quarta-feira, 27 de julho de 2016

CÂMBIO - O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL, EMPIRIA E ESTRATÉGIA PARA O INVESTIDOR AMADOR

  Olá, colegas.  Estou inspirado para escrever sobre muitos temas, principalmente sobre a vida e viagens. Entretanto, resolvi refletir um pouco sobre investimentos, já que faz alguns artigos que não falo sobre isso. Não falo diretamente, mas eu creio que assuntos aparentemente não relacionados com finanças pessoais estão interconectados. Para ser mais claro, eu penso que uma vida mais equilibrada, leva a finanças mais equilibradas e isso está diretamente relacionado com independência financeira. O tema deste artigo é câmbio.


O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL QUANDO O ASSUNTO É CÂMBIO


  Minha sugestão para quem quer apreender um pouco sobre esse assunto: PARE DE LER "ESPECIALISTAS" E SUAS PREVISÕES. Simplesmente, pare. Colegas, os ditos especialistas parecem ignorar, ou simplesmente desconhecer, o fundamento mais básico da taxa de câmbio no médio e principalmente no logo prazo: o poder de compra  relativo entre as moedas. Esse assunto foi tratado por mim neste artigo Finanças - Dólar e Ouro. Porém, quero recomendar um outro artigo muito bom do Instituto Mises Brasil sobre o tema: Qual é o valor "correto" do Câmbio?. Leia os artigos, se tiver que optar por um, escolha o do Leandro do IMB.  

  Leu? Sério, vale muito a pena entender este conceito básico. Quando estudava direito, eu fiquei conhecido entre os professores por ter um bom raciocínio jurídico, ou seja, a capacidade de refletir em termos jurídicos, mesmo que eu por ventura não soubesse a solução legal para o caso. Eu creio que com a avalanche de informações hoje em dia, as pessoas se preocupam pouco com os princípios de qualquer área do conhecimento. Para mim esses são os conhecimentos cruciais. A partir deles você pode elaborar raciocínios mais complexos sobre qualquer tema. O que eu vejo em muitas áreas, são pessoas querendo elaborar pensamentos complexos sobre temas que não compreendem nem os princípios mais elementares. Como não poderia deixar de ser diferente, quando não se entende as fundações de um determinado assunto, não se pode ter opinião própria. Com o avanço da internet, isso ficou evidente e piorado. Muitas pessoas pensam que tem opinião própria, mas apenas estão repetindo algo que leram em algum lugar sem saber muito bem os motivos porque a realidade é de um determinado jeito e não de outro.

  Se você, prezado leitor, leu algum dos artigos mencionados, saberá que a principal força condutora do câmbio no longo prazo é o poder de compra das moedas.  É por esse motivo, que investir no dólar do Brasil pode ter uma função de proteger o poder de compra do seu patrimônio, mas no longo prazo tem uma expectativa de retorno real (descontado a inflação) próxima a zero.

  Imagine que o apartamento onde vivo valha R$100 mil. Vamos supor que a taxa de câmbio real seja de U$1 para R$1 (que bom seria hein!).  Vamos supor que a inflação nos EUA e no Brasil seja de zero pelos próximos 10 anos (é apenas um exercício mental). Isso quer dizer que o poder de compra de um dólar será o mesmo daqui 10 anos. Como a inflação no Brasil também foi de zero, isso quer dizer que o poder de compra do real se manteve estável. Se daqui 10 anos, a taxa de câmbio fosse de U$1 = R$2, isso significaria que o meu apartamento, para um americano, estaria custando a metade do preço. Isso não faria nenhum sentido. 

 Agora imagine que a inflação do Brasil seja de 100% no período. Vamos supor também, algo que é bem razoável, que o imóvel seja resiliente à inflação, ou seja, ele suba de valor na exata proporção da inflação. Assim, o imóvel irá custar R$200.000,00 daqui 10 anos. Se a taxa de câmbio nominal, a que vemos no dia a dia e os especialistas adoram dizer para onde vai, permanece a mesma (R$1=U$1), isso quer dizer que o apartamento, para um investidor estrangeiro em dólar, custaria o dobro. Algo que não faria sentido também, pois a riqueza dobraria sem que houvesse qualquer crescimento real no valor do imóvel.


