Você
consegue se imaginar como um bebê, prezado leitor? Melhor ainda, será que você
acha possível imaginar aquela pessoa mal-humorada numa fila de supermercado
como um bebezinho de quatro meses descobrindo que é possível fazer sons com a
boca? Não consegue pensar? Consegue? Nunca pensou nisso? Essa reflexão é uma
perda de tempo?
Quem
se torna Pai, ou Mãe, e tem a possibilidade de passar bastante tempo com o bebê
é transportado para “outra realidade” de vida.
Há uma expressão em língua inglesa que se chama “take for granted”. A
tradução é alguma coisa como achar que algo existe ou deve existir sem se refletir
que esse algo poderia não existir.
Eletricidade, por exemplo. Qual leitor do meu blog não acredita que
Eletricidade é algo que existe, algo que deve existir, e a própria inexistência
de eletricidade é um cenário inimaginável? Porém, para cerca de um bilhão (com B de bola) de seres humanos como eu,
ou você prezado leitor, o acesso à eletricidade é algo inexistente ou escasso. Logo, a eletricidade que nós “take for
granted” é algo que inexiste na vida de uma infinidade de pessoas.
A
lista é grande de coisas que não percebemos quão valiosas são por acreditarmos
que elas existem como o ar: saúde, relações familiares saudáveis, relações
comunitárias coesas, ar limpo, ausência de guerra e destruição do tecido
social, fome, etc, etc. Quanto mais evoluímos na satisfação de necessidades
básicas materiais, e quanto mais deixamos os piores aspectos da natureza humana
controlados em sociedades com marcos institucionais mais estáveis, temos a
tendência de esquecer a beleza de certos fatos e a fragilidade de certos
arranjos e estados de coisas.
Em
minha experiência pessoal, e na minha jornada nesse planeta, eu cada vez mais percebo que um dos caminhos para um maior bem-estar, e por via de conseqüência
uma maior empatia para com outros seres humanos e até outros seres vivos, é a reflexão , e a gratidão que advém desse ato, de ser feliz e agradecido
simplesmente por ter saúde, não viver num campo de refugiados, ter tido uma
infância feliz, possuir alguns bons amigos, morar num bairro onde as pessoas se
cumprimentam na rua, etc, etc. Ou seja, é ser conscientemente agradecido por uma série de coisas que no dia a dia nós "take for granted".
Essa
reflexão, com o nascimento da minha filha, foi levada a um passo ainda maior.
Um bebê de seis meses, a idade da minha filha, mal consegue ficar sentado, não
engatinha, tem como única forma de comunicação choro e alguns gritos e precisa
de vigilância quase que 24 horas por dia.
Talvez não seja estranho para outros pais de recém-nascidos, mas quando
eu toco no corpo da minha companheira me vem uma sensação de “nossa, como o seu corpo e rosto são enormes”. Eu muitas vezes me pego olhando para pessoas
na rua andando, falando, olhando um celular, discutindo, trabalhando e penso que todos esses seres humanos já foram obrigatoriamente bebezinhos como a minha
filha que não eram capaz de realizar nenhum dos atos que consideramos triviais
como andar e falar.
Todos,
sem exceção. O Bolsonaro já foi um dia um bebê. Lula também por mais difícil
que se possa imaginá-lo como um bebê. Um estuprador também um dia já foi uma
criança, assim como o Bill Gates ou o Warren Buffett. Todos já foram um bebê
indefeso e completamente dependente de um adulto. Todos tiveram que aprender a
comer uma fruta, a andar, a se comunicar com outra pessoa, a amar, a detestar,
ou seja, a se tornar um ser humano funcional.
Esse
tipo de pensamento me torna uma pessoa ainda mais tolerante. Quando alguma
situação me estressa, agora me pego pensando que aquela pessoa que na minha
visão está interferindo negativamente na minha experiência presente já foi um
adorável bebê. É impressionante. Quando isso ocorre, qualquer sensação de raiva
ou ira se esvai quase que instantaneamente.
Às vezes o efeito é tão forte que eu até me solidarizo com a pessoa, e
tento, nem que de uma maneira interna, me conectar de forma empática. Afinal, o que será que aquela criança não
passou? Será que ela teve a oportunidade de ser amada com tanta intensidade
como a minha filha o é? Quantas sombras será que não foram criadas nesse agora
adulto por causa de hábitos ou atos de seus cuidadores?
Eu
não tenho a menor dúvida (aliás, dúvidas sempre devemos ter, melhor dizendo acredito
ser uma boa explicação) de que as frustrações, ansiedades, neuroses,
animosidades, que vemos no nosso dia a dia e em nós mesmos nada mais são do que
sombras gestadas em nossos primeiros anos de vida. Há uma autora que se especializou apenas nesse
tema e chama-se Laura Gutman. Qualquer mulher grávida (e alguns pais, mas
poucos) mais atenta e curiosa já ouviu falar do livro “A Maternidade e o encontro com a Própria Sombra”.
