sexta-feira, 20 de maio de 2016

CHINA - KARAKUL LAKE E MUZTAGH ATA: SIMPLESMENTE MAGNÍFICO

  Olá, colegas. Iria escrever sobre outro tema, mas não tem como. Os últimos três dias foram simplesmente magníficos. Para dizer a verdade, todos os 13-14 meses que se passaram desde o início da viagem foram especiais. Entretanto, posso dizer que o local onde estive nos últimos dias foi o mais bonito da minha vida.

  “Ah, de novo com esse papo Soul?”, é de novo. Teve até um anônimo em algum artigo escrito por mim que de uma maneira gentil escreveu que eu era um caso típico de “complexo de vira-lata”, pois era impossível encontrar beleza em diversos lugares e situações. É, talvez seja. Em viagens de longuíssima duração, como a minha atual, é normal que os lugares vão ficando menos bonitos e as pessoas menos interessantes. Já li sobre esse sentimento em diversos blogs estrangeiros. Aliás, não é assim que chegamos a fase adulta? Tudo vai deixando de ser tão interessante, muito diferente quando éramos criança. Se ao menos conseguíssemos manter um pouco aquele sentimento infantil de encantamento com o mundo, como nossas vidas não seriam melhores e mais significativas.

  Não é à toa que o meu breve artigo sobre uma memorável tarde no planetário da belíssima cidade Brisbane na Austrália remeteu à nossa criança interior. É por causa disso, que só posso me sentir abençoado e privilegiado de poder me maravilhar com o mundo, mesmo depois de tanto ter viajado. É uma sensação incrível. Parece que essa forma de sentir e vivenciar o mundo de alguma maneira é uma porta de entrada para relações humanas melhores e significativas, pois a quantidade de pessoas especiais que eu e minha companheira conhecemos nos últimos meses é enorme. Não são apenas jovens e mochileiros. São pessoas de de diversas nacionalidades, idades, profissões e formação cultural diferente. É maravilhoso. Uma mostra clara de como precisamos conviver com o diferente, como a homogeneidade torna a vida muito menos colorida e interessante do que ela pode ser.

  Nas últimas duas semanas, convivemos como uma família com um casal de franceses. Nos conhecemos na cidade de Turpan (nosso porto de entrada na província de Xinjiang). Passamos inúmeras experiências juntos, logo nossos destinos foram para sempre marcados, pois dezenas de anos passar-se-ão e muito provavelmente ainda lembraremos uns dos outros. Nico na verdade é chileno, mas possui dupla cidadania. Completamente orgulhoso de sua origem chilena, não tente falar mal do vinho de lá, porque ele realmente fica brabo. Aliás, nas minhas viagens eu nunca encontrei alguém desmerecendo o seu próprio país de maneira tão intensa como os brasileiros, independente da situação política, econômica ou moral em que sua nação possa se encontrar. E olha que já conversei com pessoas de países em situação inúmeras vezes pior do que o nosso Brasil. Uma pena que brasileiros destratem a sua origem. Ela, Sara, francesa de origem. Recém-formada advogada, extremamente simpática.

  Nossos últimos dias na China, nossa última aventura juntos, seria no lago Karakul na famosa Karakoram Highway. Esta é a estrada mais alta do mundo, começando na China e terminando no Paquistão. O lago fica numa região quase que de fronteira entre China, Afeganistão, Tajiquistão e Paquistão. É uma região completamente sensível do ponto de vista geopolítico. É talvez uma das regiões mais belas e remotas do planeta.

  Havia apenas um ônibus entre Kashgar (belíssima cidade onde estávamos) e Tashkurgan já quase na fronteira com o Paquistão. Iríamos pedir para descer no lago, pois infelizmente, por causa do visto chinês, nós não teríamos mais alguns dias e seria impossível ir até a fronteira entre China e Paquistão, algo que seria sensacional, pois a Khunjerab Pass (Khunjerab significa literalmente “Vale do Sangue”, devido ao passado sangrento na antiga silk road - rota da seda) está a cinco mil metros de altitude (algumas pessoas não acostumadas com altitude já morreram ao atravessar a fronteira, o que fez com que haja oxigênio no ônibus e na fronteira para casos de emergência) e pelas fotos que vi é para lá de bela. Aliás, talvez o Paquistão e o Afeganistão sejam uns dos países mais bonitos do mundo. É uma pena que viajar por esses lugares é um No-No por razões de segurança, apesar de ter conhecido um ciclista que atravessou o Paquistão com escolta armada. A conversa com esse ciclista foi bem interessante. Ele era Irlandês e estava indo para a Mongólia visitar sobrinhos que lá moravam. Guia de Montanha de profissão, com várias idas ao Everest, um sujeito bacana na faixa dos 50 anos de idade, muito bem conservado fisicamente. Mais surpreende ainda foi conhecer no Hostel de Kashgar um casal de franceses com dois filhos pequenos que atravessou o Paquistão num caminhão militar reformado como uma espécie de Motorhome. Uau, que experiência para as crianças. Aparentemente, trafegar pela Karakoram Highway não é tão arriscado. O Irlandês me disse que há milhares de tropas paquistanesas vigiando a estrada, um esforço do governo do Paquistão para proteger eventuais estrangeiros de passagem.  Observei as crianças francesas brincando com crianças chineses. Como crianças, acaso estimuladas e não tolhidas por adultos, interagem uma com as outras independente de classe social, etnia, religião, etc. Talvez, se tiver filhos, faça uma viagem dessas com eles, pois com certeza uma experiência desse porte é uma forma maravilhosa de se educar um filho. Uma pena que uma parte significativa dos brasileiros de maior poder aquisitivo ache que levar o filho para a Flórida e ensiná-lo na “arte" de comprar um monte de coisas sem qualquer utilidade seja uma forma instrutiva de formação de caráter.

  Nossa primeira manhã começou agitada. Fomos para a estação rodoviária errada. O ônibus iria sair em menos de 25 minutos e não sabíamos ao certo qual das duas outras rodoviárias era o local certo. Um taxista ofereceu para nos levar à rodoviária aparentemente correta. Ele disse 10 Yuan para o trajeto. Quando estávamos no meio do caminho, presumi que ele diria que seriam 10 por pessoa e não pelo percurso até a rodoviária. Dito e feito. Não aceitei pagar, houve uma pequena discussão e como o ônibus estava prestes a sair, resolvemos pagar 30 Yuan.  Antes de embarcar, um americano se aproximou e começou a conversar comigo. Um sujeito de uns 50 anos, corpulento. Estava indo para o Paquistão. Interessante que em menos de meia hora estávamos falando sobre o sentido da vida e o papel maléfico dos EUA em várias partes do mundo. Ele era um  ex-militar e confidenciou que participou de diversas operações na América Central, e que não se orgulhava muito disso. Ofereceu casa e comida se algum dia passarmos por Seattle. Peguei o contato do facebook e espero que tudo ocorra bem em sua estada no Paquistão.

  A viagem transcorria normalmente e a estrada ficava cada vez mais linda. De repente, o ônibus parou atrás de uns carros. Pensei que era a tradicional “pausa da mijada” muito comum em viagens de ônibus pela China, mas não. A estrada tinha simplesmente colapsado num ponto. Havia um garoto de uns 20 anos manobrando uma espécie de trator misturado com um guindaste tentado fazer uma “nova estrada”. Quando me dei conta, vi que havia uma snow mountain ao fundo que deveria ser muito alta mesmo. O cenário era excepcional. Pensei comigo mesmo “bom, vai levar umas duas horas até ficar pronto”. Para a minha surpresa, e eu fiquei observando o trabalho, em 10 minutos estava pronta uma nova passagem. O garoto manobrando a máquina era muito talentoso. Ao ver aquela cena, lembrei-me de uma história do economista Milton Friedman a qual eu ouvi em algum lugar, mas não lembro onde. Numa visita a China, algum representante do governo chinês tentou vangloriar-se de que não havia desemprego na China e apontou para inúmeros trabalhadores braçais usando picaretas na construção duma represa. Aparentemente, não havia nenhuma máquina sendo utilizada. Diz-se que então Friedman voltou-se para o representante Chinês e falou algo mais ou menos assim “ Se o problema são empregos, por qual motivo eles não estão usando colheres?”. É patente como tecnologia, e a educação para como usar as ferramentas, potencializa a produtividade de um povo, aumentando assim a sua riqueza, bem como o bem-estar potencial. Se não fosse aquela máquina e um jovem bem preparado para utilizá-la, se fosse tudo feito manualmente, talvez seriam necessários dezenas de homens por várias e várias horas. Tive um vislumbre dessa situação, pois vi um senhor tentando ajudar com as próprias mãos e ficou tão patente a diferença de produtividade, que por uns minutos fiquei pensando sobre produtividade, Brasil, tecnologia, educação, tudo isso num cenário para lá de magnífico.

