segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

SÉRIE OTIMIZAÇÃO SAÚDE - ASSOCIAÇÃO X CAUSALIDADE EM ESTUDOS CIENTÍFICOS


                Olá, colegas. Como já dito algumas vezes, há cerca de um ano o meu interesse por otimizar a minha saúde aumentou sensivelmente.  Desde então dedico tempo e estudo a esse apaixonante tópico com aplicação direta em minha vida. A questão me fascina intelectualmente tanto que já pensei em fazer medicina, química, biologia, tudo para entender de forma mais técnica como os sistemas vivos funcionam de forma mais otimizada.

                Os dois artigos que mais gostei de escrever nesses cinco anos de blog foram um sobre a radiação cósmica de fundo e um sobre o metabolismo da glicose  Como as duas áreas, especialmente astrofísica, sou leigo, fiquei bem feliz que consegui produzir textos razoavelmente bem escritos e tecnicamente corretos. Sobre o metabolismo da glicose inclusive recebi alguns e-mails de médicos me elogiando a forma como o assunto foi exposto. Eu creio que há  valor em leigos numa área escreverem para outros leigos sobre um determinado assunto, pois é muito provável que o texto aborde questões que muitos profissionais talvez não se atentem e que são de extrema valia para alguém que pouco domina a área. É evidente  que o texto escrito precisa ser bem formulado e tecnicamente não possuir falhas gritantes.

                Falo tudo isso, pois sempre estou recebendo mensagens sobre o que penso de dietas, exercícios, etc.  Vejo cada vez mais pessoas também falando de dietas baixas em carboidratos, dietas cetogênicas, etc, o que não deixa de ser interessante. Porém, também é visível que muitos não fazem a mínima noção sobre o que falam, pois não compreendem os fundamentos básicos.  Os fundamentos de qualquer coisa são o alicerce para que se possa ter uma visão mais acurada sobre algum fenômeno no mundo. Infelizmente, hoje em dia é muito normal pessoas repetirem textos de outras pessoas, às vezes são textos até complexos, mas sem qualquer capacidade crítica para saber se o que falam faz sentido ou não.

                Sendo assim, se a minha rotina permitir e o meu ânimo assim quiser, gostaria de escrever mais sobre o tópico otimização de saúde.  Irei iniciar com o básico do básico de como “ler” evidência científica médica, um tópico que até mesmo alguns médicos mostram certa dificuldade. Aliás, isso pode ser extrapolado para diversas outras áreas, especialmente estudos que mostram estatísticas sociais e os usos equivocados que muitas pessoas fazem dos resultados de determinados estudos.


CORRELAÇÃO X CAUSALIDADE


                A principal confusão, e ela está presente em quase absolutamente qualquer discussão sobre nutrição, por exemplo, refere-se a confusão entre o que é uma correlação e o que pode vir a ser uma relação causal.  Não vou aqui entrar em argumentos mais abstratos sobre o que é causalidade, mas me ater ao senso comum que um efeito é precedido de uma ou mais causas. Se eu jogo um copo na parede essa é a causa dele ter quebrado.

                Já a associação, e aqui a conceituação não é tão clara para muitos, é quando dois fenômenos ocorrem em associação. Seria algo como, por exemplo: “Toda vez que o aumento de consumo de sorvetes aumenta na Califórnia cresce o número de ataques de turbarão” ou “pessoas que comem carne vermelha possuem uma chance aumentada de desenvolver câncer de cólon” (essa última repetida ad nauseiam por inúmeros profissionais de saúde).  No primeiro exemplo quando o fenômeno aumento do consumo de sorvetes ocorre o fenômeno aumento do número de ataques de tubarão também aumenta.  No segundo, quando o fenômeno aumento do consumo de carne vermelha aumenta o fenômeno aumento da incidência de câncer de cólon também aumenta. 

                Imagino que ninguém imagine que o aumento do consumo de sorvetes causa o aumento da chance de sofrer um ataque de tubarão. Quase todo mundo riria desse apontamento. Porém, muitos profissionais de saúde, citam explicitamente (e falo aqui de diretrizes oficiais de órgãos oficiais de medicina) como se fosse uma verdade científica que o consumo de carne vermelha cause o aumento da incidência do câncer de cólon. Aliás, talvez uma boa parte dos leitores por ler matérias nesse sentido ache que isso seja o que a evidência científica diz.

Será que não devemos tomar sorvete se quisermos diminuir a chance de ataque de tubarões?

                Colegas, os dois exemplos acima são rigorosamente os mesmos, são apenas duas associações, e elas não podem comprovar causalidade.  Uma associação de um aumento do consumo de sorvete com o aumento do ataque de tubarões não prova que há uma causalidade entre esses dois efeitos, da mesma maneira que o exemplo de consumo de carne vermelha associado ao aumento do número de casos de câncer de intestino não prova a causalidade (há exceções para quando uma correlação pode ter um efeito de causalidade que será abordado no fim desse artigo).

                Isso quer dizer que carne vermelha não causa um aumento do risco de câncer no intestino? Não, aliás, essa é uma hipótese que pode estar correta. O que não se pode dizer é com base numa mera associação entre o aumento do consumo de carne e o aumento da incidência de câncer de intestino que haja necessariamente uma relação de causa e efeito.

                E por que não? Pela simples provável existência de variáveis ocultas.  O que seria isso? Voltemos ao caso do aumento do consumo de sorvete e aumento do número de ataques de tubarões. Por que essa associação existe? Não precisaria mais de cinco minutos para imaginar que sorvetes são consumidos quando o clima está mais quente. Se as pessoas consomem mais sorvete é muito provável que a temperatura esteja mais alta. Quando a temperatura está mais alta, e sendo a Califórnia um lugar com praias, as pessoas têm mais propensão em nadar no mar. Quando as pessoas nadam mais no mar é mais provável que elas possam sofrer ataque de um tubarão, pois é difícil imaginar um tubarão atacando alguém na rua.

                Logo,  a maior probabilidade das pessoas tomarem banho de mar é a variável oculta que explica a associação entre o aumento da quantidade de sorvete consumida e o aumento do número de ataques de tubarão. Pode ter certeza se fizessem um experimento no inverno Californiano com pessoas tomando mais sorvete, a associação iria desaparecer. A palavra chave aqui é experimento.

