Olá, colegas. Um leitor no meu último artigo sobre externalidades perguntou-me qual seria a minha opinião sobre o ataque americano na Síria, o conflito em si, a posição da Rússia, etc. Eu creio que atualmente muitas pessoas se sentem “capacitadas" para darem opiniões sobre muitas coisas diferentes.
Ao contrário do que afirmam alguns pensadores, eu necessariamente não vejo nenhum problema nisso. Se alguém que nunca colocou o pé seja na Rússia, Irã, Oriente Médio e Turquia mesmo assim se sente confortável para falar sobre as complexas interações que ocorrem naquela parte do mundo, que seja. O problema, em minha opinião, surge quando se crê que a própria visão é sofisticada, ou pior quando não se admite posicionamentos em contrário. Isso é loucura, ou talvez simples, diríamos, falta de inteligência.
Boa parte das pessoas, com a revolução tecnológica, tem acesso hoje em dia a informação quase que em tempo real sobre acontecimentos nacionais e internacionais. Nada mais natural que se formem opiniões. Ora, eu tenho as minhas e escrevo sobre uma grande gama de assuntos, e sou sabedor que estou muito longe de ter um conhecimento aprofundado sobre a maioria deles. Porém, sempre tento expressar minhas opiniões sobre uma ótica não-excludente (de outras opiniões em sentido contrário) e sem que ela tenha um ar de autoridade suprema (no sentido de saber que posso estar simplesmente equivocado).
Partindo da digressão feita nos parágrafos iniciais, deixo claro que o meu conhecimento sobre tudo o que ocorre no conflito sírio é superficial, baseado em relatos de terceiros, e talvez sem os necessários filtros para definir o que possui indícios de verdade, e o que é pura fantasia. Logo, se você procura certezas, não as encontrará nesse texto, e fica ao seu critério a continuidade da leitura.
A primeira coisa que se tem que saber sobre a guerra da Síria é que ela é complexa. Ponto. O que quero dizer com complexa? Refiro-me as diversas partes do conflito. Não é uma guerra de um exército A contra um exército B num campo de batalha bem definido. Não, colegas, está bem longe disso. É uma mistura de grupos étnicos, religiosos, potências regionais, potências internacionais e interesses dos mais variados.
Seguem duas imagens, a primeira retirada de uma reportagem da Al Jazeera sobre um mapa da Síria e quem controla o quê e a outra da página da Wikipedia sobre as partes no conflito.
É bom salientar que a Síria é um país relativamente pequeno. Não se trata de um país de tamanho médio como o Irã ou grande como um Brasil. Logo, a presença de tantos conflitos numa região tão pequena demonstra quão confusa é a situação.
Isso parece mais um conflito mundial do que um conflito restrito a um pequeno país no Oriente Médio.
Talvez, você leitor já soubesse das diversas partes em conflito, talvez não fizesse a menor ideia. Eu sabia que existiam vários interesses, mas fiquei muito surpreendido ao ver que há um grupo Uyghur lutando contra o governo, o Turkistan Islamic Party.
Para quem não sabe, e creio que a esmagadora maioria até mesmo de comentadores não devem saber, os Uyghur são um povo de língua assemelhada ao turco que aos poucos foram sendo expulsos da Mongólia por tribos mongóis e se estabeleceram prioritariamente no que hoje é a enorme província, riquíssima em recursos naturais, de Xinjiang no oeste da China há mais de mil anos.
É um povo que sofre uma opressão muito dura do governo Chinês. Quando estive na província em questão, um dos lugares mais bonitos do mundo, não era anormal eu passar por 5 a 6 controles militares apenas para entrar numa estação de trem. Numa viagem que fiz no meio do famoso deserto de Taklamakan (o deserto do qual Kubai Klan pergunta a Marco Polo como ele seria no primeiro episódio da série), eu desci do ônibus no mínimo umas 7 vezes para ter o meu passaporte conferido.
A província mais explosiva na China é Xinjiang, e quase ninguém sabe que existe. O Tibet ficou com toda a fama. Não é incomum conflitos com centenas de pessoas mortas, e se não me engano em 2008, foram milhares de mortos. Até hoje não sei porque essa província estava aberta para estrangeiros, e fico muito feliz que ela estava, pois tive grandes experiências culturais, humanas e naturais nessa região do mundo. Fomos tratados muito bem pelos Uyghur que eventualmente cruzamos pelo caminho.
