sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

"O HORROR, O HORROR"

   Olá, colegas. Hoje, foi um bom dia. Acordei, e o que era esperado com ansiedade pela comunidade científica, e por quem gosta de ciência, se concretizou. A espécie humana detectou ondas gravitacionais. A primeira vez que li sobre a existência teórica desse fenômeno foi há uns 12 anos lendo o magistral livro “O Universo Elegante”. Cem anos depois de publicada a Teoria da Relatividade Geral, surge a comprovação empírica de uma de suas mais estranhas e instigantes previsões. Foi um dia especial para toda a humanidade com certeza. Uma pena que é um assunto que não entra tanto nas rodas de discussões das pessoas. Porém, não é sobre isso que irei escrever.

  Hoje de manhã, aproveitando que tenho televisão no quarto, assisti o debate entre os candidatos democratas. Foi bem interessante e poderia abordar como os EUA são um país que debate constantemente e como o Brasil, nesse aspecto, é um país medíocre onde quase nada é debatido. Basta  ver o nível absurdamente baixo dos debates políticos no Brasil ou os debates  nas mais variadas redes sociais, blogs, etc. Mas não é sobre isso também que irei escrever.

  No debate de hoje de manhã, Sanders, um dos concorrentes democratas, ao falar sobre a admiração de Hillary Clinton por Herry Kissinger citou expressamente o Camboja. Ele falou que por aconselhamento de Kissinger os EUA bombardearam esse país ocasionado a morte de dezenas, talvez de centenas de milhares, pessoas levando uma guerrilha de orientação Maoísta ao poder que nas palavras de Sanders,  ele  está correto nesse ponto, praticou um regime “carniceiro" no Camboja. Há até mesmo um livro a respeito chamado "Sideshow: Kissinger, Nixon and the Destruction of Cambodia" (não lido por  mim). É sobre isso que irei escrever, mas numa perspetiva muito pessoal.

  O que foi realmente  o Khmer Vermelho? Como foi possível tal regime ocorrer, mesmo depois da promessa feita após o Holocausto Judeu de “Never Again”? Essas são perguntas que esse artigo não tem a pretensão de responder. É incrível que poucas pessoas tenham ouvido falar do Khmer Vermelho. Talvez o nome Pol Pot possa ser reconhecível, mas quase nenhum brasileiro realmente sabe o que esses nomes significaram, o que é algo triste, pois é uma parte, horrível certamente, importante da história da nossa espécie humana no século passado. 

Foi nisso que se transformou o Camboja entre abril de 1975 e janeiro de 1979, quando o regime genocida do Khmer Vermelho introduziu a sua ideia maluca de uma sociedade agrária.

Pol Pot, também conhecido como Brother number 1, Responsável direto pela morte de talvez 3 milhões de pessoas. Isso representou mais de um em cada quatro cambojanos. Imaginem, leitores, uma em cada quatro pessoas que vocês conhecem mortas dentro de dois-três anos. Inimaginável, não?


   O Camboja no pós-guerra (segunda guerra mundial) era um país pacífico que gozava de um razoável nível de vida. Sem sombra de dúvidas, não era tão poderoso como seus vizinhos Tailândia e Vietnã. Aliás, depois do declínio do poderoso e impressionante império Khmer no século 15, os 500 anos que se seguiram foram apenas de declínio e de submissão aos dois poderosos vizinhos, e no século 19 a potência colonizadora francesa. Entretanto, após a Independência em 1953 as coisas não iam mal para o Camboja.

  Então, ler um pouco mais a respeito no meu artigo sobre o Vietnã Vietnã: A Guerra Americana, a guerra americana começou. O país se desestabilizou, um golpe contra o então monarca foi dado em 1970 - com o apoio tácito dos EUA - e os bombardeio americanos, secretos num primeiro momento, começaram. Os EUA bombardeavam o país, pois muitos vietnamitas do norte usavam o pais como uma forma de chegarem ao Vietnã do Sul e assim ajudar os vietcongues na luta contra as tropas americanas. O Bombardeio foi tão intenso que os EUA despejaram mais bombas no Camboja do que o fizeram em toda segunda guerra mundial . É um número assustador. A tática utilizada foi o carpet-bombing, talvez já tenham reparado em filmes sobre o Vietnã quando bombardeios B-52 lançam centenas de bombas uma atrás da outra.

Muitos chamam o bombardeio ao Camboja de genocídio americano. Sem dúvida alguma foi um crime contra a humanidade.


  Os ataques ocasionaram a morte de centenas de milhares de pessoas (há análises que apontam 500 mil pessoas). A quantidade foi tão absurda que até hoje essas bombas ainda matam seres humanos. Poucas pessoas sabem mais muitas bombas  não explodem quando tocam o chão, porém elas ainda continuam ativas. São as chamadas UXO  (Unexplode Ordenance). Até hoje em dia essas bombas continuam ceifando vidas de cambojanos, sendo um perigo ainda maior do que as minas terrestres.

   Na época do golpe que destronou o rei Sihanouk, uma limitada guerrilha de orientação maoísta que veio a ser chamada de Khmer (os Khmer são a principal etnia no Camboja) Vermelho (pela alusão ao comunismo) realizava atos de guerrilha em algumas regiões remotas do Camboja. Após os bombardeios dos EUA, dezenas de milhares de agricultores cansados dos bombardeios americanos engrossaram as fileiras do Khmer Vermelho para assim derrubar um governo fraco de Lon Nol que possuía o apoio dos EUA. Muitos ainda lutavam junto ao Khmer Vermelho porque eram leais ao rei destronado. Assim, derrubar o governo era lutar contra os próprios americanos. A esmagadora maioria dos agricultores não sabia quem era Mao, ou Stalin e muito menos Marx. Eram apenas pessoas revoltadas contra ataques aéreos que causavam destruição e morte e contra os quais eles não podiam se defender.

Os EUA jogaram mais bombas no Camboja do que a quantidade de bombas lançadas em toda segunda guerra mundial. Centenas de milhares de pessoas mortas e dezenas de milhares de pessoas juntaram-se ao Khmer Vermelho. Sendo assim, os EUA são indiretamente responsáveis por um dos regimes mais genocidas de toda história humana.


  De uma pequena guerrilha escondida nos recantos remotos do Camboja, o Khmer Vermelho se tornou uma organização forte que em poucos anos tomou conta do país. Em 17 de abril de 1975, o Khmer Vermelho toma a capital do país Phnom Penh.   Recebidos nas primeiras horas como salvadores, pois as pessoas não suportavam mais o governo fraco de Lon Nol, em menos de três dias o Khmer Vermelho colocou em prática um dos planos mais obtusos de “reestruturação" da sociedade jamais tentando em qualquer lugar do mundo.

    O Angkar (ou simplesmente a organização) determinou o esvaziamento de todas as cidades. Todas as cidades importantes foram evacuadas em poucos dias.  O objetivo era eliminar o Camboja de qualquer influência externa e criar uma sociedade agrícola perfeita. Quem era associado a de alguma forma a vida urbana era considerado “inimigo" e deveria ser reeducado. Quem era intelectual deveria simplesmente ser assassinado. O Khmer Vermelho começou a assassinar todos os médicos, advogados, engenheiros, professores, monges budistas ou qualquer um que tivesse qualquer conhecimento ou de alguma maneira pudesse ser associado a uma vida urbana. Se soubesse falar Francês, era assassinado. Se tivesse qualquer relação com estrangeiros, era assassinado. Dezenas de prisões de tortura surgiram no país, a maior delas conhecida como S-21.

Evacuação de Phnom Penh.

  É a minha segunda vez no país. A primeira vez fiquei apenas uma semana (como a maioria dos turistas, sendo que boa parte fica apenas alguns dias conhecendo os fantásticos templos de Angkor). Dessa vez devo ficar um mês. Muitas coisas mudaram no país, muitas mesmo. Uma das coisas que fazia questão de visitar novamente era a prisão S-21 que foi transformada num museu. Ainda mais, gostaria que minha companheira pudesse conhecer um pouco mais sobre essa história triste da nossa espécie.

  A prisão S-21 era um local secreto. Um dos lugares mais funestos que eu já estive. O Khmer Vermelho transformou uma escola num lugar sinistro de torturas, horror e morte.  A partir de aqui o relato será bem pessoal mesmo.

  Ao chegar novamente nesse local sinistro, percebo que a entrada original  está agora fechada. Além do mais, é possível alugar Audio-Guides, algo que não existia quando estive 8 anos atrás. Levando em conta que não há tantas informações em Inglês, é uma boa forma de se conhecer mais sobre as histórias por trás da prisão, ou sobre as "Vozes da S-21", nome de um livro bem conhecido sobre o tema.  Muitas mais pessoas também visitam local. Quando estive a primeira vez eram no máximo umas 40 pessoas, dessa vez deveria ter  mais de 1.000. Penso comigo mesmo que isso é bom sinal, pois é importante que as pessoas saibam sobre o que ocorreu.