A COMPROVAÇÃO EMPÍRICA


  Difícil entender? Não. Lógico? Certamente. Comprovação empírica? Sim. Quando estava viajando de trem pela parte mais  moderna na China (leste), li muitos artigos, estudos e livros. Aliás, como é confortável viajar de trem. Uma pena que o Brasil não tenha trens. Imagine ir de Curitiba a Florianópolis em uma hora lendo confortavelmente um livro? Um desses estudos foi o último relatório do Credit Suisse Internacional de 2015 (acessível aqui). Quem não conhece esses relatórios anuais, recomendo uma verdadeira aula de investimentos, algo que não se encontra nem remotamente no Brasil. 

  Eu estava fazendo um resumo desse estudo, principalmente sobre os retornos de diversas classes de ativos em quase 30 países. Creio que seria um material bem interessante para provocar reflexões a nós investidores amadores, principalmente porque não há quase nenhum material sobre isso em português. Fiz bastante coisa, mas infelizmente não conseguirei publicar, pois demandaria bastante tempo e acesso à internet. Entretanto, resolvi inserir alguns gráficos, para mostrar se a noção de manutenção de poder de compra das moedas no longo prazo se sustenta em exemplos concretos.

   Colocarei alguns gráficos abaixo. Não se preocupem ou prestem muita atenção nas diversas barras. Elas representam os Equity e Bond prêmios, ou seja, o quanto o risco foi recompensado ou não. A única barra que quero que vocês amigos leitores prestem bastante atenção é a azul clara. Essa barra demonstra o quanto uma moeda valorizou ou desvalorizou em relação ao dólar em termos reais, ou seja já considerado a inflação das moedas destes dois países.

  Se, por exemplo, num determinado período a barra representar 0.5%, isso quer dizer que no período considerado a moeda valorizou meio ponto por cento ao ano em relação ao dólar, já considerando a inflação das moedas. Isso quer dizer que demoraria algo em torno de 150 anos para a moeda em questão ter uma valorização de 100% em relação ao dólar. Se a barra apontar 0%, isso quer dizer que não houve qualquer ganho ou perda durante o período.

  Muitos países são analisados. Infelizmente, nenhum país latino americano. Tentei colocar países diversos, com histórias políticas, econômicas e sociais diferentes uns dos outros. Com diferentes graus de inflação, para saber se o princípio básico de manutenção do poder de compra entre as moedas se manteve ou não.

NOVA ZELÂNDA


     Para mim, a Nova Zelândia é o melhor país do mundo para se viver. É simplesmente fantástico e maravilhoso aquele lugar. 




   Como se pode observar, no período de 115 anos a moeda da Nova Zelândia se desvalorizou -0,2%aa. Isso quer dizer que a moeda da Nova Zelândia perderia metade do seu valor em relação ao dólar, se a tendência permanecesse a mesma, em três séculos, isso mesmo, 300 anos. Nenhum Kiwi vai ficar rico-pobre ou turbinar o seu patrimônio apostando na (des)valorização de sua moeda no longo prazo. Numa tendência de menor prazo (1965-2014), a moeda da NZ apresentou discretíssima valorização em relação ao dólar. Em relação à maravilhosa Nova Zelândia, o princípio básico da manutenção do poder de compra entre as moedas se aplicou quase a perfeição.


DINAMARCA

   Ainda não tive a oportunidade de conhecer este interessante país. A Dinamarca, segundo alguns pensadores litbertários, é o pais onde os seres humanos são mais escravos do mundo. Isso porque é o país com a maior tributação em relação ao PIB do mundo. Como qualquer forma, segundo essas pessoas, de tributação é um roubo e uma forma de escravidão do ser humano, essa é a única conclusão lógica para essa forma de pensar. Entretanto, a Dinamarca durante vários anos foi considerado, pelos relatórios da ONU sobre o tema (ver uns dos meus últimos artigos a respeito) o país mais feliz do mundo e todos os seus índices de desenvolvimento humano são impressionantes.




   Num período de maior duração, a moeda dinamarquesa mostrou uma leve tendência de alta em relação ao dólar. Num período mais curto de tempo (1965-2014), a moeda se valorizou mais acentuadamente. Esse resultado pode ser encontrado em vários países europeus, e está inserido, eu acho, numa trajetória de enfraquecimento do dólar que vinha desde a década de 80 e apenas nos últimos anos está se revertendo.