                O exemplo do sorvete é “bobinho”, mas nos ajuda a aguçar o nosso cérebro que não evoluiu para ter pensamentos estatísticos tão refinados.  Se alguém quisesse testar a hipótese “aumento do consumo de sorvete causa aumento do  número de ataques de tubarão” um experimento deveria ser feito.  E como este experimento deveria ser feito? Um grupo grande de pessoas da Califórnia deveria ser escolhido. Dois grupos deveriam ser formados de forma aleatória. Num grupo, chamado controle, nada deveria ser feito. Num outro grupo, chamado de braço experimental, deveria ser fornecido sorvetes. Depois de algum prazo especificado (meses ou anos) deveria se analisar se as pessoas no grupo experimental tiveram, com grau de significância estatística, mais ataques de tubarões ou não.  Se a resposta for negativa, a hipótese “aumento do consumo de sorvete causa aumento do  número de ataques de tubarão na Califórnia” deveria ser considerada falsa. Isso é como a ciência deveria ser feita amigos.

A explicação


                Por qual motivo o grupo deve ser grande? Quanto maior o número de pessoas, menor a chance de haver alguma flutuação estatística aleatória. Por que as pessoas devem ser aleatoriamente dividas em grupos? Porque isso evita que um determinado grupo seja escolhido e apresente alguma variável oculta. Como assim? Imagine que as pessoas que tomam mais sorvete tenham por algum motivo uma tendência maior de nadar no mar (que seria a variável oculta). Se isso fosse o caso, se o estudo fosse feito apenas separando o grupo de pessoas que tomam mais sorvete das que tomam menos sorvete não seria possível dizer se o aumento do consumo de sorvete causa ou não aumento no número de ataque de tubarões. É por isso que a divisão entre os dois grupos deve ser aleatória, para que não haja o que os especialistas chamam viés de seleção.

                Voltemos agora ao exemplo da carne e aumento de câncer. Foi feito algum estudo experimental onde se forneceu mais carne a um determinado grupo de pessoas por alguns anos, e pouca ou nenhuma carne para outro grupo aleatoriamente designado,  e se mediu a diferença estatisticamente relevante, ou não, entre aumento ou diminuição na incidência do câncer de intestino? Não, colegas, não foi feito um estudo como esse. E como se pode dizer que carne vermelha causa câncer de cólon? De onde veio isso?

                Em nutrição, a esmagadora maioria dos estudos é feito por base tendo questionários alimentícios. Pergunta-se a um grupo de pessoas sobre os hábitos alimentares.  Depois de um determinado prazo, verifica-se o que aconteceu com as pessoas que comeram mais brócolis e menos ovo, ou mais ovo e mais alface, etc, etc. Esses questionários geralmente são confusos, extensos, e aplicados às vezes com um grande lapso temporal entre um e outro. É uma forma no mínimo capenga de se colher dados. Porém, mesmo que os questionários fossem excelentes, esse tipo de estudo só poderia apontar hipóteses e associações, jamais causalidade.

                E por que não? Pelo simples motivo que pode haver dezenas de variáveis ocultas. Como assim? Imagine que pessoas que comam mais carne vermelha num determinado estudo tiveram mais câncer do intestino do que vegetarianos nesse mesmo estudo, por exemplo. O máximo que se poderia dizer é que a hipótese de que carne vermelha pode ter um papel causal no aumento da incidência de câncer de intestino é uma hipótese que deveria ser considerada num experimento, num ensaio clinico randomizado.

                Será que os comedores de carne fazem alguma coisa diferente dos vegetarianos além de comer carne?  Sim, leitores, eles fazem.  Pessoas que comem mais carne tendem a fumar mais, se exercitar menos, irem menos ao médico, e se acidentar mais de carro. Sim, num estudo foi achada uma associação estatística entre pessoas que comiam mais carne vermelha e acidentes de carro. Ora, não parece ser crível que o consumo de carne vermelha cause uma maior chance de um acidente de carro, muito provavelmente o consumo de carne vermelha seja apenas um marcador de um comportamento menos regrado.

      Pensem, leitores, durante décadas a carne vermelha e a gordura foram tidas como vilões da saúde, ao contrário do consumo de vegetais. Ora, pessoas que mesmo com essa informação consumiam mais carne vermelha, muito provavelmente sejam pessoas que não se importam muito com sua saúde em inúmeros aspectos, um deles é dirigir de forma menos conservadora.  É possível também que o vegetariano além de não comer carne, também não fume, pratique esportes e vá com regularidade ao médico.  Ora, é evidente que há muito mais diferenças, a nível populacional, entre alguém que come carne e alguém que não come. O número de variáveis ocultas pode ser enorme. Sendo assim, será que é o consumo de carne que causa mais câncer de intestino ou a falta de exercício? Ou será o cigarro? Ou será alguma outra coisa?

                Apenas um experimento onde um número razoável de pessoas fossem divididas de maneira aleatória para dois grupos, um com consumo aumentado de carne vermelha e outro com consumo diminuído de carne, e depois de vários anos medir a diferença no número de casos de câncer para saber se a hipótese “o aumento do consumo de carne vermelha causa câncer de cólon” faz sentido ou não.  Por qual motivo? Porque associações não provam necessariamente causalidade, elas apenas levantam hipóteses a ser testadas em ensaios clínicos.

Será que adicionar carne processada como o Bacon causa o aumento do risco de câncer no intestino? Esse cartaz está dizendo sim, e ao fazer isso não está analisando corretamente a evidência científica. A palavra (increased - aumentou) induz causalidade, o que não é de nenhuma maneira correto. O que deveria ser dito é que o consumo de 50g por dia de carne processada está associado com um aumento de 18% nos casos de câncer de cólon (e 18% não são 18% como a maioria das pessoas pode presumir, é muito menos do que isso, como um artigo meu sobre risco absoluto x risco relativo irá abordar no futuro)

                Há uma exceção, porém. Quando o nível de associação é tão grande, que fica muito difícil que não haja uma relação de causalidade. O caso típico é o consumo de cigarro e o aumento dos casos de câncer de pulmão. Não foi feito nenhum estudo clínico com grupos aleatórios onde um grupo foi dado cigarros a o outro não. Nenhum experimento desse foi feito, pois obviamente seria antiético.  Porém, as associações entre consumo de cigarro e aumento dos casos de câncer eram enormes. O risco de alguém que fumava ter um câncer de pulmão era aumentando não em 20 ou 30%, mas em 2000% em alguns estudos. Ou seja, o aumento era tão grande que nesse caso é possível inferir causalidade entre duas variáveis associadas.  Se alguém quiser se aprofundar um pouco, recomendo a leitura do conceito de critérios de Hill em homenagem ao brilhante epidemiologista Bradford Hill.

         Há uma regra "não escrita" que associações com riscos "odds ratios" (razões de probabilidade) menor do que 2 (ou seja 100%) não possuem grande relevância e são indistinguíveis de chance, ou muito provavelmente há variáveis ocultas não mensuradas. Alguém sabe o que os estudos de associação mostravam sobre risco aumentado de consumo de carne vermelha e câncer de cólon? Aqui um quadro retirado de uma meta-análise de uma meta-análise (uma meta-análise é um estudo que reúne diversos outros estudos) do ano de 2015:

Table 1.