  Começo então a andar pelas salas. Quando os Vietnamitas liberaram o Camboja do Khmer Vermelho (algo nunca reconhecido pela comunidade internacional, ao contrário da liberação da França pelos americanos na segunda guerra mundial, por exemplo) e descobriram a prisão S-21, havia 14 cadáveres com marca de tortura profunda. Em várias salas do bloco A , assim como quando visitei na primeira vez, há salas de aula com uma foto gigante de como encontram o corpo naquele local em preto e branco, bem como os instrumentos de tortura utilizados. Basicamente, deixaram a sala do jeito que encontraram. As imagens são fortes. Após entrar na sexta ou sétima sala as fotos dos corpos torturados começam a parecer muito iguais.

  Sinto um sentimento ruim com esse pensamento. Parece um desrespeito, "pois, foram vidas humanas com a sua individualidade própria, cada uma daquelas fotos representa um ser humano com desejos, sonhos, medos, família" mas é o que penso na hora. Vou para o bloco B e as famosas fotos de milhares de prisioneiros uma do lado da outra estão presentes. “Quem são aquelas pessoas?”  São fotos pequenas de pessoas com números.  Ao entrar na S-21, a pessoa perdia o seu nome e se transformava em apenas um número. Algo idêntico feito pelos nazistas em campos de concentração. Tantas pessoas. Com olhos esbugalhados. Não há nenhum rosto feliz, talvez porque já sabiam do seu cruel destino. Olho então vários desenhos feitos por um dos sobreviventes. Num, ele descreve como era dormir. São cinquenta pessoas num espaço que cabe umas 20. Não há cobertor. Não há lençol. Não há banheiro.   Não consigo vislumbrar como é ficar com mais 50 pessoas num local sem banheiro, o fedor, a insalubridade que não deve ser. Em outros desenhos, diversas cenas de torturas. Choques elétricos, unhas sendo arrancadas,  mulheres tendo os mamilos arrancados, pessoas sendo afogadas em baldes de excremento humano. Alguns prisioneiros eram torturados três vezes por dia. Os torturadores perguntavam coisas como “ Admita que você é um agente da CIA ou KGB” , quase todos respondiam “Eu não sei o que CIA e KGB significam, irmão”, apenas para serem torturados ainda mais. No final, todos admitiam trabalhar para CIA ou KGB para que a tortura parasse. Incrível pensar que os EUA durante muito tempo no governo Bush filho deram desculpas para torturas na luta contra o terrorismo. É simplesmente impressionante. Torturas foram e ainda são justificadas, pressionar a Arábia Saudita (esse sim um Estado que apóia o terrorismo, mas possui mais de um trilhão de dólares em ativos nos EUA) não. Essa contradição no discurso é algo tenebroso.

   Dou "stop" no audio-guide e olho de novo para as centenas de fotos.  São muitas fotos, acabo não prestando atenção numa pessoa em específico, pois quero olhar todas as fotos,  mas com isso acabo não olhando nenhuma com atenção, até que meus olhos encontram dois estrangeiros no meio das fotos dos Cambojanos. Um Inglês e um Canadense. O que eles estariam fazendo lá?  Os dois jovens estavam velejando pelo golfo da Tailândia, dando uma mini-volta ao mundo. Em 1978, não se sabia o que ocorria no Camboja, pois o país estava completamente fechado para o mundo. Por um azar do destino, o barco deles foi parar na costa  cambojana e foi interceptado por um barco do Khmer Vermelho. O Nome do Inglês era  John Dewhirst (reportagem sobre Inglês massacrado na S-21l). Ouço então o relato do irmão do outro estrangeiro preso ao testemunhar nas câmeras especiais de julgamento do  Camboja, também conhecidas como ECCC (Extraordinary Chambers in the Courts of Cambodia). Essas câmeras são uma tentativa do Cambodia, com ajuda da ONU, de lidar com o seu passado na forma de processos contra as principais lideranças do Khmer Vermelho. Lembro que por um triz não fui trabalhar em Darfur no Sudão pela ONU, uma das coisas que mais gostaria de ter feito. Meu nome foi indicado pelo governo brasileiro, mas não deve ter sido aceito, por falta de experiência num tema tão sensível, pelo escritório da ONU em New York. Sinto que o trabalho das ECCC é de extrema importância para o futuro desse país que aprendi a gostar tanto.


    Pela primeira  vez eu choro. Ouço o relato pungente do irmão.  Eu, Soulsurfer, estou dando uma volta ao mundo,  sou muito parecido com aqueles dois jovens. Vejo uma proximidade. Lembro então da frase do Stalin “A Morte de uma pessoa é uma tragédia, a morte de milhões apenas uma estatística”. Sim, é a mais pura verdade essa frase. Nós, humanos, não conseguimos lidar com grandes números ou muita abstração. Tantas fotos de pessoas assassinadas, mas eu precisei ouvir a história de apenas um, ainda parecido comigo, para me sentir profundamente tocado. “É errado pensar e me sentir assim?” “Há certo e errado nesse caso?”, esses pensamentos  me vieram na mente.

   Ao me encaminhar para os Blocos C e D (a prisão era constituída de quatro blocos), lembro que estou com fome. Não tomei café da manha e já são 11 e meia. Tenho fome. “Estou no meio de tanto horror, de tanto sofrimento humano, e apenas algumas horas sem comer eu já sinto desconforto?” “Será que realmente me importo com tanto sofrimento ou qualquer indisposição banal minha é o suficiente para esquecer tudo isso?”. Tenho uma bolacha na mochila, mas resolvo não comer, não naquele lugar, não me parece certo.  

   Aquela foi apenas uma prisão. Havia mais de cem, não tão grandes, pelo país. "Por quê"? Qual o motivo da minha vida ser tão próspera e tantas pessoas terem uma vida tão miserável, um final tão ignóbil. A primeira vez que estive no Camboja, quando voltei para o Brasil não entendia como eu com menos de 30 anos podia ser dono (tinha acabado de comprar o apartamento que habito no Brasil) de um imóvel tão grande e confortável. O que fiz por merecer, enquanto há tantos miseráveis num país como o Camboja? Hoje, consigo sentir-me mais tranquilo com esses questionamentos, mas ele voltou sobre outra  forma: por que tantas pessoas sofrem tanto? Não sei, sinceramente não sei.

 As salas foram deixadas do jeito que foram encontradas.
Desenho de um dos sobreviventes. Durante meses a vida foi assim para centenas de milhares de pessoas. Ficar deitado nessa posição com mais cinquenta pessoas. Fazer as necessidades no mesmo local. Ser torturado três vezes por dia.

 As diversas imagens dos prisioneiros massacrados pela intolerância humana.
John Dewhirst, O Inglês capturado enquanto dava uma volta ao mundo. Todos que entravam na prisão eram fotografados. Essa fotografia foi tirada na prisão S-21.

Um lugar de engrandecimento humano (a escola) transformado num dos lugares mais ignóbeis que nossa espécie já inventou.

    A visita a prisão acaba e nos encaminhamos para o Killing Field de Choueng Ek.Tratei desse lugar no meu artigo Os Campos da Morte. Basicamente, todos os prisioneiros da S-21 eram assassinados. Nenhum era liberado. Pol Pot dizia que "é melhor assassinar um inocente, do que deixar um culpado solto" numa inversão perversa de como a frase geralmente é utilizada em regimes democráticos consolidados. Quando não morriam das torturas, eles eram assassinados nesse campo da morte que fica a 15km da capital. Ele não foi o único. Houve quase 300 Killing Fields no país (sem contar os que nunca se descobriu).

"Como ele não tem mais nenhum uso, não há ganho se ele vive e não há perda se ele morre". O impressionante é que muitas pessoas pensam assim em relação a muitas situações, inclusive talvez leitores desse blog.


  Quando estive lá a  primeira vez, minha visita foi praticamente sozinha. Não havia mais ninguém. Hoje em dia, há  pessoas no local. As pessoas eram trazidas no meio da noite e mortas a golpes de bastão. Não se desperdiçava munição. Um a um os prisioneiros, depois de meses de tortura, eram assassinados com golpes de bastão na cabeça. Num lugar do campo, aparece uma árvore. Lá está escrito que soldados Khmer batiam a cabeça de crianças no tronco e arremessam crianças quase  mortas  numa cova juntos com as suas mães. Para que não houvesse chance de sobrevivência e para que não houvesse mau cheiro, jogavam químicos potentes nos corpos moribundos.

  Eu não sei nem o que pensar. Talvez toda aquela experiência já é um pouco demais para apenas um dia. Meu cérebro não acompanha mais. Na penúltima parada do Audio-Guide, há uma árvore onde ficava um auto-falante que amplificava uma música. Era usado para que os prisioneiros não ouvissem os gritos de outros prisioneiros sendo assassinados. O Audio-Guide então diz que esta música tradicional se misturava ao som de um gerador. O Narrador então pede para que se escute por 30 segundos o som que pode ter sido a última coisa que dezenas de milhares de pessoas podem ter ouvido em suas vidas.