ÁFRICA DO SUL


  A África do Sul é um país de contrastes. A Cidade do Cabo é uma das cidades mais bonitas que já estive na vida. Por seu turno, a capital Johanesburgo é uma das cidades mais perigosas do mundo. Um apartheid que não existe mais na lei, mas existe na realidade (presenciei várias cenas de enfrentamento aberto ou velado entre negros e brancos). Um país rico em recursos, mas ainda com uma população muito pobre. Em certa medida, esse país Africano tem semelhanças fortes com o nosso país.





    A moeda da África do Sul apresentou uma tendência de desvalorização permanente em relação ao dólar. Num país com tantos problemas, que esteve à beira da guerra civil no começo da década de 90 e com tantos problemas sociais e econômicos, uma desvalorização real de -0,9%aa não é tão severa. Mesmo nesse caso, parece claro que o princípio do poder de compra entre as moedas se sustenta, ou ao menos é um ótimo ponto de partida para análise.


SUÍÇA


  Ah, a Suíça. Destino favorito para o dinheiro dos políticos brasileiros. Este país é belíssimo. Os dias que passei fazendo trilhas na região de Interlaken foram extraordinários. Cidades lindas, infra-estrutura de primeiríssimo mundo e uma natureza esplendorosa. Ainda há queijo e chocolate de qualidade. Quem precisa mais? Eu, particularmente, não gostaria de morar na Suíça. Além de ser caríssimo, creio que não é o tipo de lugar que gostaria de criar meus filhos, pois sinto que falta algo nas relações humanas, mas essa é apenas minha opinião particular.  A Suíça foi um bastião de segurança. Bons retornos financeiros e uma moeda extremamente forte. Foi o país com menor inflação do mundo nos últimos 115 anos.





    Se a  moeda da África do Sul teve uma tendência de desvalorização contínua, a moeda Suíça é o oposto. Impressionante o desempenho da moeda Suíça ao longo do tempo. Apesar de ser o país com menor inflação, um dos bastiões mais fortes de estabilidade política e financeira, a valorização em relação ao dólar existiu, mas também não foi algo espetacular. Isso, em minha opinião, corrobora o princípio. 


ESPANHA


  Já tive a oportunidade de ir algumas vezes para Espanha. Entre os países europeus, com certeza, junto com Portugal, é o país que tem mais semelhança com o nosso. Muitos dos problemas, e das qualidades, que possuímos como povo, está presente em maior ou menor grau nos portugueses e espanhóis. O gráfico de Portugal é muito semelhante com o gráfico da Espanha. Assim, ao olhar o gráfico abaixo pode-se ter em mente a nação lusitana.



  Numa tendência de maior prazo, o retorno foi de zero por cento. Isso acontece com vários países analisados no relatório em comento. Numa tendência de mais curto prazo, há a valorização. Mas como dito anteriormente, vários países europeus apresentam o mesmo comportamento no período em tela (1965-2014).


UMA ESTRATÉGIA DE INVESTIMENTO EM MOEDAS 
PARA O INVESTIDOR COMUM

   “Ok, Soul, acho que entendi a mensagem, o que, como investidor amador posso fazer diante de tudo isso?”.  Se , enquanto investidores não profissionais e sofisticados, entendermos esse princípio básico da taxa de câmbio, fica muito mais fácil colocar esse ensinamento nas nossas estratégias de investimento de forma mais concreta.

  Primeiramente, o dólar tende a ter uma valorização real nula ou muito pequena no médio-longo prazo. Sendo assim, comprar dólar como forma de ganhar dinheiro é algo que não se sustenta no longo prazo.  Aqui estou falando de dólar, mas o princípio se aplica a todas as moedas. Aliás, se a ideia é proteger o patrimônio, faz muito mais sentido ter uma cesta de moedas e não apenas dólar.

  Se a pessoa quiser fazer uma grande remessa ao exterior de uma só vez,  creio que vale a pena levar o conceito de câmbio real muito a sério. Isso vai evitar que pessoas comprem dólar em momentos de extremo pessimismo e façam um terrível negócio. Alguém se lembra do tom alarmista de muitos blogs de finanças? O dólar iria a R$5,00. Quem queria emigrar era o fim da chance de sair do país. Quem agiu de forma emotiva, sem conhecer o princípio básico a regular a taxa de câmbio no médio-longo prazo, amarga prejuízos financeiros substanciosos. É claro que agora há sempre várias explicações: lava jato, impedimento presidencial, Brexit, crise turca, juros nos EUA, etc, etc. Isso nada mais é do que um erro de julgamento, um dos mais básicos. Chama-se Hindsight Bias e já foi abordado nesse blog Hindsight Bias - O que os Jornais de 20 anos atrás podem nos ensinar.

