Olá,
colegas. Como já dito algumas vezes, há cerca de um ano o meu interesse por
otimizar a minha saúde aumentou sensivelmente. Desde então dedico tempo e estudo a esse
apaixonante tópico com aplicação direta em minha vida. A questão me fascina intelectualmente tanto que já pensei em
fazer medicina, química, biologia, tudo para entender de forma mais técnica
como os sistemas vivos funcionam de forma mais otimizada.
Os
dois artigos que mais gostei de escrever nesses cinco anos de blog foram um sobre a radiação cósmica de fundo e um sobre o metabolismo da glicose Como as duas áreas, especialmente
astrofísica, sou leigo, fiquei bem feliz que consegui produzir textos
razoavelmente bem escritos e tecnicamente corretos. Sobre o metabolismo da
glicose inclusive recebi alguns e-mails de médicos me elogiando a forma como o
assunto foi exposto. Eu creio que há valor em leigos numa área escreverem para
outros leigos sobre um determinado assunto, pois é muito provável que o texto
aborde questões que muitos profissionais talvez não se atentem e que são de
extrema valia para alguém que pouco domina a área. É evidente que o texto escrito precisa ser bem formulado e
tecnicamente não possuir falhas gritantes.
Falo
tudo isso, pois sempre estou recebendo mensagens sobre o que penso de dietas,
exercícios, etc. Vejo cada vez mais
pessoas também falando de dietas baixas em carboidratos, dietas cetogênicas,
etc, o que não deixa de ser interessante. Porém, também é visível que muitos
não fazem a mínima noção sobre o que falam, pois não compreendem os fundamentos
básicos. Os fundamentos de qualquer
coisa são o alicerce para que se possa ter uma visão mais acurada sobre algum
fenômeno no mundo. Infelizmente, hoje em dia é muito normal pessoas repetirem
textos de outras pessoas, às vezes são textos até complexos, mas sem qualquer
capacidade crítica para saber se o que falam faz sentido ou não.
Sendo
assim, se a minha rotina permitir e o meu ânimo assim quiser, gostaria de
escrever mais sobre o tópico otimização de saúde. Irei iniciar com o básico do básico de como “ler”
evidência científica médica, um tópico que até mesmo alguns médicos mostram certa
dificuldade. Aliás, isso pode ser extrapolado para diversas outras áreas,
especialmente estudos que mostram estatísticas sociais e os usos equivocados
que muitas pessoas fazem dos resultados de determinados estudos.
CORRELAÇÃO X CAUSALIDADE
A
principal confusão, e ela está presente em quase absolutamente qualquer discussão
sobre nutrição, por exemplo, refere-se a confusão entre o que é uma correlação
e o que pode vir a ser uma relação causal. Não vou aqui entrar em argumentos mais
abstratos sobre o que é causalidade, mas me ater ao senso comum que um efeito é
precedido de uma ou mais causas. Se eu jogo um copo na parede essa é a causa
dele ter quebrado.
Já a
associação, e aqui a conceituação não é tão clara para muitos, é quando dois
fenômenos ocorrem em associação. Seria algo como, por exemplo: “Toda vez que o
aumento de consumo de sorvetes aumenta na Califórnia cresce o número de ataques
de turbarão” ou “pessoas que comem carne vermelha possuem uma chance aumentada
de desenvolver câncer de cólon” (essa última repetida ad nauseiam por inúmeros
profissionais de saúde). No primeiro
exemplo quando o fenômeno aumento do consumo de sorvetes ocorre o fenômeno
aumento do número de ataques de tubarão também aumenta. No segundo, quando o fenômeno aumento do
consumo de carne vermelha aumenta o fenômeno aumento da incidência de câncer de
cólon também aumenta.
Imagino
que ninguém imagine que o aumento do consumo de sorvetes causa o aumento da
chance de sofrer um ataque de tubarão. Quase todo mundo riria desse
apontamento. Porém, muitos profissionais de saúde, citam explicitamente (e falo
aqui de diretrizes oficiais de órgãos oficiais de medicina) como se fosse uma
verdade científica que o consumo de carne vermelha cause o aumento da
incidência do câncer de cólon. Aliás, talvez uma boa parte dos leitores por ler
matérias nesse sentido ache que isso seja o que a evidência científica diz.
Será que não devemos tomar sorvete se quisermos diminuir a chance de ataque de tubarões?