   O som é sinistro. A mistura é algo sombrio. Fico imaginando ser trazido no meio da noite depois de ser torturado à exaustão. No meio da floresta então você houve uma mistura sinistra de uma música com uma melodia triste e um som abafado de um gerador. Lembro de uma das cenas do Filme “A Lista de Schindler” onde nazistas colocam músicas infantis alemães no meio de um processo de seleção de quem irá morrer ou não. Fico paralisado. Não quero ver o memorial no centro do campo com dezenas de milhares de caveiras. 

  Aperto então o último ícone do audio-guide e é uma música triste sobre a capital Phnom Penh e a tragédia que se abateu sobre esse lindo país. Choro pela segunda vez no dia. De alguma maneira a música me toca profundamente, mesmo não entendendo o que se canta, posso inferir que é algo muito triste.

Esse é um grande filme. Feito ainda na década de 80, conta o horror vivido pelo Camboja no regime do Khmer Vermelho.






Memorial para as vítimas (Nenhuma das fotos desse artigo foram retiradas por mim, foram todas pegas da Internet. Não tirei quase nenhuma foto dos locais).


  Todos nós podemos nos sentir de forma diferente sobre diversas questões. Entretanto, a dignidade humana deve ser defendida sempre. Nunca deveríamos deixar que qualquer regime ou qualquer ideia de alguma maneira tente “desumanizar" grupos inteiros de indivíduos. Infelizmente, depois do Camboja diversos outros massacres ocorreram e ainda ocorrem. Assistimos, nós humanos, indiferentes e paralisados ao sofrimento de milhões de sírios. Por que não agimos tempestivamente? Será que estamos condenados a no futuro perguntar porque as pessoas do passado não fizeram nada para impedir que atrocidades continuassem? Eu procuro ser otimista e creio que não, podemos sim enquanto espécie tentar diminuir atos tão atrozes contra seres humanos.

  Porém, precisamos antes de tudo extirpar o ódio de nossos corações. Sempre quando existir o ódio, haverá a semente para o extremo mal. Não compartilhe mensagens de ódio, amigos leitores. Não concorda com um governo, com uma ideologia, com qualquer coisa, exerça a sua liberdade de se opor contra o que quer que seja. Não faça isso com ódio no coração, mesmo contra pessoas que por ventura possam ter feito um pequeno ou um grande mal a você ou a conhecidos seus. O ódio é algo que corrói a nossa vida, nada de bom sai de uma pessoa com ódio. Eliminemos o ódio e tentemos diminuir nossos preconceitos contra outros seres humanos.

  Espero que todos estejam bem, que possam olhar para as suas famílias, vizinhos, filhos, namoradas (os) com amor e ternura.  Desejo o melhor do fundo do meu coração a todos, mesmo pessoas que possam eventualmente não gostar de mim, conhecendo-me ou não. 


  Abraço a todos.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

CAMBOJA - UMA AVENTURA INESQUECÍVEL DE MOTO - PARTE FINAL

 Olá, colegas. Esse artigo é uma continuação do meu relato feito no último texto. Caso não tenha lido, o mesmo pode ser acessado  em Aventura de Moto - Parte 1.  O relato acabou com a despedida da Senhora de Hong Kong que conhecemos enquanto jantávamos perto da antiga cidade imperial de Koh Ker. No outro dia, acordamos bem cedo, pois gostaria de voltar aos templos para ver o sunrise. Acabei assistido o nascer-do-sol na varanda da pousada e foi muito bonito. Por vários minutos fiquei apenas observando a vida se desenrolar naquela região mais afastada dos itinerários tradicionais de viagem no país. Crianças montado em suas bicicletas em uniformes escolares. Trabalhadores arando a terra. Alguns cachorros brincando e correndo pela estrada vazia. Tudo isso com uma bola de fogo radiante nascendo no horizonte. 

  Foi uma boa sensação de estar completamente imerso no momento presente. Aliás, esse é um conceito fácil de se apreender, mas difícil de se colocar em prática. Nosso cérebro (nossa mente se preferirem) é uma máquina de pensamentos, cálculos e reflexões. Isso faz com que sempre estejamos pensando em algo ou em alguma coisa, muitas vezes em situações ocorridas no passado ou projeções que fazemos do nosso futuro. Entretanto, tudo na realidade existe apenas no presente. Nesse aspecto, tanto passado e futuro são apenas ilusões criadas pela nossa mente que nos afastam da verdadeira realidade das coisas. Esse é um pensamento recorrente no Budismo. Logo, as pouquíssimas vezes que  consigo, mesmo que de uma forma fugida, estar realmente no momento presente são uma verdadeira bênção para mim.

  Viajar de moto, faz muito calor e o sol é muito forte nessa parte do Camboja, de manhã cedo é muito bom. Antes de seguir viagem, resolvemos voltar apenas no templo das árvores misturadas nas construções. Ficamos meia hora apenas contemplando a paz e solidão do local. Não esquecerei tão cedo os momentos naquele lugar especial. 

Uma última apreciada nesse lugar especial...

Um nascer-do-sol bacana. Acompanhar o desenrolar dos acontecimentos mais triviais num lugar afastado com o sol nascendo foi bem legal.


  Seguimos então em direção ao pouquíssimo visitado, mas lindíssimo tempo de Preah  Vihear. O percurso teria algo em torno de 150km.  A viagem transcorria normalmente. Percebi que nesse trecho da jornada havia pouquíssimas casas (que nessa parte do país nada mais são do que simples construções muito pequenas de madeira e palha) com trechos de dezenas de quilômetros sem absolutamente nada.  De repente, tive que avisar a Sra.Soulsurfer que um chamado da natureza estava prestes a ser feito e que teria que ser ali nas moitas da estrada. Depois de caminhar uns 20-30 metros mato adentro, eu simplesmente lembrei que aquela era uma das regiões com mais minas terrestres do mundo. Também veio em minha mente que eu não tinha visto nenhuma placa padrão de campo limpo de minas terrestres e não havia nenhuma construção na região. “Fuck”.

  Pode ter sido simplesmente psicológico. É bem possível que não houvesse qualquer mina terrestre, ainda mais perto de uma estrada. Porém, o simples fato é que há avisos muito claros de nunca dar um passo fora de trilhas marcadas em regiões com alta concentração de minas terrestres no Camboja. Não é brincadeira. Isso é um problema seríssimo em vários países em geral e muito grave no Camboja em especial. Vou tentar escrever um artigo apenas sobre esse tema. Psicológico ou não, real ou não, o fato é que eu paralisei e tentei relembrar exatamente o caminho que eu tinha entrado no mato, pois eu não daria nenhum passo fora de um caminho já feito. Ainda bem, espero que tenha sido apenas uma piração minha, nada ocorreu. Isso mostra como a nossa mente é poderosa em criar medos e situações de perigo, sejam eles reais ou não.

  Após algumas horas, chegamos ao local que se comprava tickets para visitar o templo. Mal sabíamos que seria nesse local onde os problemas começariam. A garota que estava vendendo os ingressos disse que teríamos que pegar transporte para chegar no topo da montanha onde o templo está localizado. Falei que não precisávamos, iríamos de moto. Ela disse que era muito íngreme e sugeriu que pegássemos um táxi-moto por U$5,00. As motos pareciam exatamente como a nossa e argumentei isso para a guria. Ela falou então que as motos eram mais potentes do que a nossa, mas se quiséssemos ir com nosso veículo a escolha era nossa. “It is up to you”. Ok, falei para a minha companheira “vamos tentar, qualquer coisa se não der certo, voltamos”. Já tínhamos tido nossa experiência com moto e m montanhas íngremes numa região mais remota da Tailândia fronteira com Myanmar. "Se deu certo lá com uma moto pior, por qual motivo não daria aqui”?, argumentei comigo mesmo. “Bora colocar um litro de gasolina e vamos, falei para a Sra. Soulsurfer”. Um litro de gasolina depois, a moto simplesmente parou de funcionar. Não ligava mais. “Gasolina batizada?”. “Putz, não pode ser, estamos no meio do nada, a mais de 250km do lugar onde temos que devolver essa moto”. “Dane-se, vamos ver o templo, depois me preocupo com isso”. Esses pensamentos passaram pela minha cabeça em poucos instantes.

Viemos ao templo de tão longe e no templo iremos independente das dificuldades...

