"As ideias tomam conta, reagem, queimam gente na praça pública" Oswald de Andrade (1928)
Olá,
colegas! Depois de dois artigos sobre finanças, hoje gostaria de falar sobre um
tema mais geral, e aqui no Brasil de certa forma polêmico, apesar do motivo ser um enigma para
mim. Afinal o grande pensador Paulo Maluf estava correto ao dizer: “Nossa
Política é boa, o que atrapalha é essa política de direitos humanos para
bandidos” (http://noticias.uol.com.br/album/2013/09/02/qual-e-a-frase-mais-polemica-dos-82-anos-de-maluf.htm#fotoNav=11)? Essa frase encontra ressonância em muitas pessoas no Brasil, inclusive em
alguns da classe política, sob o pretexto de que direitos humanos servem apenas
para proteger criminosos de alguma punição exemplar. Será que isso é verdade? Ou melhor
reformulando a questão, será que essa forma de ver o mundo nos leva a uma
sociedade melhor?
Primeiramente,
o que são direitos humanos? Direitos humanos nada mais são do que direitos
atribuídos a uma pessoa pelo simples fato dela ser humana. Logo, são direitos
que todos possuem independente se nasceram mulher num campo de refugiados no
Congo, ou filho de alguém da família real do Camboja ou na progressista Sidney
na Austrália. Portanto, pelo simples fato de ser humano é atribuído uma
série de direitos e garantias de que estes mesmos direitos não sejam violados
ou abusados.
Onde
surgiu essa noção? Parece claro que ela nasceu do conceito de igualdade
fundamental entre os homens, pois só é possível reconhecermos que há direitos
atribuíveis a todos os membros de uma sociedade, quando deixamos de lado
conceitos como direitos divinos, divisão de direitos fundamentais baseados em
castas, etc. Não vou me alongar na
formulação histórica do conceito de direitos humanos, até porque seria uma
digressão longa e acima dos meus conhecimentos, mas posso dizer que a
configuração atual dos direitos humanos, pelo menos para nós ocidentais, nasceu
com a revolução francesa e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão em 1789 (A Declaração de Independência dos EUA foi um marco também, e a criação
do conceito de Habeas Corpus na Inglaterra no longínquo ano de 1215 é tido como
o primeiro marco histórico).
Revolução
francesa, um monte de esquerdistas revolucionários (muitas pessoas não sabem
mais o termo direita e esquerda foi cunhado nessa época, os esquerdistas eram
considerados aqueles que eram mais inovadores e sentavam-se à esquerda da “mesa
diretora” da Assembléia Nacional. Dá
para perceber que é um termo anacrônico para um mundo cada vez mais
complexo como o nosso), o que será que essas pessoas conceberam como direitos
humanos? Faço questão de citar a Declaração elaborada em 1789:
Art.1.º Os homens nascem e são
livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na
utilidade comum.
Art. 2.º A finalidade de toda
associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do
homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a
resistência à opressão.
Art. 3.º O princípio de toda a
soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode
exercer autoridade que dela não emane expressamente.
Art. 4.º A liberdade consiste
em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos
direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram
aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites
apenas podem ser determinados pela lei.
Art. 5.º A lei proíbe senão as
ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado
e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.
Art. 6.º A lei é a expressão da
vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou
através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos,
seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos
e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos,
segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes
e dos seus talentos.
Art. 7.º Ninguém pode ser
acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com
as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou mandam
executar ordens arbitrárias devem ser punidos; mas qualquer cidadão convocado
ou detido em virtude da lei deve obedecer imediatamente, caso contrário
torna-se culpado de resistência.
Art. 8.º A lei apenas deve
estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido
senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e
legalmente aplicada.
Art. 9.º Todo acusado é
considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável
prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente
reprimido pela lei.
Art. 10.º Ninguém pode ser
molestado por suas opiniões , incluindo opiniões religiosas, desde que sua
manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.
Art. 