Colegas,
os dois exemplos acima são rigorosamente os mesmos, são apenas duas
associações, e elas não podem comprovar causalidade. Uma associação de um aumento do consumo de
sorvete com o aumento do ataque de tubarões não prova que há uma causalidade
entre esses dois efeitos, da mesma maneira que o exemplo de consumo de carne
vermelha associado ao aumento do número de casos de câncer de intestino não prova a causalidade (há exceções para quando uma correlação pode ter um efeito de
causalidade que será abordado no fim desse artigo).
Isso
quer dizer que carne vermelha não causa um aumento do risco de câncer no
intestino? Não, aliás, essa é uma hipótese que pode estar correta. O que não se
pode dizer é com base numa mera associação entre o aumento do consumo de carne
e o aumento da incidência de câncer de intestino que haja necessariamente uma
relação de causa e efeito.
E por
que não? Pela simples provável existência de variáveis ocultas. O que seria isso? Voltemos ao caso do aumento
do consumo de sorvete e aumento do número de ataques de tubarões. Por que essa
associação existe? Não precisaria mais de cinco minutos para imaginar que
sorvetes são consumidos quando o clima está mais quente. Se as pessoas consomem
mais sorvete é muito provável que a temperatura esteja mais alta. Quando a
temperatura está mais alta, e sendo a Califórnia um lugar com praias,
as pessoas têm mais propensão em nadar no mar. Quando as pessoas nadam mais no
mar é mais provável que elas possam sofrer ataque de um tubarão, pois é difícil
imaginar um tubarão atacando alguém na rua.
Logo, a maior probabilidade das pessoas tomarem
banho de mar é a variável oculta que explica a associação entre o aumento da
quantidade de sorvete consumida e o aumento do número de ataques de tubarão.
Pode ter certeza se fizessem um experimento no inverno Californiano com pessoas
tomando mais sorvete, a associação iria desaparecer. A palavra chave aqui é
experimento.
O
exemplo do sorvete é “bobinho”, mas nos ajuda a aguçar o nosso
cérebro que não evoluiu para ter pensamentos estatísticos tão refinados. Se alguém quisesse testar a hipótese “aumento
do consumo de sorvete causa aumento do
número de ataques de tubarão” um experimento deveria ser
feito. E como este experimento deveria
ser feito? Um grupo grande de pessoas da Califórnia deveria ser escolhido. Dois
grupos deveriam ser formados de forma aleatória. Num grupo, chamado
controle, nada deveria ser feito. Num outro grupo, chamado de braço
experimental, deveria ser fornecido sorvetes. Depois de algum prazo
especificado (meses ou anos) deveria se analisar se as pessoas no grupo
experimental tiveram, com grau de significância estatística, mais ataques de
tubarões ou não. Se a resposta for negativa,
a hipótese “aumento do consumo de sorvete causa aumento do número de ataques de tubarão na Califórnia”
deveria ser considerada falsa. Isso é como a ciência deveria ser feita amigos.
A explicação
Por
qual motivo o grupo deve ser grande? Quanto maior o número de pessoas, menor a
chance de haver alguma flutuação estatística aleatória. Por que as pessoas
devem ser aleatoriamente dividas em grupos? Porque isso evita que um
determinado grupo seja escolhido e apresente alguma variável oculta. Como
assim? Imagine que as pessoas que tomam mais sorvete tenham por algum motivo
uma tendência maior de nadar no mar (que seria a variável oculta). Se isso
fosse o caso, se o estudo fosse feito apenas separando o grupo de pessoas que
tomam mais sorvete das que tomam menos sorvete não seria possível dizer se o
aumento do consumo de sorvete causa ou não aumento no número de ataque de
tubarões. É por isso que a divisão entre os dois grupos deve ser aleatória,
para que não haja o que os especialistas chamam viés de seleção.
Voltemos
agora ao exemplo da carne e aumento de câncer. Foi feito algum estudo
experimental onde se forneceu mais carne a um determinado grupo de pessoas por
alguns anos, e pouca ou nenhuma carne para outro grupo aleatoriamente
designado, e se mediu a diferença
estatisticamente relevante, ou não, entre aumento ou diminuição na incidência
do câncer de intestino? Não, colegas, não foi feito um estudo como esse. E como
se pode dizer que carne vermelha causa câncer de cólon? De onde veio isso?