Um habilidoso trabalhador chinês em poucos minutos "reconstruiu" parte danificada da estrada. Produtividade=tecnologia.
  O povo Uyghur é extremaste simpático. Ainda escreverei apenas sobre este tópico. Faz parte de uma das 56 etnias,  você não leu errado, que compõe a China. São quase 10 milhões de pessoas. Um Uyghur tentou conversar comigo a viagem inteira. Extremamente educado, ele falava algumas coisas e eu tentava compreender o contexto. Quando passamos por um lago belíssimo, apontei para ele e perguntei “Karakul?” Ela acenou com a cabeça e disse não. Pensei comigo mesmo “caramba, se esse lago lindo não é o Karakul, como não deve ser a paisagem quando chegarmos lá?"

Karakul?

  Meu pensamento não estava errado. Descemos literalmente no meio do nada, mas para o meu alívio havia realmente alguns yurts perto do lago. A paisagem era simplesmente de outro mundo. Estava nublado, e imaginei como não seria aquele cenário com sol, sem nuvens e com o gigante Muztagh Ata completamente visível. Um yurt nada mais é do que uma tenda, muito usada por povos nômades nessa região do mundo. É bastante utilizada por Mongóis (e pretendo dormir várias noites em yurts locais quando estiver na Mongólia), Kazaks, Tajiks e Kyrgyz.

Sra.Soulsurfer e Nico andando em direção ao Yurt

  Estávamos numa região onde a etnia Kyrgyz é predominante. Pode parecer incrível, mas os Kyrgyz são completamente diferente dos Uyghurs e em nada se comparam aos Han (etnia predominante na China com algo em torno de 90% da população). Aliás, quase todos que nunca visitaram a China, ou a visitaram apenas nos nomes turísticos mais conhecidos da parte leste, pensam erroneamente que os Hans são a única etnia na China.

   Ao caminharmos pela estrada em direção aos yurts, alguns Kyrgyz se aproximaram de motocicleta oferecendo estadia numa vila a alguns quilômetros de onde estávamos. Recusamos, pois queríamos ficar num yurt. Um dos rapazes falava um inglês muito razoável e disse que conhecia um bom local à beira do lago por 50 Yuan por pessoa (algo em torno de 7,5 dólares americanos) com três refeições inclusas. Aceitamos a proposta, pois o yurt ficava a menos de 10 metros do lago. 

Isso é um Yurt, o melhor dizendo O YURT.


 Eu e a Sra.Soulsurfer, Nico e Sara iríamos coabitar o mesmo yurt por dois dias. Aliás, talvez poucas pessoas tenham tido essa experiência de dormir no mesmo ambiente com outras pessoas quando viajam. É um bom termômetro para saber se aquele bom amigo é suportável ou não numa convivência mais prolongada. Lembro-me de quando fiz uma viagem pela Califórnia com um casal de brasileiros que tínhamos conhecido em San Diego. Era a primeira viagem internacional deles e o Fernando estranhou e muito quando sugeri para dividirmos  quartos de hotel, que nos EUA são enormes e geralmente possuem duas camas de casal. São quartos de hotel praticamente construídos para 4 pessoas dormirem. Por que viajar assim? Primeiro, porque é muito mais barato. Em segundo lugar, porque é muito mais divertido. Hoje em dia, eles  são amigos do coração mesmo. Sempre que podemos nos visitamos. Um grande amigo e o laço de amizade foi construído nessa viagem. Detalhe, já devo ter falado dele por aqui, o Fernando é dono de uma empresa que vale dezenas de milhões de reais, possui atualmente dois galpões logísticos para alugar na ordem também de dezena de milhões de reais e um dos últimos vídeos que ele me mandou pelo Whatsapp, era o mesmo dirigindo uma lancha recém comprada ao som de “exagerado" do Cazuza e convidando para dar inúmeros rolês por Maresias quando voltar ao Brasil. Ele é extremamente humilde, gente boa mesmo e possui um grande coração. O seu único problema é a insistência de achar que o time do São Paulo é maior do que o Santos. Essa é uma impossibilidade lógica e física, pois o Santos Futebol Clube é o maior clube da história do futebol brasileiro por uma margem gigantesca em relação aos outros times.

  Nico na nossa humilde mais aconchegante residência por 3 dias

 Antes de jantarmos, eu e a Sra. Soulsurfer resolvemos namorar num morro bem perto do lago. Do nada, uma tempestade de areia fortíssima quase nos arrastou. Se não bastasse, começou a nevar também, e  as minhas mãos, que estavam sem luvas, começaram a doer de tanto frio. Iríamos observar como o tempo é instável numa região de tão alta altitude. Cheguei a presenciar o vento mudando de direção três vezes em menos de uma hora.

Karakul também é conhecido como o lago negro. É impressionante como o lago vai mudando de cor. 
Fomos pegos de surpresa por uma tempestade de areia cumulada com neve. Um frio de rachar.


  A família Kyrgyz que nos abrigou falava um Inglês rudimentar, talvez fruto da acolhida de outros estrangeiros. A casa deles era extremamente simples, seria quase que um quarto de favela se estivéssemos no Brasil, mas muito aconchegante.  Os nomes Kyrgyz são muito difícil para um falante de língua portuguesa. Deveria ter anotado o nome dos meus anfitriões, pois não faço mais a mínima ideia de como eram. A janta foi deliciosa. Um arroz com muitos vegetais, servido com chá. O ponto alto foi quando alguém bateu na porta e de repente ela abriu. Ao invés de “alguém" apareceu um Yak com cara de curioso olhando para dentro e assim ficou por uns bons 30 segundos. Foi engraçado. Como estava muito frio e ventando bastante, o nosso anfitrião achou melhor que dormíssemos numa casinha de uns 20m2 ao lado da dele ao invés de na frente do lago. Dormi como um bebê, coberto com uns três cobertores extremamente pesados. 

O Yak "bateu" na porta

A Sra. Kyrgyz que nos abrigou terminando os seus afazeres domésticos antes no entardecer

Sra. preparando arroz com vegetais. Sr. preparando o chá. Residência extremamente humilde, mas aconchegante, principalmente com o frio que fazia lá fora.

Dia a dia da família..

  O dia amanheceu e às seis da manhã no horário local (sobre horário local x Beijing time, falarei em algum outro artigo) estávamos de pé. Fazia um frio muito intenso, mas o colosso Muztagh Ata estava visível na penumbra da manhã. Essa montanha foi a mais impressionante que já tive o prazer de ver, mesmo já tendo estado no Nepal. O motivo? Ela é enorme, com mais de 7.500 metros de altitude. Isso é muito, muito alto. Além do mais, estávamos a algo em torno de 3.500 metros de altitude, o que significa que a montanha se erguia em 4km de extensão para o alto. É impressionante, e vendo aquilo não tem como não se sentir pequeno. Tomamos café da manhã, e a Senhora Kyrgyz nos preparou uma espécie de massa de pastel frito, que delícia! Quando saímos para caminhar, o sol já iluminava bastante o ambiente. O cenário era mágico. O outro colosso do local, uma montanha também de mais de 7.500 metros, também se fazia visível. 

Nascer-do-sol. Sem nuvens e a primeira vez que vimos A montanha em todo o seu esplendor.

Com sol, a vista é sublime

  Durante as próximas três horas, caminhamos, sorríamos, fazíamos filmes e fotos no cenário mais lindo que já vi em toda a minha vida. Um lago lindíssimo, inúmeras montanhas nevadas, sendo que duas delas com mais de 7.500 metros de altitude. Yaks andavam para lá e para cá, foi inesquecível.  Não tenho muitas palavras para descrever o quão prazeroso foi estar naquele local e caminhar ao redor do lago até a pequena vila de Kyrgyz de Subachi

Casal apreciando a vista

Estava muito frio, apesar do sol.



Sra.Soulsurfer, Nico e Sara caminhando ao redor do lago

Olha esse visual....


e esse...

e mais esse (esplêndido Muztagh Ata, quase 8 mil metros de altura)

Esqueci o nome dessa montanha (era ainda maior do que o Muztagh Ata). Tinha no mínimo uns 7 glaciares um do lado do outro reconhecíveis a distância. Impressionante.



