nenhum spread entre FII de tijolo
e FII de papel. Hoje cada vez mais me convenço é de que talvez não se saiba
corretamente quantificar o risco dos FII de papel e se exige um prêmio muito
baixo.
Uma crise
econômica ou uma estaginflação cumulada com uma crise imobiliária pode ter
impactos bem negativos no mercado imobiliário de aluguel. A vacância pode
atingir níveis altos, os alugueis podem cair, e alguns FII podem passar por
dificuldade (apesar de achar que com uma carteira de uns 15-20 FII bem
selecionados o investidor não terá grandes sobressaltos em seu fluxo de caixa).
Porém, um cenário desses pode ser uma verdadeira bomba para FII de papeis, pois
isso pode aumentar o inadimplemento e os LTV podem chegar a níveis bem
perigosos caso haja uma desaceleração imobiliária geral. Cabe ao investidor
sopesar os prós e contras desse investimento, e estar ciente no que está se
metendo ao comprar esse instrumento financeiro.
É
preciso abir a caixa preta que são os FII de papel. Resta torcer para que não
seja uma caixa de pandora.
É isso
colegas. O artigo ficou extenso, mas é um tema que não é muito abordado na
internet, portanto creio que a leitura tenha valido a pena.
Um grande
abraço a todos!