Em
nutrição, a esmagadora maioria dos estudos é feito por base tendo questionários
alimentícios. Pergunta-se a um grupo de pessoas sobre os hábitos alimentares. Depois de um determinado prazo, verifica-se o
que aconteceu com as pessoas que comeram mais brócolis e menos ovo, ou mais ovo
e mais alface, etc, etc. Esses questionários geralmente são confusos, extensos,
e aplicados às vezes com um grande lapso temporal entre um e outro. É uma forma
no mínimo capenga de se colher dados. Porém, mesmo que os questionários fossem
excelentes, esse tipo de estudo só poderia apontar hipóteses e associações,
jamais causalidade.
E por
que não? Pelo simples motivo que pode haver dezenas de variáveis ocultas. Como
assim? Imagine que pessoas que comam mais carne vermelha num determinado estudo
tiveram mais câncer do intestino do que vegetarianos nesse mesmo estudo, por
exemplo. O máximo que se poderia dizer é que a hipótese de que carne vermelha
pode ter um papel causal no aumento da incidência de câncer de intestino é uma
hipótese que deveria ser considerada num experimento, num ensaio clinico randomizado.
Será
que os comedores de carne fazem alguma coisa diferente dos vegetarianos além de
comer carne? Sim, leitores, eles
fazem. Pessoas que comem mais carne
tendem a fumar mais, se exercitar menos, irem menos ao médico, e se acidentar
mais de carro. Sim, num estudo foi achada uma associação estatística entre pessoas
que comiam mais carne vermelha e acidentes de carro. Ora, não parece ser crível
que o consumo de carne vermelha cause uma maior chance de um acidente de carro,
muito provavelmente o consumo de carne vermelha seja apenas um marcador de um
comportamento menos regrado.
Pensem, leitores, durante décadas a carne vermelha
e a gordura foram tidas como vilões da saúde, ao contrário do consumo de
vegetais. Ora, pessoas que mesmo com essa informação consumiam mais carne
vermelha, muito provavelmente sejam pessoas que não se importam muito com sua
saúde em inúmeros aspectos, um deles é dirigir de forma menos
conservadora. É possível também que o
vegetariano além de não comer carne, também não fume, pratique esportes e vá
com regularidade ao médico. Ora, é
evidente que há muito mais diferenças, a nível populacional, entre alguém que come
carne e alguém que não come. O número de variáveis ocultas pode ser enorme. Sendo assim, será que é o consumo de carne que causa mais câncer de intestino ou a falta de exercício? Ou será o cigarro? Ou será alguma outra coisa?
Apenas
um experimento onde um número razoável de pessoas fossem divididas de maneira
aleatória para dois grupos, um com consumo aumentado de carne vermelha e outro com
consumo diminuído de carne, e depois de vários anos medir a diferença no número
de casos de câncer para saber se a hipótese “o aumento do consumo de carne
vermelha causa câncer de cólon” faz sentido ou não. Por qual motivo?
Porque associações não provam necessariamente causalidade, elas apenas levantam
hipóteses a ser testadas em ensaios clínicos.
Será que adicionar carne processada como o Bacon causa o aumento do risco de câncer no intestino? Esse cartaz está dizendo sim, e ao fazer isso não está analisando corretamente a evidência científica. A palavra (increased - aumentou) induz causalidade, o que não é de nenhuma maneira correto. O que deveria ser dito é que o consumo de 50g por dia de carne processada está associado com um aumento de 18% nos casos de câncer de cólon (e 18% não são 18% como a maioria das pessoas pode presumir, é muito menos do que isso, como um artigo meu sobre risco absoluto x risco relativo irá abordar no futuro)
Há uma
exceção, porém. Quando o nível de associação é tão grande, que fica muito
difícil que não haja uma relação de causalidade. O caso típico é o consumo de
cigarro e o aumento dos casos de câncer de pulmão. Não foi feito nenhum estudo
clínico com grupos aleatórios onde um grupo foi dado cigarros a o outro não.
Nenhum experimento desse foi feito, pois obviamente seria antiético. Porém, as associações entre consumo de
cigarro e aumento dos casos de câncer eram enormes. O risco de alguém que
fumava ter um câncer de pulmão era aumentando não em 20 ou 30%, mas em
2000% em alguns estudos. Ou seja, o aumento era tão grande que nesse caso é possível inferir causalidade entre duas variáveis
associadas. Se alguém quiser se
aprofundar um pouco, recomendo a leitura do conceito de critérios de Hill em
homenagem ao brilhante epidemiologista Bradford Hill.