  
  Montamos na garupa de dois locais com motos e fomos em direção ao templo. Menos de um quilômetro depois, no local onde se checa os ingressos, um oficial começou a discutir com os motoqueiros e fechou a chancela. Alguns minutos se passaram e ficou claro que deveria haver uma espécie de cooperativa local, se não fizesse parte, não poderia levar turistas. Voltamos novamente para o local de compra de ingressos. Estava pensando no que fazer, quando um rapaz me abordou perguntando se não queríamos dividir o custo de uma caminhonete 4x4 até o topo. Custava U$25,00, dividido por dois casais seria mais ou menos o que pagaríamos na moto. Aceitei e partimos para mais uma tentativa de chegar ao Preah Vihear Temple.

  O casal era de Hong Kong. Inacreditável a coincidência. O Inglês deles não era tão bom como da senhora e dos dois rapazes da pirâmide. Porém, algo mais do que compreensível. Um chinês falar Inglês é algo muito legal mesmo, pois são línguas completamente diferentes. Porém, creio que o Chinês é tão mais complexo e sofisticado do que a língua inglesa, que talvez não seja tão difícil eles aprenderem quando se esforçam. Difícil é nos ocidentais aprendermos a falar chinês de forma fluente. Eles eram bem bacanas. Ele trabalhava num banco e era formado em direito. Ela, geneticista. Foram uma boa companhia nas horas que passamos no templo.

  O Templo de Preah Vihear vem sendo razão de disputas entre Camboja e Tailândia por quase um século. Em 1962, a ICJ (Corte Internacional de Justiça) determinou que o templo pertencia aos Cambojanos, porém tal decisão nunca foi bem aceita por nacionalistas Tailandeses.  Em 2008, o Camboja solicitou a ONU que o templo fosse considerado patrimônio da humanidade. Isso irritou profundamente o governo Tailandês. Como a Tailândia vive uma crise política desde 2006, algo que se o Brasil não tomar cuidado pode se materializar por aqui , um problema externo é o motivo ideal para os políticos tirarem atenção dos problemas internos. Nacionalismo e inimigos externos é a forma mais fácil de se manipular incautos. Por isso, realmente acho incompreensível pessoas razoavelmente inteligentes caírem no papo furado de um sujeito como Trump. É um discurso tão raso, banal e repetido ao longo da história, que é inacreditável que alguém acredite nisso. Porém, creio que muitas vezes estamos condenados a repetir o passado.

  A situação ficou extremamente delicada em fevereiro de  2011, quando violentos combates tomaram conta da região com 8 pessoas mortas e dezenas de milhares de pessoas obrigadas a abandonar a região (mais informações nessa reportagem da BBC). 

   Felizmente, a situação está bem melhor, apesar de ainda ser tensa. Há vários soldados cambojanos estacionados no templo. Vários ninhos de metralhadora ao redor da montanha e há um senso no ar que a qualquer momento algo de ruim pode acontecer. O templo em si é lindíssimo. Sem turistas, apenas alguns locais que não precisam pagar para ir ao templo (que apesar de ter quase 1000 anos de idade ainda é um centro de peregrinação). Localizado em cima de um Cliff, as visões são espetaculares. Estar num local desse, com ruínas muito antigas, sem quase ninguém com um visual tão bacana realmente é algo que vale o esforço. Ficamos um bom tempo andando pelo templo e foi super bacana. Esqueci completamente que tinha uma moto não funcionando no meio do nada me esperando.

 Preah Vihear, patrimônio da humanidade pela Unesco (com a Sra.Soulsurfer ao fundo)
 O templo não é tão grandioso como um Angkor Wat (até porque este é uma das maiores obras da humanidade), mas a atmosfera do lugar é única
O templo estava vazio, a não ser por um grupo pequeno de locais e um monge

O visual em cima da montanha era demais...
Posto de Fronteira da Tailândia, com certeza deve ter inúmeros soldados armados por lá.

Soldados Cambojanos descansando. Foram muito simpáticos conosco. Um grupo ofereceu arroz e convidou para almoçarmos juntos. Outro grupo perguntou de onde éramos, quando falei Brasil, um  grande sorriso de abriu e começaram a fazer gestos de futebol. Tiramos algumas fotos com eles, pena que eles não falavam mais do que algumas frases em Inglês. Adoraria saber a opinião dele sobre toda a celeuma com a Tailândia.

O Templo e o único monge se tornaram muito fotogênicos

O templo tem uma localização fabulosa, uma das melhores que já vi...


  Voltamos para onde deixamos a moto. Os Chineses se despediram, deram os seus e-mails e falaram “Venham nos visitar em Hong Kong”. Se conseguirmos o visto chinês, pretendo obter no Laos, com certeza o faremos. Eles antes de irem embora (tinham contratado um motorista apenas para ir nesse templo) perguntaram “O que vocês vão fazer se a moto não ligar?”, respondi “Eu não tenho a mínima ideia, mas vamos dar um jeito”. Eles riram e nos desejaram boa sorte.

  A moto não ligava. Quando estava começando a me preocupar, a menina dos ingressos se aproximou de nós e disse que um caminhão, o mesmo que tinha nos levado até o templo, iria nos deixar num mecânico na vila mais próxima de nome Sra’Em. “Tenho que pagar alguma coisa?”, ela respondeu “Não, vocês estão com problemas e vamos ajudá-los”. Agradeci e alguns minutos depois estava eu e mais uns quatro homens levantando a moto e colocando na caminhonete. Por 20 km tive que ir segurando a moto para que a mesma não despencasse da caminhonete, pois a mesma não tinha nenhuma “porta" atrás. 


Eu e um local fomos segurando a moto em cima da caminhonete
  É muito bacana receber ajuda de desconhecidos que não falam a sua língua em uma situação de dificuldade. Paramos numa pequena mecânica, e um garoto de não mais do que 18-19 anos com uma habilidade incrível colocou a moto para funcionar em menos de 20 minutos. Maravilha! Pediu U$2,00 (uma quantia que deve ser mais do que ele ganha por dia), sorriu para a gente e entregou a moto tinindo. 

Na mecânica em Sra'Em. Alguns minutos depois e dois dólares, a moto estava tinindo...

Antes de seguirmos viagem, paramos para almoçar nesse restaurante. Comemos muitas vezes em locais assim, O que chamou a atenção foi a garotinha vidrada na televisão (estava passando uma espécie de "Malhação" do Camboja), enquanto balançava a rede onde uma criança muito nova estava dormindo. Os olhos dela brilhavam a ver uma adolescente cambojana e seu caso de amor com algum outro adolescente.

A pequena vila de Sra'Em.

  Com nossa scooter funcionando, o ânimo voltou com tudo. Vamos almoçar e seguir mais 100km para a cidade de Anlong Veng.  Uma cidade fronteiriça, mais conhecida por ter sido o último bastião de resistência do Khmer Vermelho, bem como local onde Pol Pot foi cremado. Colegas, não irei nesse artigo contar o que foi o Khmer Vermelho e quem foi Pol Pot. Porém, aos que não sabem muita coisa sobre o Camboja, apenas digo que esse regime foi um dos mais brutais que o século 20 presenciou. O nível de violência, brutalidade e insanidade atingiu níveis incompreensíveis. O sofrido Kampuchea sofreu um dos maiores genocídios da história moderna. É muito estranho pensar que até o final dos anos 90, o Khmer Vermelho ainda fazia operações de guerrilha no Camboja, utilizando a cidade de Anlong Veng e seus arredores montanhosos.

 Achamos um hotel bom por U$8,00. Creio que há bastante movimento, pois há um cassino perto da fronteira que fica a 15km da cidade, assim a oferta de um hotel razoável deve se dar pelo fluxo de pessoas. No hotel, ninguém falava Inglês a não ser por pouquíssimas palavras. Na cidade de noite para jantar, ninguém falava inglês. Lamentei não ter levado o guia para tentar falar algumas frases em Cambojano. Percebi que algumas pessoas estavam sem muita paciência com a gente. Ao invés de sorrisos, algo normal nos Cambojanos, caras fechadas e nenhuma disposição de nos atender. Comecei a achar que estrangeiros como a gente não são tão bem-vindos. Vai saber, último bastião do Khmer Vermelho - grupo que fechou o país e não tinha qualquer pejo em dizer que estrangeiros eram os inimigos -, sendo que a cidade ainda possui inúmeros simpatizantes da ideologia maluca desse grupo genocida. Pode ter sido apenas uma impressão equivocada minha, e um azar de ter pego algumas mulheres num mau dia.

Local onde o infame Pol Pot foi cremado. Não deu para visitar o local. Aparentemente, o sítio faz parte do roteiro de um tipo de viagem conhecido como "Dark Turism".


   Acordamos mais uma vez bem cedo. Falei para a Sra. Soulsufer “ Vamos até a fronteira, há o local de cremação do Pol Pot, bem como a casa usada pelo infame irmão número 5 - um dos comandantes do Khmer Vermelho também conhecido como “O Carniceiro” - voltamos então para Siem Reap, parando em alguns templos no caminho”. O único detalhe foi que a moto não ligou novamente. “Beleza, vamos para um mecânico novamente, e está tudo certo”.  Por sorte havia uma loja do lado do hotel que aparentemente poderia ter alguém que entendesse de moto. Uma tiazinha sonolenta deu um grito e alguns segundos depois um senhor apareceu. Mexe daqui, mexe dali, e nada da coisa funcionar. Agradeci e fomos procurar uma loja que aparentasse ser uma mecânica de verdade.

