sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

INDEPENDÊNCIA FINANCEIRA


Olá, prezados leitores.  Independência Financeira, a expressão mágica que cativa a tantos que frequentam esse espaço. Traduziram uma expressão do inglês, e adicionaram Aposentadoria Precoce à expressão mágica (Para quem não conhece, FIRE - Financial Independe Retire Early. Eu pessoalmente sempre achei uma bobagem traduzir essa expressão para o português). Lendo na última semana  alguns artigos, foram levantados questionamentos se vale a pena parar de trabalhar, especialmente pelo conhecido blogueiro Corey. Pessoas escreveram artigos tentando colocar outras perspectivas, comentários dos mais variados foram escritos, e eu resolvi falar sobre o assunto.

Por qual motivo? Porque o acho extremamente interessante atualmente? Não, por mim estava mais a fim de falar sobre o hormônio insulina, e minhas experiências de meses com o uso de um monitor contínuo de glicose implantado em meu braço.  Mas, deixo esse assunto relacionado ao tema de “biohacking” para outra oportunidade.

NUANCE. Sim, em letras garrafais, nuance. Por qual motivo diversos textos meus se esforçavam, ao menos na época que possuía mais empolgação com esse espaço, a falar sobre nuances? Porque a vida é complexa e cheia de nuances. Simples assim. Foram tantos e tantos artigos nesse espaço tendo essa temática como pano de fundo. O último, por exemplo, sobre o Irã e o escritor Taleb, é um texto basicamente sobre nuance.

Quando se descobre que quase tudo na realidade possui camadas de complexidade, a vida se torna mais difícil, mas muito mais interessante. Não existem respostas simples para questões existenciais complexas que atormentam pensadores há milhares de anos, meus amigos leitores.  Porém, há alguns caminhos.

Algum tempo atrás escrevi sobre o ranking da ONU de felicidade dos países. Quase ninguém conhece, alguns que ouvem a respeito criticam sem saber do que se trata, quem procura conhecer um pouco vê que é uma métrica extremamente interessante. Não vou entrar em detalhes, mas basicamente são analisados os seguintes parâmetros: a) renda; b) liberdade; c) coesão social; d) generosidade entre membros da comunidade e e) qualidade da saúde da população.

Sim, os leitores libertários, ou aqueles que gostam e defendem a liberdade, tem razão, ou parcial razão. Uma vida sem a possibilidade de fazer escolhas livres, sejam econômicas ou políticas, é uma vida empobrecida. Porém, tudo se resume a isso? Pessoas fazendo escolhas livres? Ou isso é uma descrição incompleta da realidade?

Sim, os leitores com viés chamado “progressista”, tem razão, ou parcial razão. Sentimentos como generosidade, coesão social provocada por uma sociedade que não possua muitas fraturas e diferenças abissais entre os seus membros, também provocam bem-estar humano, e por via de consequência felicidade. Porém, será que com apenas generosidade é possível fazer uma empresa de aviação comercial operar 2000 voos diários pelo mundo afora ou é necessário incentivo econômico? Será que os seres humanos não precisam ser desafiados e recompensados de maneira diversa?

Sim, os leitores que querem mais e mais dinheiro, possuem razão, ou ao menos uma razão parcial. Países com maior renda possuem populações mais felizes. Stress financeiro é uma fonte enorme de ansiedade, transtornos pessoais, desequilíbrios mentais, ou seja, de uma vida mais infeliz. Porém, a solução para os problemas da vida é mais e mais crescimento econômico apenas? Para alguém que possui R$ 20 milhões, ganhar mais R$ 10 milhões irá resolver os seus problemas existenciais? Seus problemas familiares? O seu filho passará a não consumir cocaína por causa disso? Parece-me evidente que a vida é muito mais do que isso, e que há um limite a partir do qual mais dinheiro não se transforma em mais satisfação ou bem-estar, e há uma tonelada de estudos científicos mostrando exatamente isso.

Por fim, eu tenho razão nos últimos 12-18 meses, ou pelo menos parcial razão, de refletir que o nosso principal bem é um corpo saudável. Do que adiante liberdade, dinheiro e generosidade alheia, se estou fraco, sem saúde, doente, sem a possibilidade de fazer movimentos mínimos, sem a possibilidade de aproveitar o que a vida oferece?  Mas, uma saúde otimizada, um corpo forte, no meio de uma sociedade enfraquecida, com problemas financeiros, e sem generosidade ou coesão social, poderá atingir todo o seu potencial? Do que adianta estar saudável se sua família está adoecendo?