Vindo da Província de Gansu (ao leste) entrei na província de Xinjiang pela capital Urumqui. Há aspectos culturais Uyghur na capital, mas houve um processo bem grande de ``hanificação``. Agora, Kasghar, e eu fiz tudo por terra parando em lugares incríveis pelo caminho, é a capital cultural dos Uyghur. É uma cidade incrível, com belezas naturais a poucas horas ainda mais incríveis. Poucas pessoas sabem, mas esta é uma das áreas mais ricas em recursos naturais da China, e a província mais rebelde de todas.
Chamou-me a minha atenção também a existência de um “Exército de Monoteístas” que lutam junto com o governo de Assad. Ao ler um pouco mais, vi que era uma força de drusos. Não sei muito sobre os drusos, para ser sincero, nunca tive a oportunidade de conhecer um druso. O pouco que sei é que os drusos professam uma religião monoteísta (talvez daí o nome do grupo) com influências islâmicas, judaicas, cristãs e até mesmo de pensadores gregos clássicos. Eles possuem um símbolo muito bonito de cinco cores, cada uma representando um elemento de sua crença. Lembro de ter visto um filme há muitos anos sobre um casamento druso, com o pano de fundo do conflito Israel-Palestina, e lembro que foi muito interessante.
Este filme é bem interessante, vou procurar revê-lo.
Achei tão bonita a bandeira dos Druzos que resolvi colocar aqui. Cada cor possui um significado da crença druza. O Branco, por exemplo, representa o futuro, o azul a causa precedente e o vermelho é alma universal. Essa é uma bandeira dos druzos sírios
Essa é uma bandeira dos druzos israelenses (essa eu achei particularmente bonita).
Por que o Irã está envolvido, alguém pode perguntar. Uma resposta seria porque o presidente Assad é Xiita (num outro texto posso trazer o que causou a divisão entre sunitas e xiitas), assim como a maioria esmagadora dos muçulmanos são xiitas há muitos séculos. Como pano de fundo em diversos conflitos da região há uma disputa entre Arábia Saudita e Irã. Por qual motivo os iranianos iriam querer um estado potencialmente hostil fazendo fronteira com o seu país? Os Americanos gostariam de ter um estado hostil na sua fronteira sul? Eu creio que não. Então, o interesse iraniano parece-me claro.
Apenas uma palavra entre o conflito da Arábia Saudita com o Irã. A percepção sobre esse conflito é uma das coisas mais sem sentido que ocorre no mundo atualmente. Eu passei um mês no Irã e posso afirmar que em muito se parece com o Brasil. Tehran mesmo é quase uma São Paulo no caos urbano, na miscelânea de gente, na classe média vibrante. Tirante alguns aspectos culturais, um visitante teria a impressão que está numa grande metrópole de um país de renda média. Mulheres médicas, estudantes mulheres, jovens vaidosas maquiadas interagindo, uma classe média forte com ideias próprias, etc.
É de longe a coisa mais sem sentido o estereótipo do que quase todos tem sobre o Irã. Mas o Irã não tem terroristas? O Irã não está em guerra? O Irã não aplica a Sharia, como ficou a sua mulher? Foram, e são perguntas que constantemente sou perguntado. A única guerra que o Irã se envolveu recentemente foi com o Iraque, quando Saddam Hussein deliberadamente invadiu o Irã, sem qualquer tipo de provocação dos iranianos, usando armas fornecidas pelos americanos, que na época apoiavam o ditador iraquiano.
Tanto é assim que essa guerra é conhecida como a grande guerra de resistência, e o valor que os iranianos dão a ela simbolicamente, é o mesmo que os Russos dão a grande guerra patriótica de 1941-1945 contra os nazistas. Sim, para eles é a grande guerra patriótica, não a segunda guerra mundial. Já ouviu alguém comentando isso na televisão ou em análises sobre a segunda guerra? Eu não sabia, até presenciar que em cada cidade russa, seja de 5 mil ou 5 milhões, há um memorial com uma tocha que nunca se apaga, para nós ocidental uma eternal flame, e os números 1941-1945. Em muitos monumentos desses há a figura de uma mãe russa chorando a morte de seu filho soldado, representando o sacrifício que todas as gerações russas tiverem que fazer para combater o inimigo.