Há uma regra "não escrita" que associações com riscos "odds ratios" (razões de probabilidade) menor do que 2 (ou seja 100%) não possuem grande relevância e são indistinguíveis de chance, ou muito provavelmente há variáveis ocultas não mensuradas. Alguém sabe o que os estudos de associação mostravam sobre risco aumentado de consumo de carne vermelha e câncer de cólon? Aqui um quadro retirado de uma meta-análise de uma meta-análise (uma meta-análise é um estudo que reúne diversos outros estudos) do ano de 2015:
Table 1.
Author, year published | Meta-analysis center/country | Number and type of studies for red meat | RR for red meat (95% CI)* | RR for processed meat (95% CI)* |
---|---|---|---|---|
Sandhu et al., 2001 | UK | 13 cohort | 1.17 (1.05-1.31) | 1.49 (1.22-1.81) |
Norat et al., 2002 | IARC, France | 14 case-control and 9 cohort | 1.35 (1.21-1.51) | 1.31 (1.13-1.51) |
Larsson and Wolk, 2006 | Karolinska Inst., Sweden | 15 (13 cohort and 2 case-control) | 1.28 (1.15-1.42) | 1.20 (1.11-1.31) |
Huxley et al., 2009 | Australia and Iran | 26 cohort | 1.21 (1.13-1.29) | 1.19 (1.12-1.27) |
Smolinska and Paluszkiewicz, 2009 | Poland | 22 (12 case-control and 10 cohort) | 1.21 (1.07-1.37)** | NA |
Bastide et al., 2011 | France | 5 cohort | 1.18 (1.06-1.32)** | NA |
Alexander et al., 2011 and 2015 | USA, Mexico | 27 cohort | 1.11 (1.03-1.19) | NA |
Chan et al., 2011 | UK and Netherlands | 24 (2 case-cohort, 3 nested case-control and 19 cohort) | 1.22 (1.11-1.34) | 1.17 (1.09-1.25) |
Johnson et al., 2013 | USA | 14 (8 case-control and 6 cohort) | 1.13 (1.09-1.16)*** | 1.09 (0.93-1.25)*** |
Bernstein et al., 2015 | USA, China, Vietnam | 2 cohort | 1.06 (0.97-1.16)**** | 1.15 (1.01-1.32)**** |
RR, relative risk; CI, confidence interval; NA, not available.
*Highest versus lovest intake
**only for colon cancer, not for rectum
***5 versus 0 servings/week
****multivariable-adjusted hazard ratio.
Para entender essa tabela, no lado esquerdo é o estudo, depois onde foi feito, e o número de estudos que a meta-análise analisou, e o aumento ou não do risco relativo de se desenvolver câncer de cólon. Pode-se ver que o risco foi aumentado entre 5% a 30%, o que dá um relative risk de 1.05 a 1.3. Em alguns estudos, o consumo de carne processada teve um risco menor do que o consumo de carne sem ser processada, o que não faz muito sentido. Ou seja, parece quase que evidente que há variáveis de confusão nesses estudos, tendo em vista o odds ratio desses estudos. Para fins de comparação olha a diferença entre a associação de consumo de cigarro e câncer de pulmão:
Ou seja, nesse estudo específico, o risco foi absurdamente aumentado pelo fato de se fumar, mais de 800%. Compare com os 5 a 30% do consumo de carne.
Pode ser difícil entender, pode ser minucioso. Porém, se a pessoa não entende isso ela está fadada a ficar repetindo o que outros dizem, mesmo que sejam autoridades de saúde, sem ter qualquer senso crítico para analisar a informação, e em última análise tomar decisões conscientes sobre a própria saúde. Se no campo de saúde é assim, eu não vou nem falar de estudos de associação que fazem em sociologia ou economia. Aprenda a analisar evidência científica médica, e garanto que a sua habilidade de compreender muitos outros estudos de várias áreas crescerá exponencialmente ao ponto de você ver baboseiras sendo faladas em todos os cantos sobre diversos assuntos.
Por enquanto, para não ficar muito longo o artigo, é isso. Um abraço!