Meta-analyses for the association between red meat, processed meat and colorectal cancer risk.
Author, year publishedMeta-analysis center/countryNumber and type of studies for red meatRR for red meat (95% CI)*RR for processed meat (95% CI)*
Sandhu et al., 2001UK13 cohort1.17 (1.05-1.31)1.49 (1.22-1.81)
Norat et al., 2002IARC, France14 case-control and 9 cohort1.35 (1.21-1.51)1.31 (1.13-1.51)
Larsson and Wolk, 2006Karolinska Inst., Sweden15 (13 cohort and 2 case-control)1.28 (1.15-1.42)1.20 (1.11-1.31)
Huxley et al., 2009Australia and Iran26 cohort1.21 (1.13-1.29)1.19 (1.12-1.27)
Smolinska and Paluszkiewicz, 2009Poland22 (12 case-control and 10 cohort)1.21 (1.07-1.37)**NA
Bastide et al., 2011France5 cohort1.18 (1.06-1.32)**NA
Alexander et al., 2011 and 2015USA, Mexico27 cohort1.11 (1.03-1.19)NA
Chan et al., 2011UK and Netherlands24 (2 case-cohort, 3 nested case-control and 19 cohort)1.22 (1.11-1.34)1.17 (1.09-1.25)
Johnson et al., 2013USA14 (8 case-control and 6 cohort)1.13 (1.09-1.16)***1.09 (0.93-1.25)***
Bernstein et al., 2015USA, China, Vietnam2 cohort1.06 (0.97-1.16)****1.15 (1.01-1.32)****
RR, relative risk; CI, confidence interval; NA, not available.
*Highest versus lovest intake
**only for colon cancer, not for rectum
***5 versus 0 servings/week
****multivariable-adjusted hazard ratio.

       Para entender essa tabela, no lado esquerdo é o estudo, depois onde foi feito, e o número de estudos que a meta-análise analisou, e o aumento ou não do risco relativo de se desenvolver câncer de cólon. Pode-se ver que o risco foi aumentado entre 5% a 30%, o que dá um relative risk de 1.05 a 1.3. Em alguns estudos, o consumo de carne processada teve um risco menor do que o consumo de carne sem ser processada, o que não faz muito sentido. Ou seja, parece quase que evidente que há variáveis de confusão nesses estudos, tendo em vista o odds ratio desses estudos. Para fins de comparação olha a diferença entre a associação de consumo de cigarro e câncer de pulmão:



Ou seja, nesse estudo específico, o risco foi absurdamente aumentado pelo fato de se fumar, mais de 800%. Compare com os 5 a 30% do consumo de carne. 


     Pode ser difícil entender, pode ser minucioso. Porém, se a pessoa não entende isso ela está fadada a ficar repetindo o que outros dizem, mesmo que sejam autoridades de saúde, sem ter qualquer senso crítico para analisar a informação, e em última análise tomar decisões conscientes sobre a própria saúde. Se no campo de saúde é assim, eu não vou nem falar de estudos de associação que fazem em sociologia ou economia. Aprenda a analisar evidência científica médica, e garanto que a sua habilidade de compreender muitos outros estudos de várias áreas crescerá exponencialmente ao ponto de você ver baboseiras sendo faladas em todos os cantos sobre diversos assuntos.


 Por enquanto, para não ficar muito longo o artigo, é isso. Um abraço!
                
               
               

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

NÃO, VOCÊ NÃO VAI FICAR MILIONÁRIO COM LEILÕES DE IMÓVEIS. OS RISCOS EXISTEM E SÃO BEM REAIS


                Finalmente, aconteceu. Primeiramente, olá a todos os leitores. Como ia dizendo, finalmente aconteceu. O que exatamente Soul? Um problema jurídico em leilões. Recebi alguns e-mails recentemente perguntando o que eu achava sobre a empiricus estar recomendando leilões aos seus milhares e milhares de clientes.

                Bom, antes de mais nada, vamos a bomba:

"Pelos fundamentos aqui aduzidos, por vislumbrar os requisitos previstos no art. 

995, do CPC, defiro a antecipação dos efeitos da tutela recursal, suspendendo- 
se os efeitos da decisão agravada e determinando a suspensão da imissão de 
posse deferida. 

Comunique-se        ao   Juízo   de   Primeiro    Grau    o  conteúdo     desta   decisão, 
encaminhando-se-lhe cópia do seu inteiro teor para que possa tomar todas as 
medidas necessárias junto às instituições já oficiadas (art. 1.019, I, CPC). "


               
      Esse é o trecho de uma decisão em Agravo de Instrumento proferida por um desembargador. Eu tinha conseguido a imissão na posse em primeiro grau, ou seja, uma decisão judicial determinando que a posse do imóvel me fosse garantida. O ocupante recorreu e foi dado efeito suspensivo, ou seja, por um prazo indeterminado "sem posse do imóvel prezado Soul".

                Depois de dezenas e dezenas de leilões essa foi a primeira vez. O pior que foi numa operação que nem deveria ter iniciado, pois muito longe de onde moro, e principalmente numa jurisdição que não conheço tão bem. O pior aconteceu. Eu já gastei nessa operação algo em torno de 400k. Só de condomínios em atraso, já paguei 10k. Como a posse está suspensa indefinidamente, o ocupante vai continuar não pagando os condomínios. Se não pagar os condomínios, o imóvel pode ser penhorado agora num processo judicial, e a perda pode ser enorme.

                O engraçado é que esse caso nem possuía muitas vulnerabilidades, mas o efeito suspensivo foi dado sem que o desembargador me intimasse para prestar informações, e aí veio essa decisão. Estou preocupado? Não, nem um pouco. Sabe por qual motivo? Pois essa operação é ínfima perto do meu patrimônio, não faz nem cócegas. Eu também estou atuando em três frentes para resolver esse problema.

                A primeira delas é uma enxurrada de pedidos e recursos. Demorei três dias para fazer, mas elaborei defesa e um recurso de 37 folhas cada. Não são 37 folhas de “enrolação jurídica” , o que é muito normal em petições jurídicas. Na real, eu queria ter feito em menos páginas, mas não consegui condensar. Eu encontrei sete argumentos técnicos contrários a decisão, e modéstia a parte a defesa ficou muito boa, algo que eu não vejo em demandas desse tipo. Posso dizer com tranqüilidade, pois eu analiso centenas de processos judiciais relativos a essa matéria. Eu cobraria razoavelmente bem para fazer isso para defender interesse de terceiros.