Qual
não foi a minha surpresa ao escutar um dos últimos podcasts do Joe Rogan ao
ouvir dele que a sua maturidade e transformação num ser humano mais tolerante com os outros, ao menos uma parte
significativa dela, veio de fazer o exercício de imaginar as pessoas como
crianças pequenas (algo que ele começou a fazer depois de ser Pai). Talvez
poucos conheçam o Joe Rogan aqui no Brasil, mas o podcast dele talvez seja o
maior do mundo. A audiência dele muitas vezes equivale a programas de televisão
das maiores emissoras americanas.
Joe
Rogan é um comediante e comentador de lutas marciais que iniciou um podcast há
alguns anos. Hoje em dia, ele é uma referência. Suas entrevistas duram algo em
torno de 2 a 4 horas. É um cenário simples, uma mesa e ele fazendo perguntas. É
um bate papo. Você não leu errado, muitos podcasts tem três horas e meia até
quatro horas de duração. Ele entrevista todos os tipos de pessoas, de todos os
vieses políticos e ideológicos, neurocientistas, filósofos, etc. O que tem de fantástico nesse formato é que ele realmente é curioso em saber o que a pessoa pensa independente do seu próprio posicionamento sobre um determinado assunto. Ele gosta de caçar, por exemplo, mas se ele entrevistar alguém que abomina a caça de animais ele com certeza tentará da melhor maneira possível representar com fidelidade o pensamento do entrevistado. E isso é uma maravilha.
No
Podcast número 1295 ele entrevistou a candidata à indicação democrata para a
Presidência dos EUA Tulsi Gabbard. A entrevista foi ótima, e a candidata ,que eu
não conhecia, foi uma grata surpresa positiva.
Mais ou menos com uma hora e dez minutos de entrevista, o Joe Rogan fala
sobre essa questão de imaginar as pessoas como bebês ao contar o que ele sentiu
ao observar uma senhora absorta nessas máquinas de roleta num cassino nos EUA.
Eu já vi essa cena algumas vezes quando estive em cassinos, e ela realmente é
deprimente. Porém, ao reformular a
imagem, e imaginar aquela senhora como um bebê, o pensamento que veio a cabeça
dele foi algo como “o que será que aconteceu na
vida dela para ir de um bebê cheio de potencialidades para uma senhora
solitária jogando um jogo sem sentido de maneira irrefletida?”.
Isso
não é pouca coisa, isso é muita coisa.
Os pais possuem uma responsabilidade enorme, não em fazer com que os seus
filhos consigam estudar em faculdades de prestígio ou estejam preparados para
ganhar dinheiro, mas em proporcioná-los uma primeira infância repleta de amor,
carinho e empatia, para que possam se transformar em adultos sem sombras tão
profundas. A nós adultos machucados em
maior ou menor grau talvez caiba olharmos uns aos outros com mais empatia, reconhecendo
a criança inocente e curiosa que algum dia habitou o corpo agora adulto.
Isso
quer dizer que estupradores não devem ser punidos ou ter os seus atos
reprovados? Não, evidentemente que não. Isso significa que não podemos ficar
genuinamente insatisfeitos com o comportamento agressivo ou inconveniente de
outros seres humanos? Não, evidentemente que não. Apenas significa que cada um
de nós pode, e o mais importante tem a possibilidade de controle, olhar para as
imperfeições alheias de forma muito mais suave e empática, e isso, prezados
leitores, é um alívio tremendo em nossas vidas.
Quem tiver interesse e compreende razoavelmente bem o inglês falado esse é o pedcast mencionado.
Um
grande abraço a todos!
Em filas, locais públicos ou até no trabalho, quando uma pessoa está mais alterada, procurando discussões, eu procuro falar e um tom baixo e depois perguntar como a pessoa está se sentindo, olhando bem nos olhos dela. Acredite, muda tudo. Pessoas insuportáveis voltam a ser bebês e às vezes elas começam a desabafar. Claro que há quem tenha o "sangue ruim" por natureza, mas, situações de stress, como as da contemporaneidade, deixam qualquer um triste.
ResponderExcluirEu não tenho essa aversão ao ser humano. Muita gente diz que deveriam ser extintos, como se eles não fossem humanos também. Precisamos sempre de ajuda e de empatia.
Olá, colega.
ExcluirClaro, a pessoa mais mal humorada, agitada, está ansiando por uma atenção genuína. Já escrevi um artigo sobre uma experiência minha com uma motorista atormentada numa viagem de blabacar.
Olhar diretamente nos olhos e perguntar como a pessoa se sente é se conectar com a mesma, algo que pessoas passam meses e meses, às vezes anos sem exercitar.
Um abraço!
Excelente exercício de empatia, Soul!
ResponderExcluirInteressante o timing do seu artigo.
Tenho um garoto de 11 anos e compartilho muitas de suas impressões.
Estou na fase final de um dificílimo mestrado e tenho me cobrado muito com relação às minhas obrigações com ele nesses primeiros anos de vida.
Ao menos para mim, há um trade-off entre buscar melhorias nos apectos mais "mundanos" (carreira, dinheiro) e esse foco total na construção dos laços na primeira infância.
