O mundo real.
Existe alguma outra realidade que não seja aquela que experimentamos? O que
seria o mundo real? São perguntas de difícil resposta, se é que existe alguma
que possa ser considerada definitiva. Nada impede que a nossa suposta realidade
nada mais seja do que uma simples simulação, por exemplo. Porém, deixem-se divagações mais
abstratas para outro momento, e concentremo-nos, prezados leitores, em
divagações mais palpáveis com a nossa vida.
Você entra num
bar, é verão e está quente, você está um “pouco acima do peso”, mas não acha
estranho o fato de que de uma mesa duas garotas estonteantes olhem em sua
direção de um jeito sensual. Feliz com a vida, você pede uma cerveja a um garçom animadíssimo, a cerveja é barata,
mas de alta qualidade. Você resolve então olhar ao redor do bar, e vê que o
mesmo está lotado de pessoas jovens, bonitas, com corpos esbeltos e felizes.
Você se sente bem, até que a realidade congela, assim como na clássica cena do
filme “Vanila Sky” e um sujeito sinistro, mas afável, diz que aquilo não passa
de uma peça de propaganda que irá tentar mexer com partes específicas do seu
cérebro para que você continue tomando a cerveja de uma determinada marca.
Ao andar pelas
ruas da cidade onde nasci na última semana (Santos), algo que gosto muito de
fazer até porque a cidade é compacta e plana, eu notei que nos bares a esmagadora maioria
das pessoas está acima do peso, ou está obesa mesmo, os garçons não estão com
cara de muitos amigos, e boa parte das pessoas está com o pescoço numa posição
anatomicamente não ótima (o que com certeza pode ocasionar problemas ortopédicos
no futuro) olhando a tela de um pequeno dispositivo. Uau, isso é quase o oposto
do bar do parágrafo anterior. Será
porque a visão de um bar normal de uma cidade normal do Brasil, o que poderíamos
chamar de mundo real, pode ser em alguns casos tão deprimente, é preciso
criar-se uma realidade alternativa em produtos de marketing que de alguma
maneira tentam vender um produto naturalmente associado com esse tipo de
ambiente?
Apesar de
qualquer pessoa conseguir distinguir a ficção da realidade no caso dos bares,
esse tipo de dissonância da realidade se apresenta de diversas formas. Minha companheira, à espera de ser atendida
numa consulta médica, me relatou de uma forma o tanto quanto indignada que teve
que esperar bastante tempo, pois o consultório do médico tinha se transformando
num vai e vem de homens bem vestidos e apessoados. Sim, a famosa relação médicos-indústria
farmacêutica em sua realidade mais básica. O que me chamou atenção não foi
tanto a relação, que é evidente bastando ver o aumento do número de farmácias e
o uso de remédios pelas pessoas, mas o fato dela ter destacado homens bem
vestidos e apessoados. Não eram pessoas
mal vestidas, não eram pessoas com algum problema físico no rosto, eram homens
jovens apessoados.
No que essa
história de consultório se encaixa com o presente artigo e realidades
alternativas? Uma vez, num esforço
talvez de melhorar como escritor, escrevi três artigos como se fossem um roteiro de teatro. Um deles foi sobre uma passagem do livro “A
Revolta de Atlas” da escritora nascida na Rússia Any Rand. O artigo em questão é este A Vergonha de Atlas,
e relendo-o para escrever este texto achei, modéstia à parte, que o resultado ficou razoável.
Porém, por qual motivo escrevi um texto sátira sobre esse livro tão caro a tantas pessoas, principalmente de matiz mais "libertária"? É
porque sou um agente secreto do foro de São Paulo treinado por ex-agentes da
KGB? A realidade é menos fantástica do que essa explicação.
Quem não
conhece o livro, a história de mais de 1000 páginas é sobre uma sociedade onde
as pessoas produtivas decidem dizer “chega, cansei do governo, dos tributos e
da regulação” e param de produzir. Elas não só param, como desaparecem, deixando
para trás os seus bens. Como, antes de
ler o livro, tinha lido diversos artigos num site chamado Mises Brasil, já
estava familiarizado com a história ética-moral do livro, o que mais me interessou
na leitura de tão extensa obra foi o aspecto literário e a construção dos
personagens.
Eu no começo
da leitura fiquei intrigado, pois achei que não podia ser verdade que um livro
tão famoso e referenciado como obra-prima por tantas pessoas inteligentes,
poderia ter uma construção literária tão infantilizada. Porém, na metade do
segundo volume tinha ficado claro que era assim mesmo que a obra tinha sido
estruturada.
Na obra de Rand, todas as
pessoas que de alguma maneira se encaixavam no arquétipo “improdutivos” eram ou
tinham algum problema físico, ou sua vestimenta não era apropriada, ou exalavam um cheiro não agradável, ou não eram fisicamente esbeltos, ou eram extremamente
inseguros, ou eram extremamente tolos e não conseguiam articular duas ideias de
forma clara e racional. Em alguns personagens, todas essas características apareciam
concomitantemente. Por outro lado, os personagens tidos no arquétipo “produtivos”
eram ou bonitos (alguns tão bonitos que são descritos como Deuses Gregos, e é
por isso que a capa do livro é um homem musculoso saído de um livro de anatomia
segurando o mundo), ou inteligentes, ou bem vestidos, ou cheirosos, ou dignos,
ou extremamente confiantes e seguros de si e do mundo. Em alguns personagens, todas essas características
apareciam reunidas.