                Por qual motivo falo isso? Para me vangloriar? Não, longe disso. Leilões é algo que sei muito, pois dediquei tempo a isso e muito estudo.  Se me perguntar de direito tributário, por exemplo, saberei o básico do básico.  Pode ter certeza que alguém nessa mesma situação minha com outro advogado teria uma defesa muito pior, e em alguns casos extremamente pior. E por que isso é relevante?

                Porque surpresas acontecem em leilões, especialmente porque se precisa do Judiciário e no Brasil o Judiciário pode ser literalmente uma "caixa de surpresas".  Mesmo eu tendo o conhecimento que tenho, estou sujeito a problemas e incômodos.  Dei sorte de isso ocorrer na trigésima quarta, trigésima quinta operação, e eu estar quase parando de participar em leilões. Porém, se isso ocorre comigo, imagine com pessoas totalmente leigas e que 400k, 250k, pode ser uma parcela considerável do patrimônio?

                Portanto, evidentemente anunciar que leigos vão ficar ricos com leilões, e vão aprender os segredos num curso de algumas horas é uma grande baboseira, e extremamente perigoso. Sabe o que é? Nada mais nada menos do que a famosa curva Dunning-Kruger


                Não vou explicar em detalhes o que significa, mas é basicamente o seguinte: uma pessoa que não conhece nada sobre uma área possui pouca ou nenhuma confiança. Quando ela aprende um pouco, mesmo sem ter muito conhecimento, a sua confiança dispara a tal ponto que pode ser mais confiante até mesmo do que um verdadeiro expert na área que possui muito mais conhecimento.

                O efeito Dunning-Kruger é bastante conhecido e documentado, e é exatamente o que eu vejo quando o assunto é leilões de imóveis. A pessoa lê um pouco sobre leilões, ou até mesmo compra um ou outro imóvel sem problemas, e a confiança dispara, sendo que a pessoa não faz a mínima ideia das inúmeras minúcias que existem.

                Leilões não é física quântica. A pessoa leiga pode aos poucos ganhando conhecimento e experiência e depois de certo tempo ter um conhecimento ao menos razoável sobre o tema. Isso não vai acontecer da noite para o dia, e muito menos num curso que promete que as pessoas podem ficar ricas, mas é plenamente possível se a pessoa quiser devotar algum tempo.

                O meu primeiro capítulo do meu livro sobre leilões, projeto que está parado, tinha o título “Não, você não vai ficar milionário com leilões”.  Desconfie de atalhos, caminhos fáceis e rápidos para retornos assombrosos. Desconfie em dobro se esse caminho e atalho estão sendo oferecido para milhares de pessoas ao mesmo tempo.

                Eu no meu atual estágio posso me dar ao luxo de investir em startups, ter dinheiro no exterior, estar de 10 a 15 operações de leilões simultaneamente, e ainda possuir parcela significativa em ativos líquidos de baixo risco. Logo, uma eventual operação dando problemas, não atrapalha o meu sono, não afeta o meu humor, e não atrapalha o meu patrimônio como um todo. Não é o caso da esmagadora maioria das pessoas.  Não quero desanimar ninguém, e nem dar a entender que não se pode ter bons retornos com imóveis adquiridos em leilão, é claro que é possível, eu diversas vezes tive retornos acima de 100% em questão de 12 meses. Imagine ter uma casa, e alguns meses depois ter o equivalente a duas casas. Mas isso não vem sem risco, sem esforço, sem capital acumulado, são anos e anos estudando e atuando nesse segmento.

         Se for adquirir imóveis em leilão, não deixe se pegar pelo efeito Dunning-Kruger, e principalmente não ache que vai ficar milionário da noite para o dia, ou em pouco tempo. E não coloque uma parcela considerável do seu patrimônio em apenas uma operação, se algo acontecer, é muito provável que seja uma fonte muito grande de preocupações e stress, ainda mais se for um judiciário local mais demorado. 

                É isso, colegas. Um abraço!
               

domingo, 27 de janeiro de 2019

REVOLTA E IRRITAÇÃO - COMO DEIXAR VOCÊ "PUTO DA CARA" É UMA ESTRATÉGIA EFICAZ DAS MÍDIAS SOCIAIS



                Olá, colegas. Vocês conhecem um sujeito chamado Tristan Harris? Aposto que a maioria não faz a mínima ideia de quem seja.  Normal, eu também não fazia ideia de quem fosse até uns meses atrás. Bom, isso não é tecnicamente verdade, pois há alguns anos tinha lido um texto muito bom de como as mídias sociais são projetadas deliberadamente para atingir as vulnerabilidades das pessoas. O texto tinha sido escrito por um ex-mágico que trabalhava no setor de ética da Google, e apesar do texto vir a minha mente algumas vezes, eu nunca lembrava o nome do autor.

                Tristan Harris é um especialista de como as mídias sociais são construídas para cativar a nossa atenção, e como deveríamos fazer mais reflexões éticas sobre os caminhos que essas tecnologias estão tomando.  Nada melhor que ir à fonte e ler o artigo  orginal (infelizmente está em inglês para os que não dominam o idioma de Shakeaspere):how-technology-hijacks-peoples-minds-from-a-magician-and-google-s-design. É um artigo relativamente curto, e de certa forma assustador.


Se você gostar de ouvir podcasts e entender Inglês mais fluentemente, sugiro o excelente podcast que o Sam Harris entrevistou o Tristan Harris

                Se quiser uma versão mais condensada, sugiro essa palestra na TED


                Não vou comentar, ou tentar, sobre as diversas implicações do que esse incrível pensador traz para a sociedade, mas vou me concentrar apenas numa que acho essencial.  Hoje há uma batalha por sua atenção, prezado leitor.  Mídias sociais precisam manter cada vez mais as pessoas “engajadas” em suas plataformas, ou seja, quanto mais tempo os indivíduos ficam no Facebook, whatsapp, twiter, etc, etc, melhor para essas empresas. Essa busca desenfreada pela atenção das pessoas, cumulada com cada vez mais algoritmos de inteligência artificial, está conduzindo a uma “corrida armamentista ladeira abaixo”. Cada vez mais, táticas e técnicas, independente do seu conteúdo ético e no impacto do bem-estar das pessoas, estão sendo utilizadas para sequestrar a atenção das pessoas.

                O exemplo mais eficaz, e ao mesmo tempo grotesco, é a utilização cada vez maior da revolta ou repúdio na geração de notícias, feed, vídeos, etc.  Nós, e eu me incluo fortemente nisso, somos atraídos como formigas para um açucareiro quando nosso cérebro é estimulado com algum acontecimento que causa revolta.  Quer ver os compartilhamentos aumentarem e o tempo despendido com as mídias sociais aumentar basta mostrar a alguém que voltou no Bolsonaro algum acontecimento sobre “Lula Livre” ou basta fazer o contrário, mostrar a um admirador do Lula alguma frase do Bolsonaro sobre homossexuais.  Pronto, a isca será devidamente abocanhada.  