Moro bem perto do trabalho e até que consigo passar muitas horas com ele, mas o estado constante de estafa mental me faz pensar se estou conseguindo oferecer o meu máximo.
Achei curioso o texto porque pensei exatamente nisso essa semana, vendo ele pegar no sono: "pensar que um dia eu já fui deitar sereno como ele está agora, sem nenhum peso na cabeça...".
Minha esposa é uma mãe incrível e tem a oportunidade de ficar com ele o tempo todo... embora isso pese bastante nas minhas costas, acho que no futuro valerá a pena.
Um abraço!
Errata:
Excluir11 meses, não 11 anos
Olá, colega! Grato pela mensagem, bom saber que há outras pessoas por aí compartilhando alguns sentimentos bacanas em comum.
ExcluirA estafa mental é um problema mesmo. Não adianta, não conseguimos dar o melhor de si se estamos extremamente cansados, ainda mais para uma criança tão pequena que demanda tanto.
Tente achar algum "escape" nessa sua rotina, nem que seja algumas horas na semana onde você esteja completamente descansado e possa estar 100% energizado para estar com o seu filho.
Um abraço!
Empatia para mim é difícil com alguns tipos.
ResponderExcluirLadrões e criminosos em geral, não quero nem saber pelo que passaram, quanto mais ter empatia com eles.
Me sinto até muito bem em ver eles se ferrando naqueles vídeos de assaltos que dão errado, meu dia fica até mais feliz.
Olá, colega.
ExcluirHá muitos anos vi um padre numa entrevista na rede viva que falou uma das coisas mais maravilhosas que já escutei.
Ele trabalhava com adolescentes difíceis, muitos deles já envolvidos com drogas, crimes, brigas, ou seja jovens difíceis.
O entrevistador então perguntou por qual motivo ele trabalhava com esse tipo de jovem?
Ele então respondeu, resgatando os ensinamentos religiosos do próprio Jesus Cristo, que os jovens que estudam, não brigam, são respeitosos, esses todos querem conviver, mas os jovens com dificuldade estes são os que realmente precisam de ajudam.
Minha resposta a seu comentário sobre a empatia seria na linha da resposta do padre.
Amigo, tome cuidado, esses vídeos são deprimentes, e acho, sem nenhuma ofensa, manifestação de psicopatia se divertir com o sofrimento alheio, de quem quer que seja.
Um abraço!
Muito interessante a reflexão. Quantas coisas que tomamos por granted mas que existem milhões de pessoas fazendo acontecer !
ResponderExcluirOlá, colega.
ExcluirGrato pelo comentário.
Abs!
Eu faço um exercício mental parecido: quando alguém é muito escroto comigo, eu respiro fundo e mentalmente lembro que essa pessoa um dia vai morrer como eu também vou um dia, lembro dos momentos finais que assisti de parentes, lembro da minha mãe morrendo e visualizo a pessoa arrogante na mesma situação difícil assim como me vejo passando pelo mesmo, assim minha raiva ou princípio de reagir com grosseria se dissipa com o sentimento de igualdade e união e uma compaixão estranha pela pessoa floresce em algum lugar da minha mente .
ResponderExcluirOlá, Gerson.
ExcluirUm exercício interessante que vai mais para a linha da nossa finitude na terra, e como o simples ato de pensar nisso faz com que os aborrecimentos do dia a dia se tornem quase sem importância.
Se faz bem para você e é a forma que você encontrou de lidar com o stress diário, maravilha.
Um abraço!
Muito interessante a sua observação sobre como sua percepção do tamanho do rosto/corpo da sua companheira mudou (temporariamente, claro) com o nascimento da sua filha..."quando eu toco no corpo da minha companheira me vem uma sensação de “nossa, como o seu corpo e rosto são enormes”."... Eu tive a mesmíssima sensação após o nascimento da minha, mas nunca tinha comentado com ninguém... Sabe aquela coisa que vc acha que ninguém vai se importar?!rsrs...
ResponderExcluirOutra coisa interessante é que há muito tempo eu tb já usei esse nick "soul surfer", no há muito tempo falecido ICQ, mas diferente de vc que já surfou de verdade em altos picos eu, até então, sou apenas um surfista de espírito mesmo rs... Quem sabe um dia eu aprenda de verdade esse maravilhoso esporte :D
Abraços.
Olá Soul Surfer! Parabéns pelo excelente trabalho. Venho acompanhando a um tempo seu site e tenho aprendido bastante. Gostaria de saber se você pode divulgar meu site aqui no seu blog.
ResponderExcluirMeu site é voltado para Dividendos no Exterior. Invisto 100% no Mercado Americano e decidi criar um site para divulgar minha trajetória e meus conhecimentos.
O endereço do site é : https://www.ivonoe.com
Fico no aguardo de uma resposta, para incluí-lo em meu site também. Obrigado!
Opa, amigo. Interessante a proposta do seu blog. Vou dar uma passada lá, um abraço.
ExcluirAmigo, não entendi muita coisa da sua mensagem.
ResponderExcluirUm abs!