O Tiozinho não conseguiu dar um jeito na moto...

   Foi então que tive a “brilhante" ideia de ligar para o dono da moto. Acho que eu pensei que estava no Brasil ou na Austrália, onde o locador seria o responsável numa situação como essa. Em um minuto de conversa no telefone, a coisa deteriorou, quando eu disse onde estava. Com a voz alterada ele falou “você está na fronteira com a Tailândia? Você não podia sair dos arredores de Siem Reap!”. Era uma mentira deslavada, pois disse umas três vezes para ele qual seria o meu trajeto e ele só repetia “No Problem”. No terceiro minuto da conversa ele disse “você quebrou a minha moto, o problema é seu, quero a minha moto aqui” e desligou o telefone na minha cara.

 Foi uma burrice ter ligado para ele. Quando estava falando ao telefone, percebi que no recibo de 4cmx5cm que eu tinha do aluguel, estava escrito que o locatário responsabilizar-se-ia por qualquer situação de “brokeness" da moto. Foi estúpido. O cara tinha um passaporte meu com um importante visto dos EUA  que vale até 2023 e 400 dólares. Pensei comigo mesmo que esse cara iria me extorquir, ainda mais tendo um irmão na polícia. Não era uma opção, a moto tinha que ligar e tínhamos que dirigir 150 km até Siem Reap.

  Andamos com a moto, e achamos uma mecânica com vários jovens trabalhando em inúmeras motos. Mais de três pessoas ficaram uma hora mexendo na moto, até que eles simplesmente desistiram. Quando já estava pensando no que eu poderia fazer, um rapaz fez uma última tentativa de ligar a moto no pé. Ele quase quebrou o pedal, mas por uma obra do destino a moto ligou. Ele apenas fez um gesto com a mão querendo dizer “vai embora, pois essa moto ligar foi uma sorte danada”.  A Sra. Soulsurfer então com uma agilidade e pensamento rápido teve a brilhante ideia de colocar um papelão embaixo do assento da moto para que pudéssemos abastecer a moto (ela tinha autonomia para 100km mais ou menos e estava quase na reserva) sem precisar desligá-la. E assim fomos. Foram mais de duas horas dirigindo, e eu apenas pensando qual seria a minha estratégia com o dono. Paramos para abastecer, e um garoto quase desligou a moto e a gente gritou de reflexo “Não!!” hehe, o cara tomou um susto e deve ter pensado que os gringos não batem bem da cabeça.

     Por uma incrível sorte, a moto não enguiçou no caminho. Se tivesse ocorrido, eu sinceramente não sei o que poderia ser feito, pois não vi qualquer transporte público passando, nem qualquer jeito de transportar a moto. Quando entramos na cidade de Siem Reap veio um alívio "Ufa, estamos aqui, se der qualquer zica, estamos na cidade". Faltava alguns quilômetros apenas e a moto simplesmente morreu no meio da via. Paramos em mais um mecânico, ele disse que não dava jeito. Fomos em outro mecânico e depois de quase uma hora, eles chegaram a um diagnóstico: era um problema numa peça que não estava deixando a gasolina chegar para se dar a partida na moto. Só soube disso, pois o filho do dono da mecânica apareceu depois do pai ligar para o mesmo e pedir que ele viesse conversar com dois gringos com uma moto enguiçada. Até que enfim alguém que podia falar um Inglês básico ao menos. 

    O conserto iria sair 85 dólares. A moto não ligava nem com "reza braba". Eu não iria pagar essa grana toda para o dono da moto ainda vir com mil acusações e tomar os meus 400,00 dólares que tinha deixado de depósito. Pedi para o rapaz que falava Inglês ligar para o locador da moto e explicar a situação do que havia ocorrido na moto na língua deles.  Perguntei ao mesmo quanto devia pelo diagnóstico do problema (aqui  aparentemente se paga o ato de um prestador de serviço apenas diagnosticar o que está ocorrendo com algum produto) e se não poderiam arrumar um transporte para levar a moto até a loja do dono.

  O Senhor, que devia ter uns 70 anos e com certeza viveu os horrores do Khmer Vermelho, estava com um cigarro na boca, olhou para a gente e disse em Cambojano (o que foi traduzido pelo filho dele) "Deixa comigo que eu levo vocês lá". Perguntei "como?", "vou empurrando a moto com o pé", "o quê?". Lá fomos nós, eu em uma moto, e a Sra. Soulsurfer "dirigindo" a moto com o Sr. em outra moto empurrando a mesma com o pé. A minha companheira dirige moto há mais de 10 anos e nunca tinha feito algo assim, ela não entendeu muito como o Sr. conseguiu conduzir a moto com o pé no meio de um trânsito caótico. Apenas pensei comigo mesmo "o cara sobreviveu ao Khmer Vermelho, isso não é nada, ele é Ninja".

  Chegamos, enfim a loja. Situação minha para negociar: a moto estava quebrada, havia um recibo dizendo que eu me responsabilizava por qualquer "brokeness" da moto, o dono tinha um passaporte e 400 dólares meus, o irmão dele era policial (havia uma foto enorme dos dois abraçados em sua loja) e eu sou gringo. Evidentemente, minha posição era extremamente frágil.

  O meu objetivo, como penso em finanças ou qualquer coisa na vida quando algo vai mal, era simplesmente limitar minhas perdas ao mínimo possível, pois eu já tinha internalizado que eu teria que pagar alguma coisa. 
  
  O dono da moto abriu a mesma e começou a apontar um monte de problemas. "Sabia que ele iria fazer isso, agora que soube que fomos a um mecânico e abrimos a moto, todo e qualquer problema será a nossa responsabilidade" pensei comigo mesmo. Eu já estava pronto para falar que iríamos a polícia, se a situação desandasse, mas queria evitar ao máximo, pois sabe-se lá o que poderia acontecer.

  Então, ele falou "você me paga 85 dólares e eu arrumo o resto". Ufa! Minhas perdas agora foram limitadas em 85 dólares, um alívio percorreu o meu corpo. Começou-se então uma longa negociação, com muita calma, sorrisos, argumentos dali e daqui. Consegui abaixar para 60 dólares e talvez poderia ter conseguido até uns 50 dólares. Porém, dei-me por satisfeito. Há 4 horas estava há mais de 140km sem a moto estar funcionando, 60 dólares para me livrar do problema não me pareceu uma "perda" tão grande.

   E não foi mesmo. Estamos atualmente numa cidade chamada Battambang. Depois de muitos anos, quase fui assaltado. Dois garotos numa moto quase me atropelaram para pegar o meu celular. Minha sorte é que eles foram amadores e vieram pela frente e não por trás. Esse tipo de coisa não me faz ficar com paranóia, aliás estou a mesma coisa. Porém, fez com que saísse do modo "segurança Ásia" para o modo "tem que ficar esperto". Resolvi consultar então o site do Departamento de Estado dos EUA para saber o que eles dão de conselho aos visitantes americanos no Camboja (é muito interessante ver de vez em quando o que eles falam sobre os diversos países, inclusive o Brasil). 

  Infelizmente, o Camboja não é o mesmo que encontrei há 8 anos, onde apesar da extrema pobreza me senti muito seguro como na Tailândia (porém, os Thais são muito mais ricos, creio que o per capta é até mesmo maior do que dos brasileiros). Aparentemente, roubos utilizando motos, inclusive com várias vítimas estrangeiras que vieram a óbito, estavam se tornando comuns. Assaltos a mão armada também. É, teríamos que usar o que nós brasileiros sabemos bem como nos defender. Dizia o relatório do governo americano que a Polícia não solucionava nenhum dos crimes contra estrangeiros, que não podia se confiar nela e havia vários relatos de que a Polícia cobrava entre U$30,00 a U$100,00 para se fazer uma declaração de roubo, por exemplo (essencial se você perdeu o seu cartão de crédito). 

  Uma grande tristeza percorreu o meu corpo. Não pela tentativa de assalto, já tinha tirado da minha cabeça, mas por isso estar acontecendo com o Camboja. Um país com tantos problemas terá que lidar com mais um como esse? Na maioria, são jovens que usam drogas e se tornam extremamente violentos. Apenas refleti que toda a situação da moto terminou razoavelmente bem, pois se fosse na polícia, eles nem iam me dar ouvidos e a minha perda financeira seria muitas vezes maior e com consequências imprevisíveis.