        No Youtube, por exemplo, dificilmente você verá destaque de um vídeo como o título “dois pensadores discutem amigavelmente sobre suas divergências”, mas é quase certo que algum vídeo como “Olavo de Carvalho destrói repórter comunista” ou “ Repórter humilha Olavo de Carvalho” terão um destaque maior, e os próprios criadores de conteúdo já perceberam isso há muito tempo. E é muito provável se estes dois hipotéticos vídeos estiverem na sua barra direita como sugestões de vídeo, eles estão lá graças a um algoritmo de inteligência artificial que sabe que pode explorar essa vulnerabilidade humana.     
       
                Basta olhar os vídeos do youtube, feed de notícias ou acontecimentos, etc, que esse padrão fica tão claro e cristalino que você se pergunta como ninguém, ou quase ninguém, está percebendo tal fato.  E num mundo onde todos podem dar opinião sobre tudo quase que instantaneamente sempre haverá alguém em algum canto dizendo algo que seja repulsivo ou revoltante para você em relação a alguma coisa, ou seja, se você deixar se levar sempre haverá algum "acontecimento" para instilar esse sentimento durante vinte quatro horas sete dias por semana.  

       Sabe aquele desejo de comentar num texto que você não concorda com absolutamente nada? Essa é a sensação constante, mas feito de uma maneira muito mais vulgar, crua e agressiva. É possível haver uma genuína troca de idéias entre pessoas com idéias absolutamente antagônicas, mas é quase impossível que isso se dê dentro de plataformas que possuem limitação de espaço, e onde o fluxo constante de novos dados de informação é a regra.

                Isso é horrível, pois deixa as pessoas sempre com sentimentos ruins, bravas, e aos poucos vai minando a própria possibilidade de uma convivência mais pacífica e harmoniosa dentro de uma sociedade que naturalmente é multifacetada e diversa (ainda mais uma como a brasileira).

                Ficar brabo todo o tempo e irritado por que alguém disse algo absurdo para a sua visão de mundo é um caminho certo para uma vida desequilibrada. É evidente que há casos mais patológicos, mas para mim fica claro que as mídias sociais, do jeito que elas são configuradas atualmente, são quase sempre tóxicas, e o motivo delineado nesse texto não é o único, mas talvez seja um dos mais fortes.      

                A solução? Leia esse bom livro que você irá descobrir:

Um curto e bom livro com argumentos bem interessantes de alguém que viveu e vive por dentro do círculo de tecnologia do vale do silício.

      Um abraço!


segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

A BUSCA DESENFREADA POR "SUCESSO" E A TRISTEZA QUE ISSO OCASIONA EM MUITOS


                “Faça sucesso!” “Agregue mais valor a você mesmo, ´pense fora da caixa´!” “Destaque-se da multidão, seja diferente”. “Seja o melhor.” “Seja mais, mais e mais!”. Essa talvez seja a mensagem número um, ou talvez número dois perdendo apenas para o “consuma cada vez mais seja lá o que for”, que recebemos de livros, pessoas “iluminadas”, pessoas de “sucesso”, do sistema como um todo, é o mantra que todos repetem. Basta olhar pelos variados blogs e artigos, e essa é a mensagem difundida ad nauseam.

                Há alguns dias escrevi sobre o incrível experimento dos nove pontos, e a dificuldade que os seres humanos possuem, ao menos a imensa maioria, de pensar em soluções que estejam fora dos limites que achamos naturais . Ou seja, é difícil mesmo “pensar fora da caixa”, e esse simples experimento feito a primeira vez há mais de cinqüenta anos deu insights valiosos para entender como funciona a mente humana na resolução de problemas.

                Então, fui surpreendido pela mensagem de um blogueiro sobre o supracitado texto que dizia o seguinte:



                Por qual motivo fui surpreendido? Porque há muitos anos reflito exatamente sobre isso.  Essa ânsia generalizada por ser o melhor, especial, diferente, cria, ou está criando, um estado permanente de insatisfação generalizada nas pessoas. Essa insatisfação se manifesta das mais variadas formas como: irritação, ansiedade, casos de depressão, incapacidade de se saborear e viver no momento presente, neuroses das mais variadas espécies, e uma tristeza imensa resultando numa grande perda de bem-estar geral.     

                E por qual motivo isso pode estar ocorrendo? Se eu falasse que sei, estaria mentindo, pois o assunto é por demais complexo e com inúmeras variáveis, mas posso fazer algumas conjecturas.  Quando alguém diz que você precisa obter sucesso, a primeira pergunta, e de certo ponto óbvia, é indagar o que é sucesso. É mais dinheiro? São mais relações sexuais com mulheres (ou homens)? É mais poder sobre outros seres humanos? É ajudar os outros? É ser um melhor pai ou mãe?

                Todas as indicações do parágrafo anterior são respostas possíveis para o que seja uma vida de sucesso. Chegado num consenso do que seja sucesso, será que isso varia de indivíduo para indivíduo? De cultura para cultura? De tempo histórico para tempo histórico? No mesmo indivíduo à medida que ele vai envelhecendo?

                E como eu sei que a definição de sucesso que adotei para mim mesmo reflete exatamente aquilo que sou e penso? Será que é possível que o que penso ser sucesso não seja apenas reflexo de propaganda ou agendas ocultas construídas por outros? Se é fruto do meu pensamento, até que ponto o meu pensamento é livre e não preso em circunstâncias culturais, histórias, ideológicas, temporais? Aliás, até que ponto há qualquer tipo de pensamento livre conhecido como livre-arbítrio?

                Olhe quantas indagações surgem apenas ao  refletir sobre o mantra “seja uma pessoa de sucesso”.  E se você conseguir responder a si mesmo todas as perguntas, podem surgir outras mais profundas, e por qual motivo necessita-se sucesso? O sucesso vai me fazer uma pessoa mais feliz? E a felicidade é o que se deve perseguir na vida ou há outros valores maiores? E se o sucesso me encaminha para uma vida mais feliz, isso possui alguma importância perante a minha mortalidade?

                É claro que é difícil responder essas perguntas. Talvez uma vida inteira não seja suficiente, talvez não haja nem mesmo respostas para algumas delas. Porém, por mais difícil que seja a tarefa (e nem é tão árduo assim refletir sobre isso), é possível sim fazer avanços sobre esses temas.  Em minha opinião, somente as pessoas que realmente refletem sobre a miríade de indagações que surgem da primeira pergunta “o que é sucesso?” podem realmente de forma consciente perseguir o “sucesso”.