Logo, a vida é composta por uma série de circunstâncias, algumas sobre nosso controle, outras nem tanto, das mais variadas formas e sabores, e é o conjunto dessas circunstâncias que fazem uma vida ser melhor, ou não, vivida.

Portanto, se tornar independente financeiramente, é uma parte apenas de um grande emaranhado. A melhor independência financeira não é ter um monte de dinheiro, mas sim “fazer o seu trabalho como se fossem férias”.  Achar algo significativo, algo que produza valor para si próprio e para outros.  Ter dinheiro apenas facilita que esse algo significativo não necessariamente daí precisa estar atrelado a um retorno financeiro. Um músico pode amar o que faz, mas ele tem contas a pagar, tem desejos de consumo, e é necessário um retorno financeiro. Um músico com alguns milhões pode se dedicar à sua paixão sem ter essa preocupação. Por outro lado, um músico com alguns milhões talvez não tenha a sede e o apetite que um músico que depende a sua vida do retorno de sua arte disso possui. É complicado, e não há certo ou errado.

Possuir dinheiro, perder a necessidade de trabalhar para alguém, não vai transformar um relacionamento ruim num relacionamento maravilhoso. Não vai fazer com que o seu filho o respeite mais, ou que você ache a iluminação. Não. Porém, pode dar o tempo suficiente para que essas transformações sejam mais factíveis de ocorrer, pois tudo que vale a pena na vida quase sempre envolve esforço. Criar um relacionamento forte com o seu filho exige tempo e esforço. Tornar-se faixa preta de Jiu Jitsu exige esforço e tempo. E, como já dito diversas vezes nesse espaço, e parafraseando o grande ex-presidente Mujica, “TEMPO NÃO SE GANHA, TEMPO SE GASTA”

Em relação ao tempo, todos nós somos consumidores.  Possuir certa quantidade de dinheiro, apenas possibilita que uma fração maior de tempo possa ser dedicada para que inúmeras transformações positivas possam ocorrer na vida.  Ter dinheiro não garante que essas transformações ocorreram, apenas possibilita, se a pessoa for sábia, a um uso mais consciente da sua poupança de tempo.

Você, prezado leitor, se possui quase 40 anos, não apenas possui mais uns 40-45 anos (se tudo der certo) de vida, mas como você já morreu 40 anos. A morte já ocorreu para você prezado leitor, e ela ocorre dia após dia.  Tic Tac, Tic Tac, o seu encontro com ela fica cada vez mais próximo. O seu tempo cada vez diminui mais, e não o contrário.

A solução para esta angústia existencial é viver. Viver bem. Viver da melhor maneira possível. Dia após dia, semana após semana, esse é o meu objetivo. Alguns dias eu vou muito mal. Brigo com a minha mulher. Perco tempo com alguma bobagem. Alguns dias eu vou muito bem. Leio um brilhante artigo científico, consigo acordar cedo e pegar onda sem roupa de borracha, troco apenas sorrisos com a minha mulher, aproveito essa frase incrível do desenvolvimento com a minha filha de um ano,  faço exercício intenso, como uma pizza deliciosa, encontro com amigos. Uau, isso sim é um dia bem vivido.

Tic, Tac. Viva, meu amigo prezado leitor. Lembre-se que a vida é complexa, as questões quase nunca são simples , e a nuance é a que traz cor e sentido para a realidade que nos cerca. A independência financeira é um instrumento para atingir uma boa vida. Eliminar o stress financeiro e o desperdício de tempo e energia em atividades não tão satisfatórias realizadas apenas por dinheiro, é um grande salto de qualidade de vida. É o único instrumento? Claro que não. Dizer bom dia para os seus vizinhos e construir uma boa relação com os mesmos é outro. Encontrar significado e sentido é mais um. Há tantos outros. O dinheiro e a independência financeira são apenas instrumentos, nunca fins em si mesmos. E eles são apenas uma ferramenta entre tantas outras.