  Logo, se quer investir no exterior uma grande parcela de uma única vez e a taxa de câmbio real estiver esticada em favor do dólar, espere, aguarde. Mantenha o seu dinheiro em algo que mantenha ao menos o poder de compra. No Brasil, ainda há um bônus que o investidor pode fazer isso ganhando juros reais muito altos.  Se a taxa de câmbio estiver mais ou menos onde era deveria estar (algo em torno de 5% para mais ou menos), a compra de dólar, ou outra moeda, será feito sem grandes riscos. Quando a taxa de câmbio real estiver abaixo do valor, talvez seja o momento ideal de comprar dólar, até mesmo pessoas que querem apenas aproveitar uma boa taxa de câmbio.

  Como saber a taxa de câmbio real? Você pode fazer isso na mão pegando as taxas de inflação das moedas que quiser analisar. Em relação ao dólar, o Banco Central do Brasil possui essa estatística. É a série temporal  11573 - Índice da Taxa de Câmbio Real. Eu, infelizmente, não consegui acessar a série. Tentei de várias maneiras, e não sei se é problema no meu computador ou problema na pecinha (aquela que fica entre o computador e a cadeira). Portanto, resolvi pegar dois gráficos de outro  bom artigo do IMB escrito no ano passado (O Dólar está caro?). Como o artigo é de agosto de 2015, a informação vai até a metade do ano passado apenas.



   Este primeiro gráfico é a série temporal do Banco Central. Ela começa com a estabilização monetária em 100. Sempre que a taxa de câmbio estiver abaixo de 100, isso quer dizer que o nosso real está valorizado. Quando estiver acima, subrevalorizado. É evidente que o câmbio estar um pouco acima ou abaixo não é indicativo forte de alguma inconsistência. Porém, quando se abre gaps de 15-20%, ou seja quando esse indicador estiver em torno de 80 ou 120, é algo muito forte para compra (venda) de dólares. 

  Percebam que em 2002, antes do Lula ser reeleito, esse índice chegou a quase 200, o que é algo espantoso. Não é à toa que investidores estrangeiros fizeram a festa no país. Até o meu pai percebeu esse tamanho desvio e ganhou dinheiro em várias fontes (no Ibovespa, comprando Bonds brasileiros a 50% do valor de face e também no câmbio). Isso é muito raro de acontecer. Um índice de 200 hoje em dia, equivaleria a um dólar próximo de R$7,00. Essa foi a distorção que ocorreu.

   O nosso real ficou durante muitos anos valorizado. E nunca vi nenhum comentarista chamando atenção para esse fato. Se o câmbio derreteu com o PT no comando, também aproveitamos a nossa moeda valorizada no governo do mesmo PT.




  Este outro gráfico muito interessante, mostra a diferença entre o câmbio real (linha vermelha) e o câmbio nominal ( linha azul - aquele que a impressa, analistas e quase todos se debruçam e dão opinião). Veja que na crise de 2002, quando o câmbio real era de R$1,85, o câmbio nominal chegou a espantosos R$3,81. Agora, percebam também que em meados de 2011, o câmbio nominal estava em apenas R$1,56, quando o câmbio real apontava um valor de R$2,54.

  Analisem também que de 2006 a meados de 2015 (quando o real começou a sofrer uma grande desvalorização), ou seja por quase uma década, a taxa de câmbio nominal estava abaixo da taxa de câmbio real, e durante muitos anos, muito abaixo. Não é à toa que o Lula foi tão popular. Nós ficamos mais ricos, nosso dinheiro valeu muito mais, mesmo que a nossa produtividade tenha estagnado. Foi apenas uma ilusão causada pelos infindáveis ciclos de variação do câmbio. Porém, antes de reclamar do câmbio atual, olhe para os últimos 10 anos e perceba que a taxa de câmbio foi extremamente favorável. 


CONCLUSÃO

 Colegas, sigam o princípio lógico, e comprovado pelos exemplos históricos, de que as moedas no médio-longo prazo representam o valor de compra entre elas.  Mas e no curto prazo? Colegas, isso você pode perguntar para alguém que lê o horóscopo, gráficos de tendência ou acha que pode analisar milhões de informações complexas e contraditórias e extrair algum sentido disso tudo.