                Caso contrário, a busca pelo sucesso pode levar, e na maioria dos casos é exatamente isso que ocorre, leva à frustrações que desembocam nos potenciais problemas descritos no começo desse texto.  Perceba, então, meu amigo blogueiro “Soldado do Milhão” que é natural estar perdido no meio de tudo isso, ainda mais num mundo com cada vez mais informação, rápido, com um consumo reluzente e uma caracterização quase única do que seja sucesso.  Se “sucesso” for caracterizado única e exclusivamente como ser extremamente vitorioso na vida profissional, e isso significando ganhos financeiros e patrimoniais imensos, é evidente que poucas pessoas poderão ter sucesso na vida, por uma questão de pura lógica. Numa classe de 50 alunos, só um pode ser o melhor. Numa profissão qualquer apenas vinte podem estar na lista dos vinte melhores e mais bem pagos. Isso é o caminho certo para a infelicidade e insatisfação da maior parte das pessoas numa sociedade humana.

                Mas talvez sucesso seja muito mais do que isso, ou talvez seja completamente diferente disso, ou talvez para a sua única posição no universo seja completamente diferente da minha, por exemplo. Eu realmente acredito que como nós evoluímos biologicamente, e como somos parte da mesma espécie, nós guardamos mais similitudes do que diferenças naquilo que nos traz bem-estar, mas é plenamente possível que existam zonas de profunda dessemelhança entre os mais variados seres humanos.

                E como alguém vai saber disso? Apenas refletindo sobre quem se é, o que se quer da vida, o que é a vida, o que traz bem-estar, e as mais variadas questões que podem surgir quando mergulhamos profundamente nesses questionamentos. Espero que com essa pequena reflexão fique claro o poder da frase atribuída a Sócrates e a inscrição presente no Templo de Delfos:


"Conhece-te a ti mesmo"


                Uma vida refletida nos leva a um conhecimento maior de quem realmente nós somos. Conhecendo quem somos podemos fazer escolhas mais conscientes sobre o que queremos e o que somos. Se assim o fizemos, talvez uma vida de sucesso seja uma vida simples, talvez não. Mas com certeza será uma vida muito mais condizente com aquilo que almejamos ser.

                Um abraço a todos!
               

sábado, 12 de janeiro de 2019

AS NARRATIVAS CONSTRUÍDAS NO FLUXO DE INFORMAÇÃO: O QUE DONETSK, IÊMEN E BREXIT TEM EM COMUM?

                Como abordar esse tema de maneira um pouco mais lúdica? Pensei em contar uma história pessoal e nisso fazer uma transição para uma reflexão sobre o tema. Não há dúvida de que uma pessoa vivendo numa cidade, em qualquer lugar do mundo, possui muito mais acesso à informação do que há 10 anos. Se eu pensar quando os meus pais eram crianças, na década de 40, a quantidade de informação disponível então hoje é vários graus de magnitude maior. Estamos lidando bem com tudo isso?

                Ulan-Ude é a primeira cidade maior para quem está vindo da Mongólia em direção à Rússia. Ulan-Ude é a capital da República da Buriácia. Para quem não sabe, a Rússia possui dezenas de Repúblicas com graus variados de autonomia, e com presença de diversas etnias. A Rússia é realmente um caleidoscópio de etnias, a visão de loiros de olhos azuis não é necessariamente verdadeira para toda Rússia. Foi nosso primeiro ponto de parada no país, um dos lugares mais inexplorados, ao menos para estrangeiros, e bonitos da terra.

                A característica mais marcante dessa cidade, ao menos para mim, foi ver uma grande presença de russos oriundos de uma etnia mongol.  São chamados Buriates-Mongóis (sim, o nome Buriácia vem daí), são cidadãos russos, mas com uma etnia mongol. Na cidade Ulan-Ude, era extremamente normal ver rodas de adolescentes russos, metade bem loiros, e outra metade com traços mongóis. Vi vários casais também de etnias diferentes. Foi uma grande surpresa, mas também algo muito legal de se ver. A primeira impressão foi de como a Rússia é “mal e porcamente” conhecida pela vasta maioria dos ocidentais, inclusive, talvez principalmente, por aqueles que acreditam ser bem informados. A outra foi como duas etnias complemente distintas (a eslava e a mongol) conviviam em grande harmonia, ao menos para um observador casual como era o meu caso.

A grande cabeça de Lênin no centro da cidade de Ulan-Ude

                Foi em Ulan-Ude que vim ver as primeiras estátuas em homenagem a Lênin,  stalin e outras figuras do passado comunista russo não há nenhuma homenagem ou referência. Creio que utilizam a figura de Lênin com um elo para o passado de um regime que durou mais de 70 anos, pois seja a história triste ou opressiva, ela mesmo assim ainda é a história russa do século vinte. Pude também sentir a atmosfera de uma cidade russa que não seja as famosas e badaladas Moscou e São Perterburgo. 

       Aliás, as cidades russas são incríveis, a completa ausência de estrangeiros, o jeito “rude-mas acolhedor” de muitos russos, a admiração deles quando sabiam que éramos brasileiros (ao menos antes da reputação dos brasileiros ser um pouco arranhada com alguns casos lamentáveis durante a copa), fez que nosso um mês na Rússia fosse fantástico. Foi um mês, mas a Rússia merece ao menos uns quatro meses de viagem. A Rússia, e com certeza a Mongólia, é um dos lugares que pretendo levar a minha filha quando ela for um pouco maior.

                Foi também Ulan-Ude que comecei o meu “tour” de jogar xadrez pelas ruas e cafés das cidades russas apostando dinheiro. Russos não jogam, ao menos eu não observei em nenhum lugar, xadrez ao ar livre sem apostar algum dinheiro.  Nessa primeira vez, foi muito engraçado, pois eles viram um brasileiro jovem, talvez nunca tinham conversado com um brasileiro antes, pedir para jogar. Eles ficaram reticentes e num completo “broken english” falaram que era a dinheiro. Depois da minha quarta vitória seguida, os tiozinhos já estavam sorrindo para mim, como se eu fosse da turma, um deles até falando “mequinho” (mequinho foi o maior jogador de xadrez brasileiro da história), e numa mistura de russo, inglês, mímica, nós íamos conversando. Foi uma experiência incrível.



Soulsurfer jogando xadrez pela primeira vez na Rússia. Cada partida valia o equivalente a um dólar, e nessa parte da Rússia podia se comer muito bem com quatro dólares (a quantia que fiz).