Fácil? Não. Complicado? Muitas vezes. Desafiador? Sem dúvidas. Essa é a vida, essa é a minha vida, essa é a sua vida. Somos protagonistas das nossas próprias tramas, num grande teatro onde não há ensaios, e onde a peça sempre se desenrola no aqui e agora. Cabe a nós tentar ser os melhores protagonistas possíveis desse nosso drama, até que as cortinas abaixem definitivamente.



segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

ALGUÉM REALMENTE LEU TALEB? IRÃ E OS EFEITOS DE SEGUNDA E TERCEIRA ORDEM


Será que alguém realmente leu Taleb? Para quem não conhece, Nicholas Nassim Taleb é um escritor que escreve sobre vários assuntos relacionados à incerteza. Ele ficou muito famoso especialmente pelo seu livro chamado “A Lógica do Cisne Negro”. É preciso ler Taleb? Evidentemente que não. Alimentar-se bem, ter boas relações sociais e dormir bem são os atos que eu colocaria como essenciais para uma boa vida, não a leitura de um autor específico. Ele é um grande ser humano? Sinceramente, não sei. Pelos escritos e algumas palestras que eu vi dele, há um certo ar de superioridade que realmente não me agrada, como se apenas ele guardasse as chaves para os mistérios humanos, porém não dá para saber como ele é sem conhecê-lo pessoalmente, assim como com qualquer pessoa. Se não é necessário a leitura desse escritor, se eu acredito que ele tem certas características pessoais não tão positivas, por qual o motivo o título do presente artigo? Por qual motivo perder tempo com isso?

O cito, pois Taleb virou para muitas pessoas que gostam de finanças, ou comentam sobre política, uma espécie de norte intelectual. Além do mais, como ele diz que gosta muito do libertarianismo, bem como autores da escola austríaca de economia, e como esses temas estão em voga, ao menos em relação a pessoas que gostam de finanças, ele acaba sendo bastante citado. Aliás, sobre isso, ele tem uma ideia muito interessante sobre como deveríamos nos comportar e como essa ótica esquerda x direita é um tanto quanto tola. Ele diz que no nível familiar devemos ser comunistas, em nossa comunidade socialistas, a nível municipal progressistas-democratas, em nível estadual conservadores-republicanos e em nível federal libertários. Essa forma de ver o mundo é tão mais inteligente e complexa e faz tão mais sentido, que é uma pena essa ideia dele não ser tão discutida e analisada. Entretanto, sistemas de governos não é o foco desse artigo, e nem o motivo de trazer esse autor à baila.

Taleb bate muito na tecla, em vários dos seus livros, que interferências em sistemas complexos levam não só a consequências de primeira ordem, mas especialmente a consequências de segunda e terceira ordem.  As consequências de primeira ordem costumam ser mais previsíveis, porém as consequências de segunda e especialmente terceira ordem não são nada previsíveis e muitas vezes fogem a qualquer controle de uma análise prévia. Esse é o principal argumento do Taleb, por exemplo, para que governos interfiram o mínimo num sistema complexo como é a economia. Quer-se controlar a inflação, congela-se o preço da gasolina, por exemplo. Num primeiro momento, o efeito de primeira ordem (controle da inflação) pode acontecer, mas a interferência (congelamento de preços) pode ocasionar uma pletora de consequências imprevisíveis. Portanto, a melhor coisa a se fazer em sistemas complexos é deixar eles mesmos se auto-regularem e evitar ao máximo interferências externas.

Taleb, até porque libanês, é especialmente vocal a respeito de interferências militares, ainda mais em regiões extremamente complexas do ponto de vista geopolítico.  As intervenções quase sempre, ou talvez sempre, causam muito mais malefícios do que benefícios. Geralmente, o motivo da intervenção faz sentido, mas quase sempre se ignora que os efeitos secundários e terciários são imprevisíveis e podem produzir resultados ainda piores na situação do que se não houvesse a intervenção. 