  Talvez existam profissionais com ferramentas sensíveis e algoritmos complexos que consigam saber o efeito que uma tentativa de golpe frustada num país tão importante como a Turquia, combinada com um ataque terrorista na Alemanha, etc, etc pode ter na taxa de câmbio do Rand da África do Sul. Você, eu, e quase todos os ditos "especialistas" que falam à imprensa, não são essas pessoas.

  Defina suas prioridades. Os motivos de querer alocação em moeda estrangeira, ou em ativos estrangeiros (o que faz mais sentido para mim). Não se deixe levar por otimismo ou pessimismo exagerado, e a série fornecida pelo Banco Central é um excelente guia e um grande antídoto para isso. Use ao seu favor. A lógica e os exemplos históricos estarão ao seu lado.

obs: depois de ficar alguns dias na Capital da Mongólia fazendo preparativos, amanhã saio para uma das maiores aventuras da minha vida. Eu, minha companheira e uma amiga, mais um motorista Mongol que fala pouquíssimo Inglês, iremos para uma das regiões mais remotas e belas do planeta terra: O Oeste da Mongólia. Para se ter uma ideia, são cerca de 150 mil pessoas que habitam uma região do tamanho da França. Dezenas de lagos, dezenas de montanhas nevadas, caçadores que usam águia (90% dos humanos que fazem isso estão nessa região), caminhadas desafiadoras e "estradas" que pelo que procurei me informar às vezes levam 7-8 horas para andar 100km. Teremos que acampar na maioria dos dias, pois não há nem mesmo Ger para ficar em vários lugares. Há lagos que não estão nem no mapa. Serão de 25 a 30 dias inesquecíveis por vários motivos, tenho certeza. Não conseguirei postar nada, pois não terei acesso a internet. Em pequenas vilas, se conseguir algum acesso a internet tentarei liberar os comentários. Prometo que responderei todos os comentários assim que tiver oportunidade.


Mais uma Grande Aventura me aguarda (foto - Flaming Cliffs, Deserto de Gobi, Mongólia)


   Grande abraço a todos!

sábado, 23 de julho de 2016

NEWSPEAK, NEVE E A DISTORÇÃO DA REALIDADE

Olá, colegas! O que dizer depois de uns 40 dias sem escrever nada neste espaço? Havia alguns comentários a ser liberados, um deles de um outro blogueiro que atende pelo nome de FrugalSimples. Ele escreveu que estava preocupado com a minha segurança física,  já que estou viajando por alguns lugares “não-convencionais” e eu não dei nenhum sinal de vida durante essa ausência.  Primeiramente, agradeço de coração a mensagem do colega. Fiquei feliz em recebê-la. Em segundo lugar, sim, estou vivo, mais vivo do que nunca.

  Os últimos 10 dias fiquei quase que exclusivamente "into the wild”, sem banheiros, eletricidade, ducha e confortos com os quais estamos acostumados. Estou na Mongólia. Sempre me perguntam qual local dos que eu já visitei eu mais gostei, nunca soube responder, pois para mim todos eles são especiais de alguma maneira. Entretanto, acho que me apaixonei por esse país. Eu estava com receio de me decepcionar, pois a Mongólia era o local do planeta terra que eu mais desejava conhecer. Não havia nenhum outro lugar do mundo que me chamava mais atenção do que a Mongólia. As duas primeiras semanas nesse país foram, por incrível que possa parecer, muito acima de qualquer expectativa. Não tenho palavras. 

  Um dia, num lugar chamado Orkhon Valley, estava indo ao banheiro improvisado de madeira que se localizava a uns 200 metros do GER (tenda Mongol) onde estava hospedado, quando reparei que havia centenas de cabras na frente do  banheiro. Olhei mais ao lado, e vi dezenas de cavalos semi-selvagens correndo em direção a pequenos morros. Um pouco mais ao fundo havia dezenas de Yaks perambulando sossegadamente por planícies de um verde intenso. Havia centenas de flores silvestres espalhadas por todos os lugares, com várias colorações. Olhei para o rio transparente em que eu tinha acabado de tomar banho. Voltei meu olhar de novo para o banheiro e vi uma criança mongol brincando feliz com sua pequena bicicleta. Comecei a duvidar dos meus olhos. É real? Parece que estou em algum tipo de paraíso retratado em pinturas cristãs. Sim, é real, e por um momento uma sensação de calma e assombro pela beleza deste mundo percorreu todo o meu corpo. Sim, estou vivo e imerso por completo no presente momento. 