                
Infelizmente, o vídeo mais engraçado dessa experiência, não consegui dar Upload por ser maior de 100 megas. O interessante, porém, é a tradição de apertar as mãos quando se inicia uma partida (e em campeonatos quando se termina). Por esse motivo resolvi colocar esse vídeo, pois é uma tradição incrível do xadrez. Uma vez num campeonato mundial, na minha melhor competição, em 1996 estava com uma partida ganha. Se eu ganhasse, faltariam apenas 3 rodadas (8 já teriam ido), e eu estaria entre os 10 melhores do mundo. Vai que eu me inspirasse e ganhasse duas e empatasse uma nas últimas três rodadas, poderia terminar entre os três melhores do mundo. Porém, fiz um lance ruim, a posição se igualou, e eu acabei perdendo. No final, eu não cumprimentei o meu adversário (creio que era um Suíço) e me neguei a analisar a partida (uma prática comum em torneios internacionais). O meu pai estava na parte reservada aos observadores, e viu a cena. Ele disse que ficou envergonhado, não por eu ter perdido, mas por eu não ter cumprimentado e negado em analisar a partida. Eu tinha 16 anos, e era mais do que compreensível a minha atitude, mas é aí que entra a moral e caráter dos pais. Até hoje lembro dessa cena, e como o meu pai estava certo ao chamar minha atenção. O cumprimento é o ato de se dignar e respeitar o seu adversário, independentemente se você perdeu ou ganhou. O xadrez me ensinou um pouco disso. Como o mundo não seria melhor se as pessoas, metaforicamente ou não, simplesmente apertassem as mãos dos seus adversários?

            Todo esse perspectiva pessoal sobre Ulan-Ude para dizer que uma noite entramos num restaurante e descobrimos que eles tinham pizza. “Uau, comer uma pizza depois de tantos meses” pensamos com as nossas papilas gustativas já salivando. Lá a pizza era vendida por quilo, e pedimos um quilo de pizza. O atendente num inglês quebrado foi extremamente agradável, e quando falamos que éramos brasileiros, sua simpatia aumentou ainda mais, ele trouxe até um balão de presente. Perguntei de onde ele era, ele respondeu Ucrânia. Perguntei de qual parte da Ucrânia, ele falou Donetsk. “Está um pouco difícil lá nesse momento, não?”, ele aquiesceu e respondeu “é por isso que estou aqui”. Conversamos um pouco sobre a Ucrânia, no limite do possível pela barreira linguística (eu adoro esse tipo de conversa) e sobre a vida dele.

Essa é a pizza
Esse é o balão (e o bar-pizzaria era muito interessante, pois eram inúmeras Tevês passando clipes de russas lindas de biquini em poses sensuais, esse traço da cultura russa, completamente machista, veríamos em muitos e muitos lugares)
E esse é o Ucraniano

                Para quem não sabe, depois da anexação da Criméia por parte da Federação Russa, uma série de conflitos armados se espalharam pelo leste da Ucrânia (onde Donetsk está localidada) entre forças pró-russas e forças ucranianas. A região da Criméia era predominantemente formada por russos, já o leste da Ucrânia como um todo possui muitos russos (ou descendentes de), mas a maioria é formada por  Ucranianos.

                 E o que isso tudo tem a ver com o tema do artigo de hoje? Quando da anexação da Criméia, houve um grande alarido de uma possível guerra de maior escala entre a Rússia e a Otan. Lembro inclusive de textos de “analistas” sobre o potencial grave impacto de um possível conflito na precificação de ativos. Muitas notícias em diversos canais de comunicação. Com o fluxo de informação, muita atenção de pessoas comuns foi orientada para aquela parte do mundo. Passados alguns meses da consumação da anexação, a Ucrânia saiu dos noticiários, e talvez seja esse um dos motivos da esmagadora maioria das pessoas que se considera bem informada não saber que diversas regiões do leste da Ucrânia estão em situação de “quase guerra”. Se havia potencial de um conflito entre a Rússia e a demais potências ocidentais quando da anexação da Criméia, pode ter certeza que o potencial ainda está lá no atoleiro chamado "leste da ucrânia".

                Lembro também quando estava no Irã, eu de vez em quando assistia à televisão local. Sempre nos comerciais havia cenas fortes do conflito do Iêmen e o papel nefasto que algumas potências ocidentais estavam exercendo nesse conflito. A narração era em farsi, mas havia algumas legendas em Inglês, e por isso eu conseguia entender alguma coisa. Isso foi em 2016. 

           A guerra do Iêmen só foi ter alguma pouquíssima atenção no ocidente (e no Brasil nenhuma atenção), quando houve o assassinato de um jornalista saudita crítico do regime ditatorial da Arábia Saudita num consulado árabe na Turquia num ato horrendo. O presidente dos EUA, numa atitude completamente contrária a tradição americana, colocou panos quentes, o que o Senado Americano, de maioria republicana, não aceitou e por unanimidade condenou a Arábia Saudita (realmente, o estrago de Trump nas instituições americanas não será pequeno). 

          Só daí, no final de 2018, começou-se a levantar os vínculos americanos com a guerra saudita empreendida no Iêmen .   Isso já era notícia principal no Irã em 2016, e muito provavelmente antes disso. O conflito no Iêmen, um dos mais catastróficos em termos humanitários (se não for o maior atualmente) é algo invisível para quase todos os ocidentais (e nem me refiro aos Brasileiros), mas no Irã era notícia central há alguns anos. Como poder ser algo tão central para certas redes de notícia, e inexistente para outros? Com certeza, apenas a proximidade geográfica e o envolvimento do Irã no conflito não respondem essa questão na sua integralidade.

                Brexit. Uns comemoraram.  Viram o surgimento de algo novo, era o “povo” dizendo não à burocracia européia. Os mais chegados em teorias conspiratórias viam o Brexit, junto com a eleição do Trump, como um sinal da derrocada do “globalismo” e o surgimento de algo novo. Analistas surfando no óbvio hoje dizem “está vendo, olha como a mídia tradicional, e os analistas puderam ser cegos”.  Outros, por seu turno, dizem que foi um grande erro cometido pelo Reino Unido. Acerto ou erro, o fato é que na época muita atenção foi dada ao Brexit, e de novo várias análises, inclusive de blogueiros amadores, sobre os efeitos do Brexit , as implicações políticas e sociológicas.

                O Brexit, porém, ao menos no Brasil saiu de moda. Acontece que está uma confusão danada no processo de saída, e ninguém sabe ao certo o que realmente vai acontecer. Os acontecimentos de hoje são tão ou mais importantes do que quando o Brexit foi decidido, mas parece não ter muita atenção da mídia.

                O que Donetsk e a guerra civil em standy by no leste da Ucrânia, Iêmen e Brexit possuem em comum, se é que há algo que os une? Por qual motivo eu estou falando disso? Há pessoas com o dom da concisão, não é o meu caso. Os maiores mestres da concisão geralmente são poetas, por isso quando você escutar de alguém que poesia não tem serventia ou sentido, apenas ignore, pois quem diz tal estultice não sabe do que está falando. Como me falta a genialidade da concisão, eu muitas vezes construo inúmeros textos para mostrar como penso sobre determinada faceta da realidade.