  Antes de chegar na Vila, resolvemos subir um morro. A Sra. Soulsurfer sentido a altitude ficou no meio do caminho. Resolvi continuar junto com os franceses e valeu a pena, pois as vistas eram espetaculares. Quando já estava no topo, vi uma motocicleta subindo a montanha, o que foi algo incrível, pois a superfície era toda irregular com várias pedras. Era o rapaz do dia anterior que falava um bom Inglês. Ele ofereceu a sua casa na vila para tomarmos chá e disse que levaria a Sra. Soulsurfer de moto. Aceitei a proposta.

Sara e o rapaz da moto que falava um inglês razoável (dentro do yurt)

  Ao chegar na vila andando não conseguia achar de jeito nenhum o sujeito e muito menos a minha companheira. A vila é localizada no pé da montanha e o local é fabuloso. Andei para lá e para cá e comecei a ficar preocupado. Depois de quase 40 minutos perambulando, vi o rapaz chegando de moto e dizendo que tinha me procurado esse tempo inteiro.  Ele me deu carona até a sua casa e lá vi a Sra. Soulsurfer sorrindo e tirando fotos de locais preparando pão num forno. Entre esses locais, estava a mulher do rapaz. Mulher bonita e elegante, ainda mais num local tão remoto como aquele. Extremamente sorridente, ela nos ofereceu um pão quentinho delicioso. Na Ásia como um todo, não há a cultura do pão como no ocidente. Uma rara exceção foi esse local no extremo oeste da China. Entretanto, os vínculos históricos e culturais são com a Ásia Central, e por via de consequência o Oriente Médio, e não propriamente a China. Não sabem o prazer que foi para gente comer um pão caseiro quentinho. Quando voltar ao Brasil, vou ter um verdadeiro prazer gustativo ao poder comer pão com requeijão. Simples coisas na vida, e que podem dar uma sensação de bem-estar enorme, quando nos damos conta de como essas singelas coisas são tão importantes. O rapaz tinha 25 anos e a mulher dele 22 anos. Aparentavam mais. Resquícios da vida dura que não deve ser morar num lugar lindo, mas longe de quase tudo.

Elegância na feitura do pão...
A esposa do nosso "guia"


Pães sendo feito dentro do forno

Preparo tradicional. Talvez centenas ou mesmo de milhares de anos os pães devem ser feito dessa maneira


  O rapaz então ofereceu nos levar de moto até o glaciar no base camp que alpinistas usam para escalar o Muztagh Ata. Por meio de um blog de um casal australiano que viaja o mundo, já sabia da existência desse  glaciar. As informações sobre a beleza do local não podiam ser melhores. O casal australiano chegou lá andando, mas não poderíamos fazer isso, pois seriam dois dias de caminhada. Aceitamos o preço pedido de 200 Yuan para duas motos. Queríamos dirigir, mas eles disseram que não era possível. O valor não foi tão barato, mas, depois de ter feito, se tivesse que pagar mais, pagaria muito mais. 

Passeio de moto "a três"


  Gostaria de ter chegado no Glaciar de moto, mas o rapaz com outro companheiro pararam numa estação de polícia e trocaram as motos por um carro 4x4. A estrada foi sensacional até a entrada do parque nacional. Teoricamente, teríamos que ter pago uma entrada, mas o rapaz conhecia o gerente do local que deixou o carro passar por uma estrada paralela. Já dentro do parque nacional, ao pé do Muztagh Ata, comecei a ver vários animais marrons. Eram uma espécie de marmota e havia várias delas. 

Dezenas de "Marmotas". Ainda não pesquisei para saber qual animal é esse que habita numa altitude tão alta.

A Sra. Soulsurfer achou a "marmotinha" cute (engraçadinha). Você concorda prezado leitor?

  Estávamos a 5.000 metros de altitude, o que é muito alto mesmo, e teríamos que caminhar meia hora até o glaciar. Não havia ninguém. A Sra. Soulsurfer teve que caminhar muito lentamente para conseguir. Depois de mais de meia hora de caminhada com muita dificuldade, eu apenas disse para mim mesmo “Caraca!”.

Antes de chegar ao glaciar, era necessário caminhar ainda mais (desde o pequeno lago ao fundo). Olha o visual. Estávamos a poucos quilômetros da fronteira com o Tajiquistão. Curioso pensar que daqui uns 4 meses estaremos quase que no mesmo lugar, mais do outro lado da fronteira fazendo, se tudo der certo, a mítica Pamir Highway em duas semanas, passando alguns dias na zona de fronteira com o Afeganistão.

  O Glaciar era simplesmente monumental. Para complementar a paisagem havia um pequeno lago congelado. Nossa, que visual. Caminhamos pelo lago congelado com muito cuidado e curtirmos muito o local. Num local quase desconhecido por todos, perto do Afeganistão e Tajiquistão, a 5000 metros de altitude, em cima de um lago congelado, com um glaciar enorme atrás e sem nenhuma alma viva no local ao pé de uma montanha de quase 8000 metros de altitude. A situação foi tão surreal, tão diferente do meu dia a dia no Brasil quando por lá estava, que eu apenas pude abrir um sorriso e me considerar extremamente sortudo de poder ter uma experiência como aquela. Nenhum carro, celular, status baseado em bens, poderia me proporcionar nem 10% do que vivenciei aquele dia. Só posso agradecer por estar vivo. Estava tão absorto pelo local, que nem senti que fechei o famoso acessório “pau de selfie” no meu dedo, arrancando um belo naco de pele. Quando estava pousando para uma foto, a minha companheira apenas perguntou " que sangue é esse na sua mão, na mochila, no tênis e no lago congelado?”. Nada demais, mas a quantidade se sangue derramado foi razoavelmente grande.

Já estive no Perito Moreno na Argentina, e o glaciar é impressionante. Entretanto, esse foi muito especial por tudo que envolvia o local e o fato que podia-se chegar perto e não havia qualquer turista no local (ao contrário da argentina com hordas de turistas)

Caminhando no lago congelado em direção ao glaciar

O carro que nos levou perto do glaciar

   De volta ao acampamento, a janta foi servida. Uma pasta caseira muito gostosa. Dormi muito, mais muito bem mesmo nessa noite. Acordamos bem cedo novamente e infelizmente era o último dia. Teríamos apenas mais algumas horas naquele local encantado. Infelizmente, o dia não estava tão bonito como o outro e muitas nuvens pairavam no céu. Havia um outro lago uns poucos minutos caminhando da casinha dos nossos anfitriões e era bem bonito também. 

O outro lago também era espetacular. 


Casa dos nossos anfitriões

Soulsurfer dirigindo a nova caranga...
Grato aos senhores por proporcionarem uma experiência tão marcante

Beleza para todos os lados


  Resolvemos então pedir carona para voltar a Kashgar. Um carro parou e pediu 50 Yuan por pessoa, uma espécie de "Uber da estrada". O preço era razoável e aceitamos, foi quando vi um camelo branco lindíssimo. Acenei para a Sra. Soulsurfer e falei “era essa foto que tanto queria”. Uma pintura de enquadramento. O motorista do carro era um verdadeiro maluco e ainda bem que chegamos bem ao nosso destino. Quando já na cidade, ele  queria nos deixar bem longe do centro de Kashgar (é bem comum esse tipo de coisa). Eu e a Sra. Soulsurfer deixamos a entender que de jeito nenhum desceríamos ali. O motorista apenas paralisou e ficou olhando para a minha companheira, acho que nenhuma mulher jamais tinha falado tão incisivamente com ele. No final, ele nos deixou no centro da cidade. 

O filho do casal que nos hospedou apareceu com um camelo lindíssimo quando estávamos indo embora

A foto que eu queria. Pena que o Muztagh Ata estava encoberto

Um lembrete de que não estávamos numa região das mais tranquilas. Dezenas de caminhões do exército na estrada. Uma cena normal em Xinjiang e nas províncias que possuem população tibetana.


  De noite, tomamos uma cerveja com nossos novos bons amigos Sara e Nico. Relembramos um pouco as nossas aventuras nas últimas duas semanas. Será que nos veremos novamente? No Chile, no Brasil ou em Paris? Não sei. A Sara disse que os pais tem uma bela casa na Britânia e nos convidou a ficar lá. É uma região da França que sempre quis conhecer, principalmente para ir às praias onde os aliados desembarcaram na Normandia em junho de 1944. Talvez nos encontremos, talvez não. Porém,  eles já fazem parte da nossas vidas, pois a quantidade de vida e experiência que tivemos nos últimos 15 dias com certeza nos acompanharão por dezenas de anos. 