É real?

Sim, e muito mais bonito do que essas fotos representam. Apenas senti felicidade e assombro pela beleza do mundo, pela síntese de pequenos momentos, ao observar a realidade ao meu redor.

  Sim, estamos perdendo algo na correria do dia a dia das cidades. Algo fundamental para o nosso bem-estar humano. Porém, não é sobre isso que o texto de hoje irá se ater. Quem lê um livro mais de uma vez? Para muitos pode parecer perda de tempo. O meu pai, por exemplo, não gosta de ver um filme mais de uma vez. Eu, por outro lado, assisto, quando realmente gosto de um filme, muitas e muitas vezes. Livros foram apenas alguns poucos que li mais de uma vez. Um deles foi o magistral “O Processo” de Kafka. A última vez que li creio que deveria ter uns 25 anos. Acho que chegou a hora de reler mais uma vez agora com 36 anos (sim, mais um aniversário meu se passou enquanto viajava, e tenho uma história muito bonita sobre isso que ocorreu na cidade de Shanghai, mas deixo para outra oportunidade). Entretanto, o texto não é sobre as profundas e devastadoras ideias e “imagens" contidas em “O Processo”, mas sim sobre outro livro magistral que tive o prazer de reler enquanto estava viajando pela parte leste da China nesse mês que se passou: 1984.

  O livro é sensacional. Para além da crítica evidente ao regime ditatorial socialista da URSS, o livro é uma fonte muito profícua de muitas outras ideias e reflexões. Foi um verdadeiro prazer intelectual poder reler a história sobre Oceania, Big Brother e todos os demais elementos do drama contido no texto.  O livro em questão permite uma miríade de discussões, mas vou puxar apenas um assunto: Newspeak.

  Você, prezado leitor, já parou para pensar sobre a Neve? Talvez boa parte dos leitores desse blog  nem mesmo tenha visto pessoalmente neve na vida . Há diferentes tipos de neve? Há diferentes forma de expressar esse fenômeno? Para alguém que pouco conhece neve, muito provavelmente neve é tudo igual, e com apenas uma palavra (Neve) pode-se explicar o que esse fenômeno representa. Porém, os suecos possuem mais de 20 palavras para Neve, sendo que os esquimós tem um número ainda maior. Isso foi me dito por um francês com o qual viajei por 10 dias pela Mongólia, um formando em medicina que iria se especializar em neurologia.  Ao ouvir esse fato, creio que uma área do meu cérebro deve ter se acendido.

  A razão de povos como os suecos, ou os esquimós, terem tantas palavras para representar o que entendemos como neve, é que para eles a neve é algo presente no dia a dia, algo com o qual eles precisaram lidar por diversas gerações. Ou seja, eles possuem um conhecimento aprofundado sobre o que é neve e as diversas variações que ela pode ter. Por seu turno, um brasileiro tem um contato nulo ou pequeno com o fenômeno que entendemos como neve. Logo, um Brasileiro muito provavelmente é ignorante quando o assunto é neve. 

Quando o assunto é neve, parece evidente que enquanto brasileiros entendemos muito pouco se compararmos com o conhecimento dos suecos

  Na história do livro 1984, o governo totalitário tem o objetivo declarado de reformular a língua que os habitantes da Oceania (nome dado a um dos três super-estados que surgiram depois de uma grande guerra nuclear na década de 1950) falam. O inglês é o Oldspeak, a nova língua Newspeak é a língua que artificialmente aos poucos ia sendo construída. Há algo de muito interessante no processo, é que o objetivo principal do Newspeak é diminuir o número de palavras. Por qual motivo? Porque apenas com uma gama razoável de palavras podemos representar ideias mais complexas do mundo. Ideias estas que podem ser revolucionárias ou disruptivas de um determinado status quo. Ao simplificarem o idioma, o objetivo do Partido governante era simplesmente impedir que pensamentos críticos pudessem brotar na cabeça das pessoas, pois simplesmente não haveria palavras para expressar determinadas ideias. Se não há palavras, não há ideias.

