Olá, colegas. Não, o texto não é uma provocação ao colega
Rafael do site Investidor Internacional que publicou artigo com o mesmo
título. O blog dele já foi, e continua
sendo, o mais indicado para investimentos internacionais, material de muito boa
qualidade. O meu intuito é apenas refletir como um fato pode ser apreendido das
mais diversas formas, e procurarei fazer um texto ainda mais abrangente do que
o tópico da chamada do artigo.
HORMESE E IATROGENIA– NICHOLAS
NASSIM TALEB
No começo
desse blog, lá pelos idos de 2015, diversas vezes um comentador dizia que eu não
entendia os livros que citava, especialmente quando fazia referência ao famoso
escritor de “A Lógica do Cisne Negro”. É
bem possível que eu não tenha entendido tudo profundamente, afinal falhas de
interpretação é algo normal e natural, ainda mais para alguém que não é
superdotado como eu.
Desde
então, eu reli o livro, e li alguns outros do mesmo autor. Não sei se a minha
compreensão aumentou, eu acredito que sim. Apesar de ele ser bastante citado
pela comunidade financeira, os conceitos que mais me chamam atenção na obra
dele são a Iatrogenia e a Hormese.
Iatrogenia
é um termo bastante usado em medicina, e um dos motivos da minha busca pessoal
por autoconhecimento em relação à saúde do meu corpo. Basicamente, esse termo
se refere a um dano que pode ser causado quando se realiza um ato na
perspectiva de melhorar uma situação.
Por exemplo. Alguém descobre que possui uma hérnia entre a L4-L5. A hérnia
não é sintomática, ou seja, a pessoa não sente dor. Um médico resolve mesmo
assim operar essa hérnia, e na operação alguma complicação surge. A complicação
é a iatrogenia do ato médico de tentar melhorar a situação do achado de imagem
(a hérnia entre L4-L5).
A
profissão médica sempre estará sujeita a iatrogenia, pois está lidando com
situações limites dentro da complexidade fisiológica de um ser humano. Porém,
ao se saber que fazer alguma coisa pode ocasionar efeitos iatrogênicos, pode-se
refletir melhor sobre se um determinado ato realmente necessita ser feito.
Taleb acredita, e eu também, que um
excesso de medicação e intervenções cirúrgicas pode ocasionar mais mal do que
bem, justamente pelo efeito iatrogênico.
O
outro conceito, Hormese, é muito interessante.
Ele é central para a toda a linha de argumentação do Taleb. Na verdade,
talvez seja o conceito mais importante tratado por ele no imenso livro de 700
páginas “Antifrágil”. Hormese é o fenômeno de que um organismo submetido a uma
dose moderada de algum estressor pode na verdade ocasionar que esse organismo
saia fortalecido e não enfraquecido.
Exercício
com cargas, por exemplo, é um caso típico de Hormese. Ao se levantar cargas
pesadas, submetemos o nosso organismo a um estressor externo, nosso corpo sofre
com o stress momentâneo, mas como uma forma de se preparar para futuros stress
parecidos, nosso corpo se adapta criando, e aumentando, fibras musculares, nos tornando mais
fortes, para que assim nosso organismo não seja estressado ao ser submetido
novamente a uma sessão de levantamento de peso.
A
Hormese está presente em tudo. Expor o corpo ao frio fortalece o mesmo. Expor o
corpo ao calor fortalece o mesmo. Talvez a exposição alguma desilusão
profissional, ou amorosa, tem o efeito de nos tornar mais resilientes. Esse é
um dos motivos, e claro compatível com a idade, pelos quais não irei tirar
todos os estressores da vida da minha filha. Muito amor e Hormese controlada e
compatível para uma criança, talvez seja a forma de se criar adultos fortes e
resilientes.
Infelizmente,
quase nunca vejo pessoas que comentam a obra de Taleb abordando esses dois
tópicos que em minha opinião são centrais para entender o pensamento desse
escritor.