  Após entregar a moto e tomar um belo banho, fomos comer, pois a adrenalina foi tão grande que apenas tínhamos comido algumas frutas de manhã e uma sopa de noodles. Hoje, depois da experiência passada, apenas consigo sorrir com tudo que vivenciei nesses três dias. Absolutamente de tudo aconteceu. Pessoas fantásticas, templos sublimes, uma parte inexplorada de um país fabuloso, locais simpáticos pelo caminho, minha "oferenda" a grande pirâmide de Koh Ker, todos os problemas com a moto e muitas mais coisas.

  Ao final, fico satisfeito como eu e minha companheira lidamos com todas as situações adversas. Uma prova de que podemos superar ocasiões difíceis sem nos desesperarmos. Foi uma aventura que irei guardar para o resto da minha vida, pois foi muito especial para mim. 

  
Depois de tudo que passamos, resolvemos comer uma comida "de gringo" num restaurante "gringolês". Ao menos era Happy Hour e a cerveja estava U$0,5 e muito gelada. Duas cervejas depois, eu não consigo beber muito, estava muito mais relaxado.


 No dia seguinte, quando estava respondendo a um comentário de um anônimo na outra postagem, recebi uma mensagem de um Francês que tinha conhecido em Mission Beach na Austrália há mais de seis meses. Neste artigo Austrália - Wallaman Falls: uma grande surpresa falo sobre eles no terceiro parágrafo. Uau, eles estavam em Siem Reap e Pierre tinha visto uma foto da minha companheira no Facebook e perguntou se ainda estávamos na cidade. Por coincidência, eles estavam num bar a uns cinco minutos andando da nossa pousada.

 Foi esplêndido ter reencontrado esses franceses tão bacanas. Muito legal mesmo. Sorrisos, gargalhadas, muitas histórias para contar, parecia que nos conhecíamos há muitos e muitos anos. Como não é a vida. A primeira coisa que ele me perguntou "Como foi o centro (outback)?" (se quiser entender leia ao menos o parágrafo do artigo linkado sobre a Austrália), "Mágico" respondi e o agradeci por ter me incentivado a fazer a viagem de duas semanas e mais de 5.000km pelo Outback Australiano. Inacreditável estar falando com o mesmo francês no Camboja depois de tanto tempo. A noite foi agradabilíssima na companhia deles.

      Hoje fiz um belo passeio pelos arredores de Battanbang  com direito a bamboo train, uma caverna onde o Khmer Vermelho assassinou dezenas de milhares de pessoas, diversos templos em montanhas e no final da tarde uma procissão de milhões de morcegos saindo de uma caverna, algo único - apesar de já ter visto algo parecido em Bornéu na Malásia e em Soppong no norte da Tailândia). O motorista que contratei, quando perguntei porque havia tantas ruas fechadas e caminhões do exército, me disse que era para o filme sendo produzido pela Angelina Jolie. Será  baseado no livro referido no meu artigo Os Campos da Morte "First They Killed My Father".  Muito bacana. Gostaria de ver mais de perto algumas cenas sendo filmadas, mas acabei indo fazer o passeio. Espero que seja um filme que possa trazer mais consciência as pessoas sobre o que ocorreu nesse país durante os anos de 1975 a 1979.


Um livro forte e muito triste. Fico feliz que será transformado em filme.

  É isso, colegas, espero que tenham gostado desse longo relato. Desejo a todos apenas força para quebrarem as suas zonas de conforto, se aventurarem na vida (seja viajando de moto pelo Camboja remoto, seja fazendo o que bem entenderem), só assim, repetindo a frase da Senhora maravilhosa de Hong Kong, "poderemos viver uma vida que vale a pena ser vivida". Sim, o que mais quero para mim, e para vocês queridos leitores, é que tenham vidas que valham a pena ser vividas, de preferência "com corações aquecidos" pela experiência de compartilhar momentos bacanas com outros seres humanos.

  Grande abraço a todos!
  

  

sábado, 6 de fevereiro de 2016

CAMBOJA - UMA AVENTURA INESQUECÍVEL DE MOTO - PARTE INICIAL

Olá, colegas. Preciso escrever e por causa disso o presente artigo. Pode parecer repetitivo, mas quando falo que tenho inúmeras histórias para contar e, depois de algumas semanas, muitas mais histórias ocorreram, mas é a mais pura verdade. Desde o meu último artigo sobre viagem, o meu ano novo espetacular em Bangkok, a quantidade de experiências e pessoas bacanas que conheci apenas aumentaram. Entretanto, os últimos três dias conseguiram ser mais diferentes do que o normal. É preciso entender também que os meus últimos 300 dias foram tudo menos “normais”.

Meus amigos, como forma de tornar a leitura mais agradável, sugiro que ouçam o vídeo linkado. É o quarto movimento da Sinfonia número 4 de Tchaikovsky. A primeira vez que escutei foi há 12 anos vendo a Orquestra Sinfônica de Santa Catarina. O Maestro ao final se desculpou e disse que eles tentaram tocar essa sinfonia como forma de desafio, pois ela é uma das mais difíceis e até mesma as grandes orquestras internacionais a temem. Quando o último movimento terminou eu não sabia se chorava, se ria, se gritava, o que fazia. Fiquei sentado na cadeira apenas imaginando como alguém poderia ter produzido uma música tão fabulosa e com tanto sentimento.


  Estou novamente no Camboja. Sempre me perguntam qual país eu gostei mais de ter visitado. É uma pergunta normal vinda de pessoas que não estão acostumadas ao tipo de viagem que aprecio. É o mesmo tipo de pergunta que sempre escutei quando jogava xadrez de forma semi-profissional “Quantas jogadas você consegue “ver” mentalmente”. Quem joga xadrez num nível de competição internacional jamais faria uma pergunta como essa,  mas é uma curiosidade mais do que normal e saudável de quem não é habituado com o jogo. A minha resposta sempre foi “depende da posição”. É impossível dar uma única resposta a essa pergunta. É mais ou menos o mesmo tipo de explicação que dou em relação a países: não posso dizer qual é o melhor ou pior, pois todos são diferentes e cada um possui uma beleza particular. 

  Posso dizer que a Nova Zelândia é o país mais bonito do planeta, e é mesmo, mas isso não quer dizer que seja o lugar que eu mais tenha gostado.  Eu me apaixonei pela Nova Zelândia, há duas cidades chamadas Raglan e Wanaka que eu poderia morar meses e meses, pois elas são simplesmente sensacionais.  Entretanto, não poderia dizer que o país dos kiwis foi o que mais gostei. Agora, sempre existiu um país que, apesar de ser completamente diverso e eu não entender absolutamente nada da língua, me tocou profundamente: Camboja.  Já discorri brevemente sobre o mesmo no artigo Os Campos da Morte É difícil descrever o que sinto, mas a história desse incrível país é uma memória constante de que tudo é efêmero. Como um povo pode ter ido da glória ao horror absoluto? Gostaria de escrever muitos artigos sobre esse país, quem sabe o faça, mas viajando é difícil, até hoje não produzi nada sobre a Nova Zelândia, país que renderia muitos e muitos artigos.

Este país me marcou profundamente e sempre tive dificuldades de achar uma forma racional de explicar o motivo.


  Assim, foi uma sensação muito diferente retornar a este país 7-8 anos depois. Muitas coisas mudaram. Há muitos mais turistas, principalmente grupos de chineses. Na verdade, os chineses correspondem a uns 60-70% dos turistas, algo que não existia quando estive no Camboja pela primeira vez. Só esse fato já daria um artigo. Logo, os templos de Angkor (sobre isso com certeza escreverei mais detalhadamente) estão muito mais cheios, o que de certa maneira faz com que se perca um pouco a atmosfera. Como há dezenas e dezenas de templos, sempre é possível encontrar paz. Entretanto, nos templos mais famosos como Angkor Wat, Bayon ou Ta Prohm (onde foi filmado “Tomb Raider”) é difícil não esbarrar em muitos turistas, é preciso paciência e disposição para visitar esses templos ao meio dia (muito quente e chineses detestam sol forte) ou muito cedo como seis e meia da manhã para se ter uma experiência mais tranquila.

  Ao falar em Angelina Jolie (estrela do filme citado), é muito bacana também o envolvimento dela com o país. Eu admiro essa atriz, não pela beleza, algo que ela tem de sobra, mas por seu envolvimento em causas nobres. A ligação dela com o país é profunda. Podemos dizer que ela mostrou a glória do país no filme “Tomb Raider” ao mostrar os templos de uma das civilizações mais poderosas que o mundo já viu. Porém, o filme que a marcou foi quando ela experimentou os horrores que esse povo sofreu há menos de 40 anos. O filme chama-se “Amor sem fronteiras” e é lindo. Um dos filmes que mais gosto de assistir novamente. Ao conversar com um diretor de uma ONG que trabalha em projetos de retiradas de minas terrestres (um tema que merecia um artigo a parte), ele me disse que prestou algumas consultorias para a Angelina, pois ela estaria fazendo um terceiro filme sobre o Camboja. Aliás, ele é ex-militar americano, e tinha cada história para contar. Quando disse que era brasileiro, ele abriu um sorriso e falou que um dos melhores amigos dele era brasileiro. Contou-me que o mesmo era vendedor de armas, teve a empresa nacionalizada na década de 80 e era amigo pessoal de Kaddafi , sendo que ajudou no tratamento do filho do ex-ditador da Líbia trazendo o garoto para o Brasil, arrumando um passaporte francês falso para que o mesmo pudesse entrar nos EUA para tratamento de alta qualidade (aparentemente, os EUA não permitiriam a entrada de um filho de Kadaffi). Esse senhor deve ter história para contar.