   No nosso quarto de hostel, havia um casal chinês que falava uma ou outra palavra de Inglês. Toda hora eu tinha que repetir em chinês que não compreendia o que eles falavam. Pelo que entendi, eles estavam numa espécie de lua de mel. Eles estavam extasiados de dividir o quarto com dois estrangeiros.  No final, tiramos uma foto juntos, e ele apontou para mim e fez sinal de que eu era um Macaco. Não sei se foi um elogio ou não. Acho que sim. É o ano do Macaco na China, e eu nasci em outro ano do Macaco. Esse animal é reverenciado na China. Há inclusive uma mitologia muito forte sobre um Rei Macaco, e um blockbuster chinês tem esse nome “The Monkey King”. É pensando bem, deve ter sido um elogio.
                          

Parecido com o Soul? Depois eu lembrei que eu vi o filme quando estava indo de balsa de Padang até o paraíso absolutamente paradisíaco de Mentawai (ai que saudades daquelas ondas perfeitas...) Bom, o rapaz aí era meio poderoso, na cena final ele derrota sozinho milhares de soldados de um outro exército

  O artigo ficou grande para apenas três dias de viagem? Ficou. Não me importo, precisava contar essa experiência para quem possa ter algum interesse e principalmente fazer o registro desses dias maravilhosos. Escrevo esse artigo direto do aeroporto. Estamos indo para Beijing e amanhã de manhã temos outro voo para Seoul, capital da Coréia do Sul. Ficaremos lá duas semanas, depois vamos a H.Kong e entramos na China novamente para mais um mês rumo a Mongólia. Daí a viagem se tornará mais épica ainda, serão cinco meses da Mongólia até o Irã, passando pelos cinco Stans e Rússia. Será demais e espero compartilhar diversas histórias com os leitores desse blog.

Até mais China Maravilhosa

Nos vemos em breve (cadeia de montanha Tian Shan - Divisa entre China, Quirguistão e Cazaquistão)



  Grande abraço a todos!


quinta-feira, 12 de maio de 2016

FII DE PAPEL - RENDA FIXA OU NÃO?

    Olá, colegas. Enfim, Kashgar. Centro da cultura e etnia Uyghur. Foi uma verdadeira epopeia de 30 horas para chegar aqui  partindo de uma cidade do meio do deserto (com lindíssimas atrações e cultura por sinal) chamada Kucha que envolveu tantas coisas, que eu faria um artigo só sobre essa viagem. Dezenas de Check Points policiais, uma tempestade de areia no deserto que nos acompanhou por mais de 1000 km, hotéis que não aceitavam estrangeiros, uma noite no meio da estrada no meio da tempestade num local que parecia saído de algum filme do Mad Max e muito, muito mais.  Porém, ao liberar os comentários do meu artigo anterior, vi que havia uma provocação interessante do colega Márcio do blog DI Finance.

  Antes de mais nada, reitero pela enésima vez que esse tipo de discussão é extremamente benéfica para os envolvidos, e também para quem acompanha. Eu não fico nem um pouco sentido ou ofendido (o que seria algo sem sentido para os meus padrões de conduta), pelo contrário fico alegre quando alguém publica um comentário, principalmente sobre questões técnicas de investimento, com embasamento, mesmo que eu considere equivocado, e com concatenação de ideias. Resolvi escrever um pequeno texto, pois acho importante para investidores amadores, como eu e a maioria dos leitores desse blog.

  A mensagem do colega citado foi no sentido de que o meu artigo foi uma grande desinformação financeira, pois possui erros primários sobre o mercado financeiro, sendo que o principal deles é considerar Fundos Imobiliários de Papel como uma espécie de Renda Fixa. Esse é o teor do comentário:


"Soul,

olha, serei sincero: dizer que um FII de papel é renda fixa, este sim, é um erro gigantesco, como vc apontou.

A renda fixa caracteriza-se por ter um fluxo de caixa fixado. E este fluxo de caixa inclui também o principal.

Um FII de papel não garante nem a renda e, muito menos, o principal, que é negociado em bolsa e tem seu preço determinado única e exclusivamente pela oferta e demanda. Não possui maturidade.

Sinceramente, vc considerar ter FII "de papel" (seja lá quem foi que inventou isso) como renda fixa num portfólio é um absurdo sem tamanho!!!!!!! É renda variável, como todo e qualquer FII!!

Se tem alguma dúvida, consultemos o órgão oficial:
http://www.bmfbovespa.com.br/pt_br/produtos/listados-a-vista-e-derivativos/renda-variavel/fundos-de-investimento-imobiliario-fii.htm

1) Está classificado como Renda Variável
2) Não existe sub-classificações (papel, tijolo, etc)

Lamentável este post, meu caro. Uma desinformação financeira. Pior é ver um monte de gente aplaudindo deixando passar erros básicos como esse.

Não entenda como implicância minha, mas sim uma crítica construtiva. Acho até legal q vc faça comparações e etc, mas sua questão do portifólio foi, realmente, absurda. Não adianta elocubrar várias questões sobre risco e interações entre instituições financeiras se vc parte já de cara quebrando princípios básicos.

ps - vc pode conferir os FII listados. O XPGA sugerido por vc também está lá: RENDA VARIÁVEL.


 Vamos analisar a mensagem com mais vagar e detalhamento.


A) "A renda fixa caracteriza-se por ter um fluxo de caixa fixado. E este fluxo de caixa inclui também o principal"


 Exatamente. Essa é a definição de renda fixa. Um instrumento de renda fixa não deixa de ter o seu rendimento já fixado, pois o valor do título flutua no mercado. Isso é um erro fundamental e muitos investidores cometem. Não acredita? Uma NTN-B quase sempre tem rentabilidades negativas ou positivas acentuadas quando há mudanças bruscas na perspectiva de juros. Uma rentabilidade negativa de -30% em seis meses de uma NTN-B50 , por exemplo, transforma esse título em uma renda variável? Evidentemente que não. Caso o governo federal não dê calote no ano de 2050, e o título foi comprado em 2016 com uma perspectiva de rendimento de IPCA+6%, é esse o retorno anualizado que o credor terá em 2050 se levar o título até o vencimento. Nem mais, nem menos. A renda é fixa por causa disso, não por causa da variação ou não do título subjacente.

  É por isso também que o investimento em imóveis para aluguel não pode ser caracterizado como renda fixa. Ora, pode existir vacância, o aluguel pode sofrer revisional negativa ou positiva, etc, etc. Assim, quem investe num imóvel  para aluguel não pode ter certeza de qual será o fluxo de dinheiro num determinado período, o fluxo pode variar, e por isso é uma renda variável.


B) "Um FII de papel não garante nem a renda e, muito menos, o principal, que é negociado em bolsa e tem seu preço determinado única e exclusivamente pela oferta e demanda. Não possui maturidade.