Para além
disso, há passagens simplesmente ridículas do ponto de vista literário. Dagny é
a heroína da história. O que é algo
muito positivo ter uma mulher como heroína, o que não é de se estranhar já que
a escritora é mulher. Dagny até o começo
do terceiro volume tem um romance com um empresário que é o estereótipo do que
é bom na humanidade chamado Hank.
Algumas cenas de sexo são descritas, e a personagem central da obra parece um furor sexual,
além de possuir um comportamento sexual completamente passivo em relação a
Hank, em algumas partes assemelhando-se mais a “Cinquenta Tons de Cinza”. Porém, o que chama atenção é que Dagny tem na
faixa de uns 35 anos, e as suas únicas e esparsas relações sexuais se deram em
sua juventude entre 18-20 anos com um único parceiro. Sim, há um hiato sexual
na vida de Dagny de apenas 15 anos. É
difícil imaginar uma mulher que ficou 15 anos sem ter relações sexuais, e tendo
apenas poucas experiências na juventude, de uma hora para outra tenha se tornando
um furor sexual. Está claro que se
constrói uma personagem que seja um outro arquétipo na mente de alguns homens: “quase
virgem”, mas de alguma maneira uma potência sexual. Converse com qualquer mulher na vida real, e
boa parte delas apenas riria de uma descrição sexual feminina como essa, pois
ela seria apenas uma construção mental irreal, assim como o bar de cerveja da
propaganda, não é real.
E essa
digressão enorme me leva aos homens bem apessoados do consultório médico. Ou a
Eduardo Cunha. Ou à realidade. Os homens que vão seduzir médicos não são mal
vestidos e feios. Eduardo cunha não é mal vestido e é capaz de articular de
forma clara e racional os mais variados argumentos. A realidade não são homens feios fisicamente,
intelectualmente limitados e inseguros de um lado versus homens bonitos,
intelectualmente avantajados e completamente seguros de si de outro. Se você vive no mesmo mundo que eu, se
caminha pelas ruas das cidades como eu gosto de fazer, muito provavelmente a sua
impressão, prezado leitor, como a minha é de que a realidade é muito mais
complexa, confusa e difícil do que o mito quase religioso de bem x mal.
O mundo real é
feito de pessoas, ficando em linguagem mítico-religiosa como a escritora Any
Rand adota no livro citado, que se comportam em certas ocasiões como anjos e em outras como demônios.
O assaltante num momento é o pai de
família preocupado com a saúde do seu filho num outro momento. Um empresário de
sucesso num momento é o pai que abusou sexualmente de sua filha num outro. Nem o assalto se torna justificável e menos
condenável pelo fato da preocupação do assaltante com o seu filho, nem a
possível produtividade do empresário deixa de existir pelo ato horrendo
cometido contra a filha. Multiplique
esses exemplos por milhões, por outras variáveis, e percebemos quão complexa
pode ser a realidade, e como idealizações de mundo são descrições limitadas da
realidade quando muito, pois na maior parte das vezes são apenas visões
completamente destituídas de qualquer ligação com a realidade.
E por qual
motivo isso possui alguma relevância? A razão é muito simples. Uma mulher negra na década de 50, cansada
depois de voltar ao trabalho, não quis ir para o lugar reservado a negros num ônibus
de uma cidade do interior dos EUA, e resolveu ficar sentada em bancos
reservados para brancos. Rosa Parks provavelmente
não queria mudar o mundo naquele momento, ela apenas estava cansada de um dia
de trabalho, e não achava correto que ela deveria ceder o seu espaço a um
branco pelo simples fato dela ser negra.
Um ato de revolta simples se transformou no catalisador de um dos
maiores movimentos contra o racismo nos EUA, e talvez no mundo inteiro. Rosa Parks talvez não fosse a heroína que
habita a fantasia de tantos homens, talvez ela não fosse brilhante intelectualmente,
e nem mesmo um furor sexual depois de toda uma vida de acatamento sexual, mas
com certeza o que ela fez foi extraordinário.
Precisamos
sonhar muitas vezes, e às vezes o sonho não se coaduna com a realidade atual.
Tentarmos conhecer a realidade, sem escapismos infantis e grosseiros, é a única
forma para podermos tentar ter alguma influência sobre essa mesma
realidade. Seja alguém que irá construir
uma das empresas atuais mais poderosas do mundo, como Steve Jobs, seja uma
trabalhadora de loja de departamento que iria ajudar a construir um movimento
que iria sacudir o país mais poderoso do mundo, seja um pai de família que se
esforça para que o seu filho não se perca no caminho perigoso das drogas.
Eu, Soulsurfer
(mas podem me chamar de Thiago também), há algum tempo consigo ver uma grandeza
enorme em alguém como Rosa Parks, mas também numa mãe que com dificuldades se
equilibra numa rotina desafiadora e mesmo assim consegue dar amor tão essencial
para o desenvolvimento de uma criança.
Vejo o valor enorme num sujeito genial como Steve Jobs, mas um valor
incrível também num médico que durante décadas tenta da melhor maneira possível
cuidar de seus pacientes não apenas com remédios e tratamentos clínicos, mas com carinho e
preocupação.
Sim, quando
saímos da “mitologia” do marketing e de algumas descrições infantis do mundo, a
realidade se torna mais complexa e muitas vezes difícil. Mas quem disse que viver é fácil? Quem disse
que o mundo não é um lugar cheio de conflitos sejam interpessoais, sejam os
próprios demônios internos que alguém precisa lidar diariamente? A solução para
uma vida melhor não é a fuga da realidade, mas sim a sua aceitação.
Um abraço a
todos