Um livro genial

  O conhecimento dos Suecos sobre a neve pode ser traduzido na existência de muitas palavras para expressar este fenômeno natural. A Ignorância dos brasileiros sobre esse fenômeno pode ser traduzido na existência de poucas ou apenas uma palavra para expressar a ideia de neve. Ou seja, um maior conhecimento sobre a realidade se traduz em diversas formas distintas de representar esta mesma realidade. Um conhecimento limitado se traduz em poucas formas de representação dessa mesma realidade.

   Quando fiz a associação entre a ideia do Newspeak contida no livro 1984 e as diversas formas dos suecos expressarem o fenômeno neve, ficou mais nítido para mim o motivo de tantas pessoas recorrerem seguidamente a rótulos, ou a ideias gerais que claramente não conseguem apreender a complexidade de diversas temáticas.

  Vejamos por exemplo o Islamismo. É notório, pelo menos os textos brasileiros, que boa parte dos escritos não fazem a mínima noção da complexidade do mundo muçulmano. Para a esmagadora maioria das pessoas, como no caso brasileiro para neve, há apenas poucas palavras, ou seja poucas descrições da realidade, para descrever os adeptos da religião em comento. Entretanto, o mundo é muito mais complexo do que isso. Qualquer um com mínimo conhecimento sobre o tema, sabe que o Islamismo praticado na Arábia Saudita não tem qualquer relação com o Irã, por exemplo que por sua vez pouco se assemelha com o Islamismo praticado na Indonésia, país de maior população muçulmana. O desconhecimento é tão grande que se associa árabe com muçulmano, quando há cristãos-árabes e a maioria dos muçulmanos não são árabes. Numa abordagem generalista, superficial, o fenômeno islamismo pode ser representado em poucas ideias e palavras. Numa análise mais complexa, e muito mais condizente com a realidade, são necessárias muitas ideias e palavras para fielmente representar esse universo e toda a suas idiossincrasias.

  Leandro Karnal é um historiador que vem se tornando muito popular por suas palestras. Eu o acho brilhante, um dos grandes pensadores do Brasil. O fato de uma pessoa como ele se tornar mais popular num país com obsessão por corpos e chuteiras como símbolos de sucesso algo muito salutar. Ele tem uma habilidade única de ser cortês e propor diversas reflexões desafiadoras para quem está disposto a questionar muitas ideias arraigadas. Ele fala sobre amor, inveja, ódio, violência, política, e uma grande gama de outros temas. A importância dele não é ser o oráculo da verdade, mas sim ser alguém que propõe uma verdadeira reflexão mais profunda sobre os diversos assuntos humanos. 

Karnal, um grande pensador brasileiro. 


  Ele recentemente deu uma entrevista para o programa roda-viva. Não consegui assistir até o final, pois a conexão de wi-fi falhou. Como vi pelo youtube, dei uma olhada de leve nos comentários. Barbaridade. Uma quantidade não desprezível de pessoas o classificou como “comunista" e com base nesse rótulo descartou qualquer ideia que ela possa ter sobre qualquer tema. Eu nunca consigo parar de me surpreender com tamanha irracionalidade humana. 

  Já abordei esse tema diversas vezes nesse espaço, mas creio que com a associação entre Newspeak e o fenômeno neve para os suecos talvez fique mais ilustrativo compreender o quão distorcida é essa forma de analisar o mundo. Se os suecos possuem mais de 20 palavras para expressar apenas um fenômeno  natural, há algum sentido de termos apenas poucas palavras (para algumas pessoas apenas duas: direita e esquerda) , ou seja uma forma limitada de análise da realidade, para expressarmos a complexidade das diversas interações humanas que vão desde descarte de lixo radioativo, passando por sustentabilidade dos nossos ecossistemas, alocação de recursos escassos entre os membros de uma sociedade (e por que não dizermos do mundo inteiro), e tantos outros temas? Para mim não faz o menor sentido, é como querer expressar toda a variedade de vida no planeta terra apenas com as palavras animal e vegetal.

  Essa forma de encarar o mundo nada mais é do que resultado direto do desconhecimento e ignorância da própria realidade.  Para podermos expressar melhor a realidade, para podemos compreender melhor o universo que nos cerca, precisamos de formas de externar as nossas ideias, e isso só é possível com conhecimento e reconhecimento da complexidade das relações humanas. Quer deixar um indivíduo ou sociedade na ignorância? Retire deles a possibilidade de expressarem de diversas formas a complexidade do mundo. 

  Grande abraço!