  -Essa parte possui inúmeros erros, muitos mesmos. Vamos começar pela parte de que um FII de papel não garante nem a renda e muito menos o principal. Colegas, a única garantia que temos na vida é que um dia iremos morrer. Poderia escrever artigos e mais artigos sobre as implicações desse simples fato de como deveríamos encarar a vida. Mas, fugiria totalmente do foco. O fato básico de finanças é que não há garantia de absolutamente nada. Nem mesmo um título do governo americano é garantia de recebimento do principal e acessórios. Podemos falar que a probabilidade de isso ocorrer ser bem grande se comparado com título soberano do governo da Bolívia. Entretanto, isso não quer dizer que há a garantia. Logo, um FII de papel nunca poderá “garantir" a renda e o principal.
- A causa para a premissa inicial que já é errônea de que um FII de papel não garantiria o principal, porque o mesmo “que é negociado em bolsa” não faz qualquer sentido. O fato da cota de um FII ser negociada na bolsa não tem qualquer relação com a sua renda (a não ser para efeitos tributários).  Por qual motivo? Ora, os juros acordados no momento da compra de uma CRI, por exemplo, não tem qualquer relação com o fundo ser negociado em bolsa ou não. Se entendermos o “principal” como os ativos pertencentes ao fundo, então o mesmo raciocínio em relação à renda se aplica. Se um fundo como o FEXC comprou uma CRI que remunera IGP-M+6%aa (e vamos supor que essa seja o único ativo do fundo para fins de simplificação) por 100 milhões de reais (e supondo que haja 1 milhões de cotas emitidas e ignorando os custos de emissão, o que dá um VP de R$100,00 por cota), qual é o efeito na CRI do fundo (ou seja o único ativo no qual o fundo está investido, ou seja o principal) se a cota for negociada por R$50,00? Resposta: nenhum. Absolutamente nenhum. Se você leu meu artigo anterior, saberá que isso significará apenas que para compradores de cota no mercado secundário irão ter uma perspectiva de retorno de IGP-M+12%aa, pois estarão comprando a carteira do FII por metade do valor patrimonial. E o investidor que não vender a cota pela metade do preço e por ventura tiver comprado pelo valor patrimonial? Ele continua com a mesma perspectiva de retorno de IGP-M+6%aa.
- “Ah, Soul, mas se ele vender a cota, terá prejuízo”. Ora, alguém que comprou NTN-B 35 a IPCA +3%aa em 2013, se vendeu o título no começo de 2016, vendeu com enorme prejuízo. É a mesmíssima situação.
- Além do mais, a parte final é simplesmente falsa. Ora, como assim fundo de papel não tem fluxo definido de caixa? Se analisar a carteira de um FII como o FEXC (basta consultar o relatório de abril de 2016 no site da BTG) podemos ver exatamente como se dá o fluxo de dinheiro no fundo. A primeira CRI é uma onde a emissora é a PDG a taxa é de 5%aa, o índice é o CDI e o vencimento é dezembro de 2016. Essa CRI representa quase 9% do patrimônio do fundo. Isso quer dizer que há prazo para essa CRI ser paga para o FII e por sua vez o FII tem que repassar, por exigência legal, aos cotistas dos fundos os valores recebidos. O que pode acontecer no caso é que o FEXC ao receber a amortização, correção monetária e juros contratados finais, poderá ir ao mercado e investir o dinheiro em outra CRI com outro prazo de maturidade ou pode simplesmente devolver tudo aos cotistas como forma de rendimento e amortização do principal da CRI. Falar que fundo de papel não tem fluxo de amortização, correção monetária e juros é falso e completamente contraditório com uma simples leitura de relatórios mensais.
- O falto de alguns FII terem calendários não homogêneos, CRI que amortiza parcial, CRI que não amortiza, CRI que paga correção monetária só no final, etc, etc, é uma complexidade do fluxo de caixa. É por isso que foi dito que deve-se exigir prêmio em relação a NTN-B para investir nesses instrumentos. A complexidade do fluxo das várias CRIs que um fundo de papel têm não transforma uma CRI num instrumento de renda variável. É apenas renda fixa mais difícil de ser analisada.
- Por fim, apenas para finalizar esse tópico, dizer que o preço do “principal" de um FII de papel é definido única e exclusivamente pela oferta e demanda algo quase que tautológico. Tudo é definido por oferta e demanda. Inclusive os títulos de NTN-Bs a venda no Tesouro Direto. Ora, como há a variação na taxa de juros? Simplesmente pela variação de oferta e demanda em relação ao título em questão. Numa economia de mercado, tudo é precificado de acordo com a oferta que se tem pelo bem. Isso não é uma característica única de um FII de papel, nem de renda fixa ou de renda variável, mas sim uma característica do funcionamento da economia.


C) "Sinceramente, vc considerar ter FII "de papel" (seja lá quem foi que inventou isso) como renda fixa num portfólio é um absurdo sem tamanho!!!!!!! É renda variável, como todo e qualquer FII!!
Se tem alguma dúvida, consultemos o órgão oficial:
http://www.bmfbovespa.com.br/pt_br/produtos/listados-a-vista-e-derivativos/renda-variavel/fundos-de-investimento-imobiliario-fii.htm
1) Está classificado como Renda Variável
2) Não existe sub-classificações (papel, tijolo, etc)


- Comecemos pelo final. Ora, o fato de não haver uma classificação feita por algum órgão oficial não tem a menor importância. A divisão entre FII de “Papel" e FII de “Tijolo" que existe desde que comecei a pesquisar sobre FII, é simplesmente para ajudar o investidor a separar dois tipos de ativos completamente diferentes. Ou investir num ativo que tem uma propriedade imóvel alugada para um hospital até o ano de 2027 (caso do NSLU11B) é a mesma coisa que investir num ativo que comprou um CRI pulverizado de contratos de aquisição de pessoas físicas para a aquisição de imóveis residenciais (como o FEXC, por exemplo)? Evidentemente que não. A separação nessas duas classes de FII é apenas para que o investidor tenha consciência de que os dois fundos NSLU e FEXC são chamados de FII, mas eles são completamente distintos em objetivos, ativos e riscos. Se os órgãos oficiais assim não o consideram, pior para quem não tem acesso a outros tipos de informação.
- Além do mais, no EUA é muito comum a divisão entre Equity REITs (Fundos que investem em propriedades para venda ou aluguel) e Mortage REITs (Fundos que investem em papeis de dívidas imobiliárias). Conseguem ver algum paralelo com o Brasil, prezados leitores? Ora, essa é a divisão básica que se faz quando se analisa esse tipo de ativo financeiro. Mortage REITs são tão diversos de Equity REITs que um dos melhores livros sobre REITs do mercado americano nem trata dos Mortage REITs, pois eles seriam instrumentos de dívida, ou seja renda fixa.
- Vamos supor que um FII como o XPGA não tenha qualquer relação com renda fixa, para fins de debate. Certo. Então, se eu compro uma LCI da CEF é um ativo de renda fixa. Se eu compro um FII que investe em LCI da CEF, por alguma transformação de alquimia, eu não estou investido em renda fixa. Estou investido no que exatamente? Tentei imaginar uma resposta, mas não consegui.
- Se considerarmos que um fundo que compra ativos de renda fixa deixa de ser investimento em renda fixa, então todos os livros de finanças pessoais estrangeiros, inclusive os mais famosos, estão errados. Ora, o conselho da maioria deles, inclusive do famoso livro do Burton Malkiel  “A Random Wall Down Wall Street” (o qual eu ainda não doei para alguma estante de algum albergue por aqui), é que um investidor amador invista em ETFs. Ele divide o portfólio em renda fixa, renda variável (ações) e ativos alternativos (nos quais os Equity REITs se encaixariam, apesar deles serem renda variável no sentido técnico da palavra). Para a parte do patrimônio de renda fixa, se indica comprar ETFs. Ora, ETFs de renda fixa são instrumentos financeiros que compram inúmeros títulos de dívidas com maturidades diversas, fluxos diversos, etc. As pessoas compram cotas desses fundos e essas cotas variam ao sabor do mercado. Alguma semelhança com FII de papel? Pois é. Se essa forma de pensar fosse correta (a expressada pelo colega do blog em questão), não existiria mais investimento em renda fixa via ETFs, o que é um completo absurdo.



D) "Lamentável este post, meu caro. Uma desinformação financeira. Pior é ver um monte de gente aplaudindo deixando passar erros básicos como esse. Não entenda como implicância minha, mas sim uma crítica construtiva. Acho até legal q vc faça comparações e etc, mas sua questão do portifólio foi, realmente, absurda. Não adianta elocubrar várias questões sobre risco e interações entre instituições financeiras se vc parte já de cara quebrando princípios básicos."


  • Sobre a desinformação ou não, deixo para os leitores do blog opinarem por si só.  Sobre construção de portfólio, prezados leitores, repito não cometam o erro conceitual de não saber no que se está investido e com isso investir em instrumentos de renda fixa, como FII de Papel - independente de que haja uma classificação oficial ou não - de forma maior do que a alocação desejada inicialmente.  Você investir numa CRI, ou investir num FII que compra CRI, estará investido em instrumentos de renda fixa atrelados ao mercado imobiliário. O fato da compra de uma CRI ser feita por FII não transforma esse instrumento de dívida em algo diferente.
  • Sabedor das complexidades que podem existir num FII de papel, é importantíssimo saber o que essa espécie de ativo é, para que assim o investidor possa fazer decisões mais acertadas e compatíveis com seus objetivos financeiros, sempre levando em conta que o risco adicional de se investir nessa espécie de ativo deve ser recompensado na forma de um retorno maior do que uma NTN-B.


  Por último, duas coisas. Agradeço ao Márcio o comentário. Não concordo com quase nada do que ele escreveu e acho que há inúmeros erros, mas o debate colocado dessa forma é uma boa chance para evoluirmos nossas ideias e compreensões de mundo. Por fim, não estou escrevendo sobre a situação política do país, pois acho que para quem está no Brasil creio que não se deve estar falando de outra coisa. Porém, irei dar algumas opiniões sobre o que penso a respeito em próximos textos.