                Quando escrevi “estórias” sobre o absurdo de pessoas se importarem mais com a “reforma da previdência” do que aspectos práticos do seu dia a dia, tive muitos comentários do tipo “o seu texto foi prolixo, é evidente que não é o mais importante, mas discutir a reforma da previdência é imprescindível, etc, etc”. Teve até um comentário no sentido “e se o sujeito achar que a reforma da previdência é mais importante do que seu relacionamento conjugal, o que você tem a ver com isso? Hein!”. Ai, ai.  

         Primeiramente, no próprio texto estava explícito (e eu ainda deixei isso explícito no texto) de que a reforma da previdência era apenas uma metáfora para como as pessoas hoje em dia se deixam levar por assuntos que às vezes não compreendem adequadamente em detrimento de assuntos muito mais relevantes para o seu dia a dia.  Quase todos que escreveram comentários nessa linha, não se deram conta nem ao menos disso. Substitua “reforma da previdência”, por “Iêmen, Donekst ou Brexit” e o efeito é rigorosamente o mesmo. Em segundo lugar, amigo, você pode fazer o que quiser da vida, inclusive negligenciar o seu relacionamento, aliás, isso é o que boa parte das pessoas faz, nenhuma novidade aqui.

                O que une Iêmen, Donekst e Brexit, ou a reforma da previdência, é que a forma como esses temas são apresentados a nós são construções de uma narrativa que nem mesmo sabemos a origem ou quem está por trás.  Numa hora um assunto é importante, na outra não. Um assunto é negligenciado numa parte do mundo, na outra não. As narrativas construídas estão completamente fora do nosso alcance, e como nossa capacidade mental tem limite para absorver informações, e como ninguém quer ou pode gastar tempo realmente pesquisando a fundo os diversos assuntos, coloque na cabeça, prezado leitor, que o fluxo constante de informações que chega a você são narrativas criadas por terceiros que podem ou não guardar mais ou menos similitude com a realidade, ou mais ou menos relevância para humanidade, ou em última instância mais ou menos relevância para você.

                O relacionamento de você, leitor, com sua mulher , filhos, amigos, vizinhos, e mais importante consigo mesmo, por outro lado, é real, é seu, é algo que diz respeito direta e incisivamente a você, e tem um grande impacto no seu bem-estar. “Ah, Soul, mas quem não sabe disso?”, algumas mensagens foram escritas quando esse tema foi abordado. Resposta: muitas pessoas, basta fazer um experimento próprio e observar ao seu redor. 

        Minha filha nasceu, por exemplo, e meu padrinho não foi capaz de me mandar uma mensagem sobre esse fato tão importante. Porém, ele é capaz de me mandar mensagens sobre política por mídias sociais.  Isso é sinal de adoecimento das relações. Não me entendam mal, eu adoro o meu padrinho e sinto muito carinho por ele, e nem mesmo fiquei chateado, pois realmente compreendo como as pessoas estão fazendo escolhas tolas nesse aspecto, mas é evidente que muitos indivíduos estão literalmente dando mais importância a informações sem qualquer relevância direta com suas vidas em detrimento de relacionamentos pessoais mais íntimos. Isso é apenas um exemplo, tenho diversos outros, e com certeza isso é apenas uma gota e cada leitor se fizer um esforço talvez tenha um ou mais exemplos, ou talvez seja o próprio exemplo.

                Portanto, talvez as idéias desse blog fizessem mais sentido se expostas num livro de forma mais harmônica, ou num podcast de uma duração mais longa, mas a vida completamente desbalanceada em que muitas pessoas vivem pode ser abordada de diversos aspectos, de diversas formas e com a construção de diversos artigos. “Mas, eu não concordo”. Ótimo, é um direito seu leitor, e fico feliz que assim o seja. “Eu acho o artigo prolixo e sem fundamento”. Tudo ótimo também, ninguém é obrigado a ler o que eu escrevo ou, melhor dizendo, é possível gostar de textos meus, e não gostar de outros, e isso é muito salutar. Ou ainda  “           Brexit, reforma da previdência, Irã, Ucrânia? Isso não tem qualquer relação, vou lá ver o meu vídeo ou o meu artigo sobre o problema X pela enésima vez”, ótimo também.

                Porém, em que pese o parágrafo anterior, podem ter leitores (três, quatro, dez) que realmente possam parar e refletir com seriedade sobre as próprias condutas. O grande filósofo Sócrates disse, ou ao menos se atribui a ideia a ele, que “ a vida não examinada não merece ser vivida”.  Quer o leitor concorde ou não,  “Iêmen, Donekst ou Brexit” mostram que o fluxo de informação  chega até nós com uma narrativa embutida, seja de maneira consciente ou não, tanto que é muito difícil diferenciar o que é real, o que é importante, do que é apenas uma visão parcial e distorcida. Se o Brexit era importante em 2016, ele ainda o é mais importante no começo de 2019, por mais que as notícias não demonstrem isso.

                Portanto, sobre esse ponto de vista, ainda mais agravado pelo “click bait” (que se dá de diversas formas), pela falta de profundidade de análises, pela pura repetição acrítica de idéias, ou pelo abuso do sensacionalismo de “notícias” que não mereceriam qualquer relevância, quase todo o noticiário é de certa forma tóxico. Além der ser informações com uma narrativa construída, sem qualquer participação sua leitor, quase nunca esse fluxo de informação faz com que os consumidores dele se sintam melhores,  empoderados, felizes e realizados com suas próprias vidas.  

                Suas relações mais próximas, sua saúde, física e principalmente mental, por outro, são reais e imprescindíveis para uma boa vida. Uma vida refletida necessariamente passa por um processo profundo, e muitas vezes demorado, de questionamento de muitos hábitos de nossa vida cotidiana.

                Como disse o baterista do Iron Maiden (Nicko Macbrain) uma vez “se você gosta do Iron Maiden, eu te amo. Se você não gosta do Iron Maiden (pausa dramática), eu te amo também”, termino esse artigo dizendo “se você gostou, ou melhor, ainda, se esse artigo ou outros textos desse espaço te ajudaram, fico feliz e desejo o melhor para você. Se você não gostou desse artigo, ou de outros, ou pior ainda, se não gosta do escritor por algum motivo especial, (pausa dramática) fico feliz também e desejo o melhor para você”.


Mas pode se comer com 3-4 dólares? Ah pode sim. No Lago Baikal, compramos pães deliciosas e um peixe defumado da família do Salmão por U$ 1,50.

A melhor vista possível do restaurante

O peixe era delicioso.

E ainda com mais um dólar se comprava um monte de fruts vermelhas (que delícia).

                Um grande abraço!