Líbia. Governada por um ditador chamado Muamar Al- Gaddafi por décadas. Ele assassinava opositores, tinha harém de mulheres e cometia os atos grotescos piores possíveis. Porém, esse mesmo crápula, manteve um país basicamente tribal unido, a Líbia tinha um dos maiores IDHs da África, ele abriu mão de ter armas nucleares e nos últimos anos de seu governo a Líbia se comportava como um país razoavelmente “normal” nas relações internacionais. Manifestações populares emergiram pegando carona na primavera árabe, o ditador reprimiu duramente o dissenso político, a situação degringolou, uma coalização internacional atacou a Líbia e as forças de Gaddafi, e este acabou sendo capturado por rebeldes e morto. E o que é a Líbia hoje? Basicamente, uma terra sem lei. Grupos terroristas se instalaram no país. Há comércios de escravos em alguns lugares, como se estivéssemos no século XV. Não há qualquer futuro pacífico de uma sociedade minimamente organizada na Líbia no curto e médio prazo. Depois da intervenção a vida dos líbios piorou e o mundo ficou mais inseguro, não mais seguro.

Trump resolveu assassinar o maior general iraniano. Virou manchete no mundo, amigos meus comentaram o incidente. Todos correm para ter uma opinião. Eu não sou especialista em Irã, mas como tive o privilégio de passar mais de um mês nesse país espetacular, convivendo e muitas vezes dormindo na casa de locais das mais variadas classes sociais, posso comentar um pouco. 

Primeiramente, o Irã não tem nada a ver com o Iraque, inclusive são países com matrizes culturais completamente distintas. Iranianos não são árabes, e é uma grande ofensa no Irã você confundi-los com árabes. Iranianos, ao menos o maior grupo étnico, são herdeiros dos grandes impérios persas. Estes foram os primeiros grandes impérios territoriais-culturais que a humanidade presenciou. O Irã é fonte de uma história milenar riquíssima, cheio de cultura, cidades históricas e especialmente um povo muito orgulhoso de suas origens. Até mesmo comentadores políticos talvez não saibam que o Irã é uma panela cultural, sendo que a segunda etnia mais numerosa no país é na verdade de origem Turca-Azeri (Arzebaijão) e que o atual líder supremo religioso (Khamenei) não é persa, mas turco-azeri.

O Irã é um pais de classe média com uma renda per capta um pouco menor do que o Brasil, ou seja, eles são parecidos economicamente nesse sentido com a gente. Tehran é uma cidade vibrante e caótica como São Paulo. Possui uma classe média que está de “saco cheio” do governo, e só quer um pouco mais de prosperidade econômica e liberdade. As jovens em Tehran usam o Hijab (lenço na cabeça obrigatório de ser usado, inclusive por estrangeiros) com quase todo o cabelo a mostra, numa forma de protesto e de sinal de mudanças dos tempos. As mulheres de classe média são ativas, trabalham, são médicas e participam das decisões da família, assim como qualquer mulher no Brasil.

É o mundo ideal para mulheres? Claro que não. Não estamos falando da Austrália ou Finlândia. Mas dentro do mundo muçulmano, com certeza a situação da mulher é muito melhor, mais muito melhor no Irã do que na Arábia Saudita. Aliás, em tudo o Irã é um modelo muito mais moderado e sensato para o mundo muçulmano do que a Arábia Saudita. 

A não ser que a pessoa tenha passado um tempo no Irã, dificilmente se sabe o que a guerra Irã-Iraque de 1980-1988 significa para os iranianos. Quem já viajou pela Rússia, especialmente o seu vasto interior, sabe que os russos chamam a segunda guerra mundial de “A Grande Guerra Patriótica”. Essa guerra aconteceu entre 1941-1945. Portanto, e essa é uma das maravilhas de se viajar e realmente mergulhar nem que seja um pouco na vida de um país diferente, a percepção russa sobre a guerra é completamente diferente da nossa percepção da Segunda Guerra Mundial. Isso já tinha ficado claro para mim quando visitei o Vietnã há 12 anos, e descobri que a guerra lá era chamada de “Guerra Americana” e não como conhecemos “Guerra do Vietnã”, pois para os vietnamitas a guerra foi uma agressão injustificada dos americanos, e foi mesmo. 

O Irã em 1980 estava à beira de convulsões sociais. Havia se passado a revolução de 1979, uma revolução que contou com comunistas, republicanos e islamitas iniciada para acabar com a última dinastia de reis iranianos. Por acontecimentos do destino, os islamistas tomaram preponderância, e tornaram a revolução de 1979 numa revolução religiosa, mesmo que inicialmente ela não tivesse esse propósito (fato este também ignorado por muitos comentadores políticos).  