  Grande abraço a todos!

sábado, 7 de maio de 2016

FUNDOS IMOBILIÁRIOS DE PAPEL - GUIA PRÁTICO PARA INVESTIMENTO

 Olá, colegas. O presente artigo trata de como analisar um Fundo Imobiliário de Papel para que seja feita uma compra que possa atender aos interesses do investidor. No plano pessoal, estou numa região bem diferente da China: província de Xinjiang, extremo oeste do vasto território chinês. Ela é de maioria muçulmana e a etnia predominante é a Uyghur que fala uma língua com certa semelhança com o turco. Está sendo uma experiência muito boa até agora, até porque fizemos bons amigos nas últimas semanas. 

  Irei escrever o texto em tópicos para facilitar a leitura e compreensão do encadeamento lógico do meu raciocínio.

I - FUNDOS IMOBILIÁRIOS DE PAPEL SÃO INSTRUMENTOS DE DÍVIDA

  Esse tópico já foi amplamente abordado nesse blog. Sugiro a leitura dos seguintes artigos: FII de Papel - Abrindo a Caixa de Pandora e FII de Papel - O que essa espécie de ativo realmente éApenas recapitulando, Fundos Imobiliários ditos de papel aplicam seus recursos em instrumentos de dívida vinculados ao setor imobiliário. São instrumentos de renda fixa, portanto, e como renda fixa devem ser analisados. 

 É um erro gigantesco, do ponto de vista de finanças pessoais, considerar os Fundos Imobiliários de papel na mesma categoria dos Fundos Imobiliários que investem em propriedades para aluguel. Esta confusão pode levar inclusive a erros de execução na montagem de um portfólio de investimentos. O motivo é simples. Se FII de papel é instrumento de renda fixa, e alguém colocou como meta ter 50% do seu patrimônio investido na espécie de ativo renda fixa, por exemplo, caso a pessoa tenha 50% do seu dinheiro investido em títulos do governo federal e 50% investido em Fundos Imobiliários, talvez a meta inicial não esteja sendo cumprida. Se dentro desses 50% investidos em FII, metade esteja investida em fundos como FEXC, XPGA, etc (fundos de papel), isso quer dizer que 75% do patrimônio pessoal está investido em instrumentos de dívida, ao contrário dos 50% iniciais planejados. Esta falha de planejamento acontece muitas vezes também quando investidores consideram planos de previdência como uma espécie diferente de ativo, ao invés de considerar quais são os ativos em que os planos investem. Não cometa esse erro, prezado leitor.

  Logo, é essencial que essa diferenciação conceitual seja clara, pois ao não fazer isso, a pessoa pode estar privilegiando em excesso o mercado de dívida, desrespeitando alguma estratégia previamente adotada sobre a alocação de ativos desejada em cada classe. Assim, Fundo Imobiliário de tijolo você pode fazer associações com imóveis. Fundo Imobiliário de Papel, a melhor associação é com Letras de Crédito Imobiliário ou Certificado de Recebíveis Imobiliários que eventualmente você possa adquirir diretamente no mercado primário ou secundário de títulos.


 II - FII DE PAPEL É MUITAS VEZES UM INSTRUMENTO COMPLEXO E MAIS ARRISCADO DE DÍVIDA

   No artigo FII de Papel - Abrindo a Caixa de Pandora, foi explanado com certo detalhe como os títulos nos quais Fundos Imobiliários de Papel investem podem ser complexos. Se alguém é cliente do Banco do Brasil, e o gerente oferece investimentos em LCI para receber 86% do CDI, por exemplo, a análise é bem fácil. Se o Banco não quebrar, você recebe tudo que foi contratado. Em Fundos Imobiliários, a análise é muito mais difícil e complexa, pois o fluxo de pagamento de amortizações, correção monetária e juros contratados depende de uma miríade de fatores.

  Além do mais, envolve muito mais riscos. Ou você acha que o risco de emprestar para o Banco do Brasil ou ser credor via Fundo Imobiliário de Papel de devedores que tomaram dinheiro emprestado para comprar imóveis possui o mesmo grau? O risco, evidentemente, é muito maior como credor via FII. Se é mais arriscado do que muitos dos instrumentos mais acessíveis aos investidores, amadores o retorno potencial deve ser maior. Simples assim. 

  Logo, Fundos Imobiliários de papel muitas vezes investem em instrumentos complexos de dívida, bem como em dívidas muito mais arriscadas do ponto de vista de default.

III - COMPARANDO RETORNO MÉDIO ESPERADO DE UM FII DE PAPEL COM A NTN-B

  Como bem sabido pelos leitores desse blog, o custo de oportunidade é central não só para se entender finanças, mas bem como todas as nossas ações na vida. O conceito é essencial e o seu domínio é vital não só para se navegar com mais tranquilidade nos mares das finanças pessoais, mas também para melhor entender as alternativas que se tem na vida para uma pletora de coisas.

  O custo de oportunidade financeiro é geralmente dado pela taxa de juros de curto prazo dos títulos de dívida do governo. No Brasil, seria a SELIC. Como a taxa de empréstimo interbancário é muito próxima a meta da SELIC estabelecida pelo COPOM, também se pode utilizar o CDI como custo de oportunidade financeiro.

  Entretanto, para comparar os FII de papel com o custo de oportunidade (ou seja um título com pouco risco), acho mais apropriado fazer a relação com títulos indexados à inflação como Notas do Tesouro, NTN-Bs. A razão é simples. Os títulos nos quais os FII investem geralmente são Certificados de Recebíveis Imobiliários com taxas de remuneração atreladas à inflação. Logo, um FII de papel vai ao mercado e compra uma CRI remunerando inflação + juros. Quase sempre o indexador é o IGP-M, ao contrário do IPCA das NTN-bs. Porém, para efeitos de praticidade irei considerar que o IPCA e o IGP-M tem comportamento semelhante.

  Assim o fazendo, fica fácil comparar uma carteira de um FII como uma NTN-B. Se a rentabilidade ponderada dos títulos  de um FII rende IGP-M+8% aa, e uma NTNB35 rende IPCA+6%aa, isso quer dizer que a carteira média de um FII rende 2%aa a mais, acaso o FII seja comprado no valor patrimonial.

  Por qual motivo utilizar a rentabilidade ponderada? Porque é ela que efetivamente representa o potencial de retorno da carteira de títulos de um FII. É simples. Se um FII comprou 10 CRIs diversas todas elas rendendo IGP-M +8%aa, então o retorno total da carteira será o mesmo dos títulos individuais. Agora, se o fundo comprou 5 títulos rendendo IGP-M +8% aa e 5 títulos rendendo IGP-M +4%aa (supondo que todos os títulos tenham o mesmo valor de compra), a carteira do FII terá o rendimento de IGP-M +6%aa. 

  Alguns relatórios de FII de papel já fornecem a rentabilidade esperada da carteira ponderada pelos valores investidos nos títulos. Isso facilita e muito o trabalho do investidor.  Casa o FII não forneça esse número, basta pegar os títulos em carreira do fundo e ponderar a rentabilidade pelos valores investidos pelo fundo. 

IV - VALOR PATRIMONIAL E SUA RELAÇÃO COM A RENTABILIDADE DE UM FII DE PAPEL

   No último tópico, disse que a rentabilidade ponderada dos títulos é às vezes fornecida pelos relatórios dos FII de papel. A rentabilidade ali expressa é para os casos de compra do fundo pelo valor patrimonial. “O que isso quer dizer exatamente, Soul?”

  Imagine um FII fechado de papel  (sem venda de quotas no mercado secundário) que comprou apenas um título de CRI rendendo IGP-M + 10%aa com vencimento em 2025. Esse título custou 10 milhões de reais. Assim, como numa compra do Tesouro Direto, se o fundo levar esse título até o vencimento sem vendê-lo antes, e acaso o devedor não dê calote no título, investidores desse fundo hipotético irão em 2025 ter uma rentabilidade  anual idêntica ao preço de compra, ou seja, IGP-M +10%.