Belíssimo filme sobre amor, sofrimento humano e redenção. Trata também sobre a omissão de nós humanos que temos uma boa vida e se isso é compatível com a auto-percepção de que somos bons enquanto seres humanos (tema tratado de forma indireta no meu artigo Cidadão de bem?


  Enfim, tenho uma ligação com esse país, mesmo conhecendo tão pouco, é algo que não sei explicar tão racionalmente. Ao visitar mais uma vez por 4 dias os templos famosos de Angkor, fiquei sabendo que existiam templos mais remotos, centenas de quilômetros distantes, em regiões extremamente empobrecidas e com quase nenhuma infra-estrutura. Nesses templos, haveria pouquíssimos turistas, tendo em vista a dificuldade e empenho para se atingi-los.

  Quando soube disso, coloquei-me a pesquisar uma rota. Não há transporte público para esses locais. Como recentemente as estradas foram sendo melhoradas, carros  convencionais já conseguem chegar até lá. Alugar um carro com motorista para fazer o trecho que tinha em mente, em dois dias, sairia algo em torno de uns 250 dólares americanos (a economia do Camboja é dolarizada).  Muito caro. Falei para a Sra. Soulsurfer: “Vamos alugar uma moto como a gente sempre faz”. Sempre alugamos motos, pois é muito barato na Ásia e prático. Entretanto, dessa vez seria diferente, não há quase estrangeiros dirigindo motos, como não há demanda há pouquíssima oferta. Além do mais, seriam mais de 500 km por lugares remotos e muito pobres com uma simples scooter, algo que ainda não tínhamos feito.

   Pensei comigo “só se vive uma vez, vamos fazer essa aventura”, jamais poderia pensar que seriam três dias inesquecíveis pelos mais variados motivos. Descobrimos uma única loja na cidade de Siem Reap (porta de entrada para os templos de Angkor) que alugava para estrangeiros. O cara pediu 15 dólares por dia. Argumentei que estava muito caro, em qualquer lugar na Ásia pago de 4-5 dólares por dia.  Foram muitos minutos negociando até que o cara aceitou reduzir para 13 dólares. Caro, mas acabei aceitando, já que o prospecto da aventura tinha crescido em mim. A moto não tinha compartimento interno e teríamos que nos virar para dirigir com uma mochila no meio das pernas do motorista.

  Ao fechar o aluguel, o dono da moto pediu um passaporte de depósito (normal na Ásia). Já estávamos preparados e entregamos um dos nossos passaportes cancelados, mas que possui o visto de 10 anos para os EUA. Todos, sem exceção, aceitam esse documento (talvez simplesmente porque não entendem a palavra cancelado bem grande na segunda página do documento). O Cambojano não. Ele foi meticuloso e viu que no passaporte não tinha o visto do Camboja. Começou mais uma rodada de negociação. Argumentei que não poderia deixar o passaporte com o visto, pois como iria fazer se a polícia (estava indo para uma área tensa entre o Camboja e a Tailândia, com muito exército estacionado em ambas as fronteiras) me parasse e visse que não tinha o visto? Ele falou ligue para mim, o meu irmão é policial (o Camboja é um dos países mais corruptos do mundo) e está tudo certo. Contra-argumentei "meu amigo se eu estiver a 250 km de distância não vai adiantar nada ligar para você". Por fim, aceitei deixar 400 dólares de depósito, e no final isso provou ser uma verdadeira burrice. 

Pelo menos tive a percepção na hora de tirar foto das fotos e da série das mesmas, o que provou ser uma boa estratégia. Vai que o cara me voltasse quatro notas falsas quando eu retornasse a moto.


  Moto alugada partirmos para a nossa aventura. A primeira parte foi tranquila. No primeiro templo mais afastado infelizmente muitos ônibus de turistas chineses ainda vão até ele, pois a estrada é muito boa, demos o azar de chegar no horário de pico e resolvemos esperar para entrar até que os ônibus fossem embora. Ficamos uma hora e meia numa sombra se alongando, olhando o movimento. Nesse tempo, um senhor japonês de mais idade se aproximou e encantado que estávamos de moto, apontou e disse “É uma Honda!”, “meu filho trabalha na Honda!”.  Soltei diversas frases em Japonês, e o tiozinho quase caiu para trás, abriu um enorme sorriso e desandou a falar japonês muito rápido comigo. Apenas sorri e disse “Nihon-Go Hanassemasen” (eu não falo japonês). Conversamos um pouco no Broken English dele e foi bacana. Ao final, ele pediu para tirar uma foto nossa com a moto. Alguns minutos depois, comecei a conversar com um guia cambojano sobre a estrada que iríamos pegar, se era fácil ou não. Ele estava como guia de um casal de americanos. Engatamos um diálogo, e o americano abriu um sorriso imenso quando disse que era de Florianópolis. Ele, então, começou a falar um português bem razoável sobre a experiência dele de ter morado na ilha da magia por quase um ano. Californiano, foi para o Brasil viver e estudar o Movimento Sem Terra, e as conclusões dele são bem parecidas com as que eu penso desse movimento específico. Uma pena que a conversa durou poucos minutos, pois os dois pareciam ser muito bacanas.

  Visitamos então o templo de Beng Maela. Muito bacana mesmo. Havia turistas, mas não tantos, e deu para brincar um pouco de Indiana Jones ao entrar em salas cheias de destroços sem ninguém. Após um almoço mais ou menos, a comida por aqui não é tão boa como na Tailândia e sempre tem que se barganhar o preço (comida era algo que nunca barganhei), seguimos viagem para a antiga cidade imperial de Koh Ker.

Sra. Soulsufer perambulando pelo templo de Beng Maela.

As Árvores tomaram conta de boa parte do templo, depois de centenas de anos de abandono.



  Tudo mudou. De repente, a estrada que tomamos nao tinha mais movimento. O povoamento tornou-se muito mais esparso e bem pobre. Gasolina era vendida em pequenas barracas no acostamento da pista e absolutamente ninguém, digo ninguém mesmo, entendia uma palavra em Inglês. Depois de quatro horas, e o traseiro já doendo um pouco de ficar tanto tempo sentado numa scooter, chegamos ao complexo de Koh Ker. 

Posto de Gasolina da estrada...

  Único e espetacular é o que posso dizer. Não havia absolutamente ninguém no primeiro templo que visitamos chamado  Wat Prasat Pram. Ficamos mais de uma hora lá e fomos os únicos. Foi mágico e especial. Além do mais, o lugar era muito fotogênico, devido ao fato das árvores terem se misturado aos templos que datam de mais de 1000 anos de idade. Foi muito legal mesmo. 

                   Momentos especiais nesse templo abandonado no meio da floresta e sem ninguém por perto
 Olha as raízes e como se misturaram com o templo num efeito magnífico
     Saudação ao sol!


Soulsurfer contemplando a beleza do templo e do momento único


  Seguimos então por estradas de terra, passando por inúmeros templos sem absolutamente uma viva alma no meio da floresta com muitas placas dizendo que o local tinha sido limpo de minas terrestres (a região que estávamos entrenado na província de Preah Vihear é um dos locais com mais minas terrestres do mundo). Passamos por um grupo de três garotas numa moto bem antiga. Fiz sinal para que parassem, elas abriram um enorme sorriso. Eram jovens e bonitas, apesar de um pouco castigadas pela vida provavelmente dura. Perguntei por meio de mímicas onde era a Pirâmide, elas não entenderam e apenas sorriram. Disse então aw-koon ch’ran (muito obrigado em cambojano) e fomos em frente cercado de floresta e templos até que chegamos no enigmático templo de Prasat Thom.

Sem brincadeira, passamos por mais de 10 templos "abandonados" no meio da floresta. A região de Koh Ker chegou a ser por 20 anos a capital do mais poderoso império que o sudeste asiático já conheceu: A Civilização Khmer

Placas como essa avisando que o terreno foi liberado de minas terrestres é comum quanto mais se afasta das zonas eminentemente turísticas.