O Irã, até pela sua história riquíssima, possui elites letradas, mas também camadas populares mais conservadoras. O fato é que em 1980 não se sabia ao certo se o regime teocrático manteria-se por muito tempo. Então, com ajuda financeira e militar dos EUA, o Iraque invade territorialmente o Irã para tomar os campos de petróleo do sul do pais. Aproveitando-se da fraqueza política e militar do Irã naquele momento, o Iraque (que é muito menor e menos populoso) consegue vitórias militares fáceis e toma parte do sul do Irã. 

Depois desse fato, onde havia divisão, surgiu união. Os iranianos se uniram, ao menos boa parte deles, o regime teocrático conseguiu a legitimidade que precisava, e com muito esforço em vidas humanas, o Irã conseguiu impedir o avanço das tropas iraquianas, bem como expulsar essas tropas do Irã. As histórias dos combatentes iranianos em nada deixa a dever em bravura e determinação do que histórias de desembarque na Normandia no famoso  dia D. Dezenas de milhares de iranianos sabiam que iriam morrer, mas mesmo assim alistavam-se para defender o seu país. Por coincidência ou não, a guerra Irã-Iraque é conhecida no Irã como “A Guerra Patriótica”. Assim como na Rússia que em qualquer vilarejo há homenagens aos soldados russos da grande guerra patriótica, no Irã em qualquer cidade há homenagens aos chamados mártires da guerra de 1980-1988. É um evento doloroso para os iranianos. 



Por que falar tudo isso? Pois sem entender minimamente a história e algumas nuances, é fácil se perder em análises generalistas opacas. Eu não conhecia o general assassinado, mas li que ele era considerado um grande herói na guerra de 1980-1988. Se ele realmente era um herói nacional por causa dessa guerra, a comoção do país pelo seu assassinato com certeza não é algo fingido ou manobrado pelo governo. 

Ao se matar um general tão importante, Trump interveio num sistema complexo, muitas vezes mais complexo do que era o Iraque de Saddam em 2003 quando começou os bombardeios americanos. As consequências secundárias, terciárias e talvez de quarta ordem (daqui 10-15 anos) são completamente imprevisíveis. Um fato imprevisível já ocorreu. De maneira alucinada, a própria guarda revolucionária derrubou um avião comercial por engano. Não apenas iranianos morreram, mas também dezenas de canadenses. Qual impacto isso vai ter no governo, no ânimo das pessoas? Um país tão importante como o Irã é aconselhável uma ruptura drástica de poder depois de tantos anos? Se o Irã, com seus 70 milhões de habitantes, degenerasse em caos, o que não aconteceria com uma região que já está caótica, e com o mundo? E um passo mal calculado pelo regime iraniano, e uma retaliação americana, onde poderia levar o mundo? E se o assassinato desse general não unir as forças políticas do país e o regime se manter por mais dezenas de anos? E os efeitos que não se pode prever e que serão resultados desse ato daqui 2, 3 , 5 anos?

Ao ler e ouvir alguns comentários, parece que realmente as pessoas que dizem gostar de Taleb não o leram, ou passaram batido uma das partes principais sobre o desastre que é a intervenção, especialmente com força, em sistemas complexos. 

Esse vídeo de apenas cinco minutos da história do Irã é fantástico. Eu o vi várias vezes quando estava lá, até para poder entender um pouco mais da história das diversas cidades que eu visite. Mesmo que você não tenha interesse no Irã, o vídeo é muito bem produzido.

Um grande abraço a todos!


quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

A DÁDIVA DO PRESENTE


Eu gosto de assistir animações.  Há algumas muito bonitas e bem construídas. Uma das últimas que assisti chama-se “Divertida Mente”  e chorei algumas vezes, especialmente por causa da minha pequena filha e das lembranças e sentimentos que o filme evocou em mim.