SISTEMAS COMPLEXOS
A
fisiologia de um corpo humano é de uma complexidade ímpar, isso ninguém pode
negar. Quanto mais complexo um sistema, por uma questão de lógica, mais
iatrogenia pode ser ocasionada por alguma interferência nesse mesmo sistema.
Talvez uma medicação que suprima um determinado hormônio para aliviar algum
sintoma no fígado, pode ocasionar uma interferência em como uma determinada
parte do cérebro processa uma determinada proteína. Talvez, ao se testar a
medicação, nunca se imaginasse que uma proteína poderia ter os seus efeitos
modificados numa região do cérebro, e não se imaginou, pois como dito a
fisiologia do corpo humano é complexa com milhares, dezenas de milhares, de
interações entre hormônios, enzimas, genes, moléculas sinalizadoras, etc.
Se
o corpo humano é complexo, as sociedades modernas do século 21 são sistemas
ainda mais complexos. A complexidade das interações humanas é tão grande, que um ser humano (ou um grupo de seres
humanos) por mais inteligente que seja não é capaz de antever os efeitos de
intervenções profundas na sociedade. Esse é o argumento principal contra regulamentos, a
existência do Próprio Estado, de uma miríade de pessoas simpatizantes do
liberalismo mais radical, escola austríaca, etc. Como Taleb gosta bastante de pensadores como
Mises, é natural que ele derive que interferência em sistemas complexos do
ponto de vista econômico tem um potencial de ocasionar mais mal do que bem.
Eu
acredito que explicações da realidade que focam apenas no fenômeno econômico
são no mínimo míopes. Desde o advento da economia comportamental, e talvez
muito antes disso com os filósofos clássicos, sabe-se que o ser humano está
longe de ser racional em todos os momentos. Pelo contrário, muitas das decisões
são tomadas a nível inconsciente. Além disso, há questões culturais,
geográficas, históricas, hormonais, e talvez uma miríade de muitos outros
aspectos na existência humana.
Sendo
assim, se do ponto de vista econômico um agrupamento humano de centenas de
milhões de pessoas é de uma complexidade absurda, se colocar os diversos outros
aspectos na problemática, a complexidade salta algumas ordens de grandeza.
É
por isso, pelo conceito de iatrogenia e sistemas complexos, que intervenções
militares podem ocasionar efeitos de segunda e terceira ordens inimagináveis.
Eles não são previsíveis, pois os sistemas são complexos. É por esse motivo que
Taleb sempre via com extrema reserva interferências militares dos EUA no
oriente médio pós 09/11. É por isso que a Líbia possuía um dos maiores IDHs de
todo o continente africano na era Kaddafi, e agora há feiras de vendas de
escravos acontecendo em algumas cidades líbias.
Pensem
por um momento, leitores. Um país que talvez tivesse um IDH melhor do que o
Brasil, e alguns anos depois há feiras de escravos. Já imaginaram ir trabalhar e
passar pela Praça da Sé e ver um leilão de escravos sendo feito em praça
pública? Bizarro? Incompreensível? Pois é o que acontece na Líbia hoje em dia.
Essa reflexão não significa que Kaddafi não era um ditador, ou que ele não
cometia graves violações contra o seu próprio povo, apenas significa que quando
se intervém em sistemas complexos (no caso o regime de um país que sempre foi
dividido entre muitas tribos) mesmo com o intuito de melhorar a situação, pode
ocorrer efeitos iatrogênicos graves, e a situação pós-intervenção ficar ainda
pior.
BRASIL, TRUMP, SANDERS , ARGENTINA, ETC
E
qual é a relação disso tudo com Argentina? Bom o texto do outro blog parte do pressuposto
que a eleição da Argentina será ganha por um esquerdista, e isso é um recado
para o Brasil que o mesmo pode acontecer aqui, e se isso ocorrer, o caos
instalar-se-á.
Eu
concordo que é um recado para o Brasil, mas na verdade é um recado para todos,
ainda mais em tempos de simplificações grosseiras, e visões de curtíssimo
prazo. Primeiramente, um exercício de sinceridade. Nem eu, e muito
provavelmente nenhum leitor, tem um conhecimento, talvez nem grosseiro, sobre a
Argentina e sua história.