  Depois refleti se as garotas sabiam escrever ou ler,  como era a vida delas e qual seria o futuro das mesmas, e automaticamente lembrei-me de como as pessoas se iludem e se enganam com histórias sobre mérito ou extremo sucesso pessoal sem levar em conta o fator acaso e aleatoriedade. A vida muitas vezes é uma loteria genética e muitas pessoas não percebem isso, abordei esse tema, um dos artigos meus que mais gosto, chamado A Herança e a Incongruência de Alguns Argumentos

   Enfim, tínhamos chegado a famosa pirâmide de Koh Ker. Como já tive o privilégio de viajar pelo México e América Central, vi muitas ruínas Maias (as mais fabulosas foram Palenque no conturbado, creio que hoje em dia não tanto, estado de Chiapas no México e Tical na Guatemala), estou acostumado com construções maias. É impressionante a semelhança dessa do Camboja com algumas que vi em minhas viagens anteriores pela América. Enorme, mais de 40 metros de altura, e sem ninguém a não ser um pequeníssimo número de uns seis turistas e mais dois sujeitos que tinham aparência de chineses. Encontrar um monumento desses no meio da floresta com quase ninguém é algo absolutamente raro no mundo, a não ser que você seja um arqueólogo mapeando cidades ainda desconhecidas, o que é cada vez mais raro de se encontrar.

Portal que leva a Pirâmide


Andando até chegar a monumental pirâmide sem ninguém no caminho, havia um templo antes da pirâmide que era consideravelmente grande

   Subimos então ao topo da pirâmide, e todos os turistas já tinham ido embora, apenas os dois homens que não. Resolvemos então ficar para ver o por-do-sol, mesmo sabedor que ainda não tínhamos lugar para dormir e estávamos no meio do nada. Engatei uma conversação com os rapazes, e eles eram muito simpáticos. Oriundos de Hong Kong. Um deles falava um ótimo inglês, algo difícil de encontrar em chineses e trabalhava como corretor de venda de obras de arte em leilões (emprego chique hein).

  A conversa foi boa, muito bacana. O sol se pondo, no alto de uma pirâmide de mais de 1000 anos de idade, sem mais ninguém, no meio da floresta, o que esperar mais de um fim de dia? Falei então que estávamos viajando há 10 meses, ele disse que tinha uma “inveja boa”. Comentei então sobre neurociência, memória de longo e curto prazo e como experiências como aquela ficam em nossa memória de longo prazo e disse brincando que em algum canto da memória deles a experiência de encontrar dois brasileiros numa pirâmide no meio da floresta iria permanecer por muitos anos, muito mais do que eventual compra de um telefone ou qualquer bem material. O Chinês mais fluente em inglês concordou assentindo com a cabeça.

   Hora de descer a pirâmide e procurar algum lugar para ficar (o Lonely Planet dizia que havia uma única pousada na estrada de volta, não tínhamos visto no caminho de ida, mas resolvemos confiar que a acharíamos). Pedi mais uma foto para a Sra. Soulsurfer. Ora, por que não mais uma foto, não é mesmo? Subi então numa laje. Não sei o que ocorreu, mas o meu óculos caiu. Num impulso tentei pegá-lo no ar com a mão direita, mas isso fez com que o óculos voasse longe para a outra direção. Tentei pegá-lo com a mão esquerda e me desequilibrei quase caindo para o lado.

  Quando me dei conta apenas pensei “Ah, Merda!!”. O topo da pirâmide tinha um buraco escuro sem fundo visível no meio, algo que não havia notado. Os meus óculos simplesmente tinha caído nesse poço, eu inadvertidamente quase tinha caído no poço ao me desequilibrar para pegar o óculos. Eu não dou bola para marca de produtos, procuro ter um consumo consciente daquilo que me é necessário e realmente importante para a minha satisfação. Entretanto, como tenho os olhos muito claros, como sempre estou na praia, faço questão de ter bons óculos escuros. Ultimamente, venho comprando apenas Per Sol. Já tinha quebrado um óculos na Austrália e agora tinha perdido outro. Caraca! Os óculos são carro para burro, 270 dólares americanos. Mierda. Se tivesse apenas quebrado, poderia trocar o óculos quebrado por um novo pela metade do preço. É isso, mil reais caindo no fundo do poço, porém pensei que não tinha sido nada, pois poderia ter sido eu a cair, aí creio que a chance de escapar com vida seria muito pequena.

  Um pouco atordoado, ainda tentei em vão ver se o poço era muito fundo mesmo, quando um dos Chineses me disse “Deixe isso para lá, não vale a pena se arriscar por um óculos. Ele pertence ao templo agora”. É, claro que não vale. Os óculos agora pertencem ao templo, apenas aceite e foi o que fiz.

No crepúsculo da Pirâmide. É, meus (que não são mais meus) óculos agora pertecem ao templo.

Aqui está o buraco que "engoliu" a minha proteção ocular. Quase fui eu que despenquei lá para baixo.


  Cabisbaixo descendo a pirâmide, lembrei que tinha que me preocupar em achar uma acomodação. Saímos então com a nossa scooter no meio da floresta e caminhos de terra até voltar a estrada. Por sorte achamos a pousada. Tomei um banho gelado, não tinha água quente, e fomos jantar. Mais uma vez tivemos que negociar o preço da comida. A dona da pousada queria 10 dólares, mas a Sra. Soulsurfer ficou cinco minutos conversando com a mesma até ela aceitar fazer por 7 dólares. Fazer o que, no meio do nada era pegar ou pegar.

  Éramos apenas nós na pousada e mais um grupo de quatro italianos acompanhados de um guia local. Eles não fizeram questão de conversar, então fiquei na minha comendo. Foi quando surgiu uma senhora com aparência chinesa de já certa idade falando um ótimo inglês. Ela chegou na mesa dos Italianos e eles, a exceção de um, nem deram bola para a senhora e continuaram a falar em italiano. Aquilo me incomodou bastante. Perguntei então para a senhora se ela não queria se sentar conosco. Ela abriu um sorriso e disse “Claro que sim!”.

  Meus amigos, foi uma das conversas mais gostosas e felizes que tive em vários e vários meses. Eu e minha companheira sentimos-nos conectados com a Senhora. Ela era nascida em Hong Kong (coincidência, pois os dois rapazes da pirâmide também o eram), mas morava há 42 anos no Canadá em Toronto. Falamos sobre tantas coisas. Filosofia, política chinesa, a bobagem que é achar que a visão ocidental sobre a China é o único retrato da realidade que existe, sobre a vida, filhos, desejos, bens materiais, foi sinceramente demais.

  Quando ela nos disse o que estava fazendo, apenas respondi "what?" Ela estava simplesmente pedalando. Sim, uma senhora de 62 anos resolveu comprar um ticket aéreo Canadá-Bkk, trazer a sua bicicleta e estava pedalando há 10 dias. O objetivo dela era chegar na China em um mês. Fantástico, extraordinário, é o que posso dizer.  O nome da senhora Elley Ho (provavelmente o nome ocidental dela).  Foram duas horas conversando que pareceram alguns minutos apenas.

  Frases e pensamentos lindos que ela ia dizendo como “coisas que aquecem o coração”, “vida que vale a pena ser vivida”, “a beleza de ajudar os outros e compartilhar momentos” apareciam enquanto a conversa transcorria. Como dois brasileiros na faixa de 30 e poucos anos podem se sentir tão conectados com uma Senhora na sétima década de vida de uma origem cultural tão diferente? Há algo que nos une enquanto seres humanos, prezados amigos leitores, algo difícil de se explicar (apesar de eu tentar fazer isso nesse espaço em alguns artigos), mas muito fácil de se sentir quando se passa por uma situação dessas. Foi maravilhoso.

  Disse para ela “esse é o jeito brasileiro de se despedir” e nós três demos um grande abraço longo e apertado. Ela então falou “venham me visitar em Toronto”, e se um dia passar por lá, como pretendo fazer numa próxima viagem de carro longa pelas Américas, com certeza será um prazer imenso reeencontrá-la. 

  Colegas, o relato ficou razoavelmente grande e a parte da aventura nem começou ainda (deixei muitas coisas de fora). Vou fazer uma segunda parte para que a escrita não se torne tão cansativa para aqueles leitores que se interessam pelo texto, mas tem apenas alguns minutos para se dedicar ao mesmo. O que terá na segunda parte? Bom, minha ida ao “banheiro" num lugar com suspeita de ser um campo com minas terrestres, a visita a um templo no alto da montanha onde há menos de cinco anos foi palco de um conflito armado entre Tailândia e Camboja com vários mortos, a quebra da moto no meio do nada, a ajuda espontânea das pessoas e a quebra novamente da moto num lugar que foi a última cidade sobre controle da organização genocida Khmer Vermelho até o final da década de 90 (lugar onde o infame Pol Pot foi mantido prisioneiro e cremado após a sua morte) , o desespero de ninguém falando inglês, a moto não ligando e meu passaporte com o visto americano com mais 400 dólares na mão de um Cambojano furioso com toda a situação a mais de 140 km de distância.


  Espero que tenham gostado, um grande abraço a todos!