  Imaginem que esse fundo fechado possua duas cotas e dois investidores. Assim, cada investidor aportou cinco milhões de reais.  Como é um fundo fechado, nenhum desses dois investidores pode vender essa cota por meio da bolsa de valores. Entretanto, essa cota pode ser negociada num contrato particular entre partes. Posso estar enganado, mas não vejo nada que legalmente proíba essa hipótese. Vamos supor que um desses investidores, logo depois de comprar a cota no FII, precise de dinheiro imediato porque uma necessidade premente de liquidez se fez necessária. Ele possui uma  cota que tem um valor patrimonial de 5 milhões de reais. Entretanto, ele não encontra ninguém disposto a comprar a sua posição pelo valor contábil (ou seja um título rendendo IGP-M +10%aa). A melhor oferta de compra é de alguém que oferece comprar a sua posição, desde que ela possa ter uma expectativa de retorno de IGP-M + 20%aa até o vencimento do título

 Para que a venda seja concretizada, a posição como cotista do FII de papel terá que ser vendida pela metade do preço de aquisição. Só assim, o título renderá IGP-M+ 20%aa. Assim, o eventual comprador terá comprado a posição do cotista originário por metade do seu valor patrimonial. O princípio é o mesmo de como o valor da taxa de juros influencia a precificação dos títulos de renda fixa com alguma parte pré-fixada. O exemplo dado é extremo, dificilmente um título, sem que haja algo extraordinário, variaria tanto assim de preço. Foi apenas utilizado para que o conceito fique claro.

  Assim, colegas, dependendo do preço pago em relação ao valor patrimonial de um fundo imobiliário, ou de qualquer título de dívida, a rentabilidade esperada será maior ou menor do que o valor de aquisição original. Isso se aplica as negociações no mercado secundário dos FII de papel ou de qualquer outro instrumento de dívida, como debêntures por exemplo, que haja alguma liquidez.

  Se o Valor Patrimonial de um fundo como FEXC11b, para ficar apenas num que é famoso entre os investidores amadores, é de R$100,00 a quota, se o valor esperado da rentabilidade ponderada dos títulos que o FII possui é de IGP-M +8%aa, e se o valor de venda no secundário é de R$100,00, ou seja idêntico ao valor patrimonial, o retorno esperado de um investidor que compra um cota, caso não haja qualquer problema contábil, fluxo de caixa com alguma particularidade ou de calote em algum título, será de exatamente IGP-M +8%aa.

  Se a cota estivesse sendo negociada a R$50,00 no secundário, ou seja metade do valor patrimonial, a rentabilidade esperada seria de IGP-M +16%aa. Se a cota por outro lado, fosse negociada a R$200,00, ou seja o dobro do valor patrimonial, a rentabilidade esperada é de IGP-M+4%aa.

  Um conselho sempre repetido em alguns espaços de internet que tratam de fundos imobiliários é nunca comprar um FII acima do seu valor patrimonial. Entretanto, isso é algo que não tem necessariamente fundamento. Por qual motivo? Os títulos de dívida balizam as suas rentabilidades não só mas principalmente pela taxa de juros que títulos do governo central pagam para investidores. Assim sendo, como no tópico sobre comparação de rentabilidade de um FII de papel com NTN-B, se o prêmio de uma NTN-B cai de 6% aa para 2%aa, é evidente que os títulos detidos pelos Fundos Imobiliários também irão se elevar,  explicação sobre o spread  num tópico mais abaixo, fazendo com que sejam negociados acima do seu valor patrimonial, sem que isso represente necessariamente algum desvio de fundamento.

V - A VANTAGEM TRIBUTÁRIA DE FII DE PAPEL E A “DESVANTAGEM” DA ADMINISTRAÇÃO DOS MESMOS. SIM, TAXAS CONTAM E MUITO

   Muito se fala da vantagem tributária de investir em Fundos Imobiliários. Esta vantagem tributária existe e é muito favorável ao investidor. Não creio que ela continuará no médio prazo, e não creio que ela faça nem mesmo sentido. Porém, já escrevi algumas vezes sobre o tópico e não vou ser repetitivo aqui. O fato objetivo é que a isenção dos rendimentos de Fundos Imobiliários para pessoas físicas, respeitadas algumas condições, é uma grande vantagem tributária.

  Em FII de Tijolo, essa vantagem é enorme. Ao invés de pagar uma potencial alíquota de 27.5% caso o rendimento de aluguel fosse recebido pelo proprietário pessoa física por meio de um contrato direito de locação, o investidor em imóveis via fundos imobiliários é simplesmente isento do pagamento de qualquer imposto de renda no recebimento de rendimentos. Uma baita vantagem.

  Em fundos de papel, a mesma vantagem existe. Entretanto, não há um grande ganho comparado com outras formas de investimento no mercado de dívida imobiliária. Tanto LCI (Letra de Crédito Imobiliário) como CRI (Certificado de Recebível Imobiliário) são isentos do pagamento de Imposto de renda no eventual rendimento acordado. Logo, aqui não há uma grande vantagem do ponto de vista tributário de ser credor de dívidas imobiliárias via fundo imobiliário.

  Porém, se compararmos com deter dívidas do governo federal, há uma clara vantagem tributária nos FII de papel.  Entretanto, há uma grande desvantagem que são as taxas de administração e performance.

  Se um FII recebe como fluxo mensal (nem que seja feito uma média do recebimento anual) de correção monetária e juros o valor de R$100,00, mas distribui apenas R$85,00, é muito provável que R$15,00 estão sendo simplesmente “comidos" por taxas administrativas e de performance, ou seja, 15%. Se um FII hipotético estiver nessa posição, isso quer dizer que a vantagem tributária de não pagar IR em relação a uma NTN-B é quase perdida com o pagamento de taxas. A perda não será idêntica, pois há no mínimo a taxa de custódia de 0,3% aa nos títulos do tesouro.

  Não há qualquer sentido em se pagar taxas tão altas para um fundo que apenas compra papel de dívida. O gestor não precisa se preocupar com manutenção de um prédio, por exemplo, ou como gerir ativamente um portfólio imobiliário. Assim sendo, quanto maior as taxas de um fundo em relação ao seu fluxo de caixa mensal, mais a atratividade tributária vai se esvaindo. Mais dinheiro para os administradores, menos dinheiro no bolso dos investidores. Logo, escolher bons fundos com taxas de administração baixas é algo essencial para que a relação risco x retorno valha a pena em Fundos Imobiliários de Papel.
  
  
Vi- QUAL É UM SPREAD ADEQUADO?

   Essa é a principal pergunta que um investidor deve ter em mente ao refletir se vale a pena ou não comprar um Fundo Imobiliário de papel. O que é spread nesse caso? É a diferença entre o prêmio de uma NTN-B com maturação médio-longa (quanto mais compatível com a maturidade da carteira do FII analisado melhor) em relação ao prêmio da carteira ponderada de um FII. Assim, se um FII tem inúmeros títulos com rentabilidade ponderada de IGP-M +8%aa e uma NTN-B35 está sendo negociada a IPCA+6%aa (lembre-se que para efeitos de simplicidade considerei o IGP-M e IPCA como equivalentes), isso quer dizer que o spread, ou seja a diferença entre um investidor colocar o seu dinheiro num título teoricamente muito seguro dentro do mercado interno e a rentabilidade esperada de um FII é de 2%aa

  Como FII possui ainda a isenção de imposto de renda nos rendimentos, a diferença líquida será maior. O quanto maior dependerá de quanto for a inflação, bem como a alíquota  de imposto de renda aplicável ao título governamental. Entretanto, se o FII tiver taxas altas em relação ao rendimento mensal, essa vantagem tributária vai se esvaindo. Aos níveis atuais de inflação, com uma alíquota de 15% sobre os rendimentos, o spread seria algo em torno de 3.5% a 4%aa nos exemplos citados, caso não houvesse nenhuma taxa nos FII ou ela fosse extremamente pequena como 0,3%aa como a taxa de custódia obrigatória no tesouro direto. Quer dizer que a vantagem tributária adiciona uns 2% aa, e isso é muito relevante. Porém, se o FII possuir altas taxas de administração, o spread tende a diminuir bastante, ficando na faixa de uns 2.5%aa.

  Esses são níveis adequados? É difícil responder. Num artigo escrito ainda em 2014 tentei refletir sobre o assunto raciocinando sobre o spread entre títulos governamentais e títulos de High Yield em mercados mais maduros (High Yield e Spread). Títulos High Yield nada mais são do que obrigações onde a probabilidade de default é maior, em alguns casos muito maior, se comparado com títulos governamentais ou privados de emissores com altas notas de crédito. Eu comparo a maioria dos títulos possuídos pelos FII brasileiros como dívida High Yield pelo perfil maior de risco. 

  O Spread histórico em mercados mais desenvolvidos orbitou em torno de 4 a 5%aa, diminuindo sensivelmente nos anos recentes de grande liquidez nos mercados financeiros mundiais.  Portanto, creio que algo em torno de 4 a 5%aa seria um piso para que a compra de FII de papel pudesse valer a pena. É algo aproximado ao que temos hoje no mercado,  contando a vantagem tributária e taxas médias de administração e performance, então parece que os fundos imobiliários numa análise geral e superficial estão razoavelmente precificados.