Por seu turno, a Arábia Saudita é um regime onde as mulheres devem usar Nijab (aquela vestimenta onde apenas os olhos aparecem), a religião cristã não é permitida (no Irã, no museu da guerra que fui, há até mesmo placas homenageado um pelotão judeu de iranianos), mulheres não podem dirigir, pessoas são decapitadas em praça pública e há uma forma completamente retrógrada de governo e religião. Parece um estado medieval. Dinheiro saudita muito provavelmente está presente em inúmeros grupos terroristas sunitas (não há grupos xiitas fazendo atentados terroristas em outros países, muito menos em países europeus, por exemplo)
Porém, por incrível que pareça a Arábia Saudita passa incólume a críticas ou categorizações. É incrível. Quer ofender um Iraniano? Chame-o de Árabe. E ainda há pessoas que chamam muçulmanos de árabe, não sabendo nem mesmo diferenciar uma coisa da outra. Acreditem colegas, num embate de ideias entre Irã e Arábia Saudita, o mundo está muito melhor se o Irã sair vitorioso. Aliás, talvez o Irã seja o país que o ocidente deveria apostar as suas fichas para que desse certo do ponto de vista econômico. Talvez o Irã, com sua sociedade centenas de vezes mais aberta e tolerante do que a da Arábia Saudita, possa ser um modelo para outros estados da região nas décadas que estão por vir. Talvez seja uma das formas de se combater o terrorismo de forma eficaz. Portanto, essa retórica belicosa dos EUA contra o Irã, tendo a Arábia Saudita como aliado central na região, só se explica por interesses meramente econômicos, não por uma tentativa de tornar a região mais segura e próspera.
Falando em EUA, entra o Trump na história com o recente bombardeio como uma forma de retaliação a um suposto ataque químico do governo de Assad numa província controlada por rebeldes. Alguns analistas falam que Trump mudou de ideia, pois ele via Assad como um aliado na luta contra o Estado Islâmico (o grupo terrorista que controla partes da Síria e do Iraque), já que esse grupo combate as forças pró-governo. Trump disse que isso mudou, pois o uso de armas químicas contra inocentes muda tudo.
Quando houve um grande ataque químico nos subúrbios de Damascus em 2013, eu morava na Califórnia. Fui perguntando numa aula, se o governo OBAMA deveria atacar alvos sírios, pois o mesmo disse que o uso de armas químicas era uma linha que não poderia ser passada. Na época, eu disse que era uma decisão difícil, mas eu realmente acredito que a comunidade internacional, de forma conjunta e unida, deve em certos casos de atrocidades humanas dar uma resposta militar. Achava que esse deveria ser o caso.
Ao contrário do que falam, OBAMA não fraquejou, ele pediu autorização ao Congresso para um ataque na Síria . Não vou entrar em pormenores sobre a legalidade de atos presidenciais dos EUA, mas parece-me que faz sentido um presidente pedir autorização do congresso, pelo menos um regime democrático, para entrar em guerra direta com outro país. A não ser que haja uma ameaça real e direta aos EUA que necessite rápida e pronta resposta presidencial.
Obama não conseguiu a autorização do congresso, e resolveu não atacar. Sabe o que Trump disse naquela ocasião?
Não há nenhum problema em mudarmos de opinião, desde que o façamos e digamos por quais motivos estamos fazendo. Senão é pura e simples contradição.
Agora essa eu já acho difícil mudar de opinião a não ser em causa própria.
Eu creio que faria muito mais sentido um ataque americano de retaliação naquela época, meados de 2013, onde a guerra civil estava praticamente ainda no seu segundo ano, do que agora depois de seis anos de conflito, onde a situação mudou drasticamente desde então.
Agora, eu creio sim que deve haver limites. O uso de armas químicas, genocídios étnicos, não devem ser tolerados no século XXI. Portanto, o ataque americano a uma base militar síria pode ter esse efeito de dissuasão.
Ou, pode simplesmente fazer com que a guerra civil na Síria simplesmente se alongue indefinidamente. O Governo Sírio só consegue continuar na guerra por causa do apoio financeiro, logístico e militar do Irã e da Rússia. Grupos Rebeldes só conseguem se manter no conflito graças ao apoio financeiro principalmente de países árabes do golfo pérsico. Com a entrada mais decisiva da Rússia no conflito, as forças rebeldes (que entre elas há inúmeros grupos terroristas islâmicos completamente radicalizados) estavam enfraquecendo. Se houver apoio militar americano, simplesmente não haverá nenhuma solução possível.