É possível que nem mesmo em relação ao Brasil boa
parte das pessoas tenha um conhecimento firme. Se eu perguntar qual presidente
veio primeiro, Prudente de Moraes ou Campos Sales, ou o que Rodrigo Alves fez
ou deixou de fazer, é muito provável que quase ninguém saiba. Eu mesmo não sei
(apesar de recomendar o fenomenal podcast presidentes da semana da Folha de São
Paulo, um guia rápido para termos ao menos uma visão mais geral da história do
nosso país. É provável que a maioria vai se surpreender como discursos anti-corrupcão,
anti-sistema, corte de gastos, são velhos e já foram feitos algumas vezes na
história de nosso país).
Sendo
assim, eu sei pouca coisa sobre a Argentina. Porém, sei que a Argentina é um
sistema complexo. Eu sei que o Brasil talvez seja um sistema ainda mais complexo,
assim como os EUA. Logo, é muito difícil realmente, se é que isso de alguma
maneira é possível, entender a complexidade de um país inteiro.
E
o que isso significa? Significa que como os sistemas são complexos, é muito
difícil imaginar que o futuro será uma mera repetição do presente, ainda mais
quando alguns atores importantes de certa forma tentam interferir de forma
drástica nesses sistemas complexos. Sempre me causou certa graça ao ver com a
eleição do Trump , e de outros populistas de "direita" como nas Filipinas,
Hungria, Brasil, que o mundo estava se transformando por completo.
Amigos,
o mundo sempre está em eterna transformação. Essa é a lição de Heráclito de Efésios há mais de 2000 mil anos quando ele disse que “o mesmo homem não se
banha no mesmo rio duas vezes”. Há para
mim certa ingenuidade em achar que a transformação é linear, e depois de ter
ocorrido certa transformação, ela pára de ocorrer, e o presente se congela em
direção ao futuro.
Imagine
se Bernie Sanders ganhar a próxima eleição. Para quem não conhece (eu ouvi uma
entrevista dele no Joe Rogan, e ele é um senhor bastante inteligente), ele é um
político com idéias como saúde universal, educação superior gratuita, etc, isso
tudo nos EUA. Por muitos ele é visto como um autêntico
comunista-socialista. Eu acredito que o
termo comunista não faz sentido em relação a ele, mas ele com certeza possui
pautas muito mais inclinadas "à esquerda" do que outros democratas, como o
próprio ex-presidente Obama.
Não
seria uma ironia? Se o mundo estava se transformando numa direção, como 4 anos
depois pode haver a vitória de um candidato que representa outro espectro de idéias? Trump pode
ganhar, perder, não se pode saber. Porém, o fato é que alguém como Trump pode
ocasionar a presidência de alguém como Sanders.
Logo,
o recado que vem da Argentina deveria ser para reconhecermos que o mundo é
muito mais complexo e nuançado do que memes parecem sugerir. O presente não é o
futuro, é bem provável que o futuro seja bem diferente do que os acontecimentos
do presente sugerem. Quando há interferências em sistemas complexos, e
Bolsonaro está fazendo várias dessas interferências (algumas até mesmo
patéticas), iatrogenias inesperadas podem ocorrer, uma delas o fortalecimento
de alguma ideia oposta até mesmo contra o que o Bolsonaro representa, e isso
não significa um retorno ao bom-senso, mas talvez a idéias ainda mais
extremadas.
Por
fim, encerro esse artigo com o conceito de Hormese. O stress saudável a um
organismo ou a um sistema, não pode ser um stress maior do que as capacidades
desse organismo ou sistema. Expor-se a temperatura de uma sauna por 15 minutos
é uma coisa, expor-se a 300 graus Celsius por meia hora é outra. E esse é o problema com grandes interferências
em sistemas complexos como invasões militares estrangeiras ou mudanças no
sistema político abruptas. Se vamos ver
esse tipo de coisa em nosso país (um estressor mais pesado do que nossas
instituições possam aguentar?), não sei, apenas vivendo um dia após o outro
para saber.
Um abraço!