  Entretanto, o quanto de spread um investidor exige de prêmio é algo subjetivo. Eu, Soulsurfer, posso querer 6%aa, o que é uma margem muito grande e pode fazer com que eu nunca compre FII de papel. Algum outro investidor pode ficar satisfeito com 2.5%aa e achar que o risco está sendo satisfatoriamente remunerado. Cada investidor poderá ter uma medida diferente de como julgar esses papéis. Aqui apenas um alerta, quanto menor o spread mais sem sentido do ponto de vista financeiro vai ficando investir em títulos mais complexos e arriscados. Qual é o ponto de se comprar um FII de papel com uma carteira de dezenas de títulos com características diferentes para ganhar 0.5% ou 0.75% aa a mais do que uma NTN-B?  Portanto, sempre reflitam se os spreads estão remunerando adequadamente o risco. Quanto menor o spread, maior a chance do risco não estar sendo corretamente mensurado.

VI - RISCO TRIBUTÁRIO

   Finalizando esse breve guia sobre como comprar Fundos Imobiliários de Papel, uma pequena digressão sobre tributação. Caso uma tributação sobre rendimentos se concretize em relação a Fundos Imobiliários, nem que seja no médio prazo, a perda patrimonial é certa e garantida nos fundos imobiliários que investem em papel de dívida.

 “Mas e os FII de tijolo, Soul, também não irão sofrer?” É muito provável que sim, prezado leitor. Contudo, é difícil mensurar o quanto do risco tributário já não consta nos preços atuais das cotas. Vejam, comprar um Fundo Imobiliário que aluga dezenas de imóveis bem localizados para o Banco do Brasil por 8 anos e paga potencialmente algo em torno de 10 a 11% aa (como é o caso do fundo BBRC) será que já não embute o risco de tributação de rendimentos? Enquanto aluguéis residenciais ou pequenas salas comerciais, com risco de calote e vacância muito maiores do que um FII como o BBRC,  geram um yield de 5 a 6% bruto por ano, mesmo com uma eventual tributação dos rendimentos dos FII os yields a níveis atuais ainda são muito maiores do que imóveis físicos. Logo, é difícil precisar o que pode acontecer numa eventual tributação.

  Agora, os FII de papel serão duramente atingidos, não há escapatória, pois caso haja tributação o spread para os títulos governamentais cairia substancialmente, se ainda um determinado fundo tiver taxas altas sobre o rendimento é capaz que nem spread exista mais, fazendo com que necessariamente as cotas se desvalorizam na media da taxação para se adaptar a nova realidade. Quem investe em FII de papel deve estar bem consciente desse risco adicional.


VIi- CONCLUSÃO

  Espero que esse artigo possa ajudar eventuais pessoas que querem investir em Fundos Imobiliários de Papel. Eu, particularmente, não tenho nenhum fundo com essas características. No meu entendimento, qualquer ativo possui o potencial de ser um bom investimento. Tudo vai depender dos objetivos financeiros, da tolerância a risco e do investidor saber onde está colocando o seu dinheiro. 

  Grande Abraço a todos!

domingo, 1 de maio de 2016

FILMES - ÓDIO E AMOR: AMERICAN HISTORY X E A VIDA É BELA

Olá, colegas. Filmes. Como gosto de ver filmes. Dizem que “uma imagem vale mais do que mil palavras” e deve ser por isso que muitas vezes cito passagens de filmes em alguns artigos escritos por mim. É evidente que num livro de um escritor como Kafka, por exemplo, os dramas humanos são refletidos de maneira pungente e absolutamente magistral. Porém, quando conseguimos associar alguma ideia a uma imagem, ou a um som, ou a um gesto, não sei, parece que a mensagem fica muito mais real e nítida para nós humanos.

  Sou, como já deixei muitas vezes claro por aqui, extremamente agradecido aos meus pais. Se ao meu pai devo alguns entendimentos sobre o mundo, a minha mãe devo muito a minha formação ética. Hoje em dia consigo compreender como ela foi muito sábia em algumas atitudes da minha criação. Uma delas foi o fato da minha mãe me ensinar a jamais falar “Eu Te Odeio” ou “Eu odeio alguma coisa". Quantas vezes ela me disse isso e como isso entrou profundamente no meu ser. Eu nunca disse essas frases, nem mesmo para pessoas que quiseram me prejudicar profundamente. É simplesmente um sentimento que nutro. Talvez ela não soubesse, mas ela simplesmente estava aplicando a quarta verdade fundamental para Buda: o caminho óctuplo para a iluminação. Uma das variantes é o falar e pensar corretamente.  Quando vejo pessoas se referindo ao país em que nasceram e habitam como “Bostil”, por exemplo, apenas fico triste, pois essas pessoas não percebem que elas mesmos criam a realidade que tentam evitar.  Portanto, sou extremamente agradecido a minha mãe de desde pequeno ter extirpado o ódio do meu coração.

  O ódio é uma bagagem pesada na vida de um indivíduo. É algo que não traz absolutamente nada de positivo para a vida das pessoas. O ódio apenas faz aparecer a desunião e o sofrimento. “Mas qual é a ligação entre os dois parágrafos, Soul?”  Ontem, revi um dos grandes filmes já feitos. Aliás, há certos filmes que não me canso de assistir, é sempre um prazer poder ver novamente. O filme chama-se “American History X” (traduzido para o português como "A Outra História Americana), e é o melhor filme sobre ódio já produzido. 

Um grande filme


  Há cenas simplesmente brilhantes na película. A cena inicial é impressionante. Edward Norton conseguiu fazer uma expressão de ódio que eu poucas vezes vi uma atuação parecida. Não é à toa que ele foi indicado ao Oscar de melhor ator, e dizem que essa foi a sua melhor atuação. O filme trata da história de um jovem, irmão do E.Norton, que está se enveredando para um grupo neo-nazista. Ameaçado de expulsão do colégio, o diretor ,que é um negro, determina que ele deve escrever um artigo chamado American History X, uma reflexão sobre a vida dele e como ele veio a  pensar que o ódio poderia ser uma solução para algo na vida. No mesmo dia, seu irmão (E.Norton) é solto da prisão e o filme intercala cenas do presente com lembranças e branco e preto do passado.

  A cena da discussão de E.Norton com o namorado judeu da Mãe é fantástica. Ou quando o irmão reflete onde pode ter nascido as sementes do ódio de seu irmão E.Norton, e ele relembra o Pai falando sobre ações afirmativas, pquando a família está reunida almoçando. Enfim, as reflexões são inúmeras. É um relato forte, cru e absolutamente magistral sobre como o ódio só leva a dor e sofrimento. No meio do filme, o mesmo diretor negro pergunta a E.Norton (logo depois dele sofrer um estupro na prisão), uma das questões mais fundamentais e precisas que já vi sobre ódio “Sua vida melhorou de alguma forma com as suas ações?

Essa cena e essa expressão...

  Veja o filme. Se já viu, reveja.  Como disse anteriormente, E.Norton foi indicado ao Oscar de melhor ator, mas ele acabou perdendo para o ator italiano Roberto Benigni protagonista do belíssimo filme “A Vida é Bela”. O prêmio foi bem dado. Se num filme a temática é Ódio, na outra o tema é o Amor.

  Eu iria apenas escrever sobre o ódio, mas depois de saber dessa curiosidade sobre o Oscar de melhor Ator, achei muito interessante a coincidência. O filme italiano é muito bom. Daqueles que você se sente bem e feliz depois de assistir, apesar do final ser triste. A mensagem de como o amor pode ser mais forte do que o mais inveterado ódio é muito forte e uma pena que cause pouca ressonância nos dias de hoje.

Que filme maravilhoso!

  Não há nada mais forte do que o Amor. É apenas por ele que creio ser possível a construção de uma vida mais equilibrada, seja a nível individual ou a nível coletivo. Acho extremamente triste a frase tão repetida de que devemos nos preocupar apenas conosco e com a nossa família mais próxima. Quem pensa e age assim não sabe o quanto de vida se perde com esse tipo de atitude e quão mais pequena fica a nossa própria vida.

  Amor e ódio. Ódio e amor. Se quer refletir sobre esses dois temas, centrais para o caminho de uma vida feliz e plena, assista aos dois filmes, um seguido do outro de preferência.


  Um grande abraço a todos!