A Rússia não irá se retirar, até porque eu creio que a Síria era um dos únicos lugares da região onde os russos possuem uma grande base militar (ao contrário dos Americanos que possuem diversas bases em diversos países da região), e quero crer que tanto Trump ou Putin não estão interessados num conflito armado entre os dois países.
Porém, é evidente que a situação que era complexa, se tornou mais complexa e ainda mais volátil. O que vai sair de tudo isso é uma grande incógnita. Há uma certeza, porém. O sofrimento humano.
Há guerras anônimas e desconhecidas do mundo ocorrendo na África, por exemplo. Com essas quase não há nenhuma preocupação. O sofrimento humano lá e tão horrível como o que está ocorrendo na Síria. Logo, há muito sofrimento no nosso mundo. Já houve muito sofrimento, e provavelmente ainda haverá muito mais sofrimento.
Apesar disso, é inegável que para padrões do século XXI a guerra civil Síria atingiu padrões absurdos de brutalidade. Massacres de civis, crianças e mulheres parece ter virado a tônica. Falta de água, eletricidade, medicamentos, presos no fogo cruzado, parece evidente que a vida se tornou um inferno para quase todos na Síria.
Quando a vida se torna um inferno num lugar, a solução mais lógica é mudar de lugar. E é isso que os Sírios fizeram e estão fazendo. A crise de imigração de sírios na Europa é apenas a ponta do iceberg. A Europa recebeu pedidos de asilo de menos de 10% do total de refugiados. Sim 1 em 10. Quando se diz que refugiados sirios estão invadindo a Europa com o intuito de destruir a civilização cristã européia, essa ideia só pode ser tida como desinformação, ignorância ou má-fé, ou uma mistura dos três. Eu penso que a esmagadora maioria é apenas levada por desinformação mesmo, e apenas uma minoria usa de má-fé. Os países que estão sendo mais afetados pela crise Síria são os seus vizinhos, não os Estados Europeus.

Até meados de 2015 essa era a distribuição dos refugiados sérios. A Jordânia é um país minúsculo e estável da região. O Líbano é um país para lá de complexo e conta com mais de um milhão de refugiados. Quando estava no Quirguistão conversei com um libanês especificamente sobre a situação dos refugiados e o impacto na sociedade libanesa, e ele me disse que não estava sendo fácil, pois o país ``é pequeno, e o número de refugidos é enorme``. A Turquia atualmente possui mais de dois milhões de refugiados. É imprevisível os efeitos de médio prazo que isso pode ter no país. Portanto, não acredite em propaganda, olhe os dados quado for refletir sobre a crise síria e o problema dos refugiados, seja em países europeus, seja e principalmente nos países vizinhos.
Aí entra a Turquia. A Turquia é uma país secular. Já tive o privilégio de visitar duas vezes. Paisagens fantásticas, comida espetacular, povo acolhedor, cultura exuberante. Istambul é a única cidade do mundo que se estende por dois continentes. A Turquia é a porta de entrada (ou saída dependendo da perspectiva ) da Europa.
O que vocês acham, prezados leitores, que aconteceria se a Turquia desestabilizasse? Podem acreditar que a crise de refugiados se tornaria muito mais caótica na Europa. A segurança da Europa depende da segurança da Turquia. Quais são os efeitos que milhões de refugiados estão tendo na estabilidade da Turquia? Não muito positivos. A Turquia de um Estado com tendências democráticas, cada vez mais está se tornando um estado totalitário. Ataques terroristas que quase não existiam, a não ser alguns perpetrados pelos curdos, são frequentes. Logo, a solução para os problemas dos refugiados sírios não é apenas um problema para “evitar a islamização da europa”, ou um problema moral e ético de seres humanos, mas um problema central para a estabilidade de um dos países mais importantes do mundo que é a Turquia.
Iria falar sobre os curdos, que é o povo sem país, mas o texto já está entrando na sua quarta página. Não consegui conhecer o curdistão iraniano, mas tive o prazer de conhecer uma inglesa filha de curdos iraquianos, e foi bem interessante falar sobre os curdos com alguém que realmente está ligado com a cultura dos mesmos.
É complexo, é difícil achar uma solução, e esse texto serviu apenas para fazer algumas ponderações. Espero que o ajude a refletir por si só.
Grande abraço!