 Há uma animação chamada “Kung Fu Panda” que é realmente muito bacana. Trata-se da história de um urso Panda que gostaria de aprender kung fu, só que ele é lento, gordo e desajeitado.  Porém, por algum mistério cósmico, ele é o apontado para ser o novo “Dragão Guerreiro”. O mestre treinador, um rato, deve então treiná-lo para ser o grande lutador de kung fu.  Entretanto, o urso panda não consegue evoluir e só se mete em trapalhadas, e no meio do filme, o mestre resolve pedir conselhos para o “mestre dos mestres” uma tartaruga de fala e movimentos lentos.

Numa das cenas mais bonitas que eu já vi, a tartaruga fala sobre a vida, sobre a paciência, sobre como as pessoas que menos esperamos podem nos surpreender positivamente e também fala isso:


Não se pode duvidar da simplicidade e profundidade dessas palavras. Tanto é verdade que é um ensinamento central em muitas doutrinas filosóficas ou espirituais. Sim, com memes, com um acúmulo de informação e livros, podemos banalizar um ensinamento poderoso como este, é verdade. Sinto que essa é uma lição fácil de entender, extremamente difícil de viver de acordo, pois tudo à nossa volta, especialmente em ambientes urbanos, nos distrai da realidade presente. Sempre almejamos algo, sempre nos lembramos de algo.

Bebês. Minha filha fez um ano recentemente.  Há algo de extraordinário com crianças pequenas, e qualquer pai, ou mãe, pode atestar esse fato. Uma das palestras mais interessantes que já vi foi de uma pesquisadora que comparou o cérebro de crianças ao cérebro de pessoas que utilizam substâncias psicodélicas como psilocibina ou DMT.  As crianças aparentemente não possuem restrições e fazem conexões entre várias partes do cérebro que nós adultos não mais fazemos, a não ser em estados meditativos profundos ou com o uso de substâncias psicodélicas.  Cores ganham sons, sons ganham cheiro e a forma de perceber a realidade se torna radicalmente diferente.

É claro que não se pode saber ao certo, mas tudo leva a crer que bebês vivem o momento presente com uma intensidade de dar inveja a qualquer grande meditador.  A diversão, tristeza, alegria e frustração são intensas e direcionadas a sensações do momento presente.  Os bebês, e talvez alguns poucos seres humanos mais iluminados, são o exemplo melhor acabado de como viver a dádiva que é o momento presente.

Proporcionar infâncias felizes é a maior responsabilidade dos pais, e da sociedade como um todo. Quando minha filha gargalha, eu não penso se ela vai lembrar-se desse momento ou se isso vai ajudar ela a ser uma criança mais inteligente, ou se por causa disso ela vai ter mais condições de ser uma pesquisadora numa universidade de prestígio dos EUA. Não. A gargalhada dela significa que o momento presente dela, e por via de consequência o meu, está sendo significativo, independentemente se isso irá acarretar ou não alguma consequência positiva no futuro. Estamos experimentando a dádiva de estar vivos e conectados com a única realidade que realmente existe. É uma lição de como viver a vida, e sou grato por ter uma filha e passar por essa experiência.

Obrigado vida. Obrigado filha.

Obs: agradeço aos leitores pelas sugestões de perguntas para o livro. O capítulo estava com 18 questões e 35 folhas, e há dois dias acabei de (re)escrevê-lo e agora possui 30 questões e 65 folhas. Foi de grande valia a participação de vocês, obrigado.
obs1: a pesquisadora citada no texto chama-se Alison Gopnik, ela tem um livro conhecido chamado "The Philosophical Baby". Essa é a palestra: https://www.youtube.com/watch?v=v2VzRMevUXg&t=1806s. Nela também está um pesquisador inglês conhecido sobre psicodélicos.
obs2: Se o tema sobre consciência e psicodélicos interessar alguém, o famoso escritor Michael Pollan (escritor do já clássico "O Dilema do Onívoro") recentemente lançou um livro sobre o tema chamado "Como Mudar a Sua Mente". O livro é fantástico. Conta a história recente dos psicodélicos, os vários estudos científicos da década de 50, o frenesi da década de 60, o banimento da década de 70, a retomada dos estudos na primeira década desse estudo e a explosão dos estudos nos anos recentes (tratamento de stress pós-traumático especialmente em veteranos de guerra, cuidado paliativo em pacientes com câncer em estado terminal, manejo para cura de vício em bebidas e drogas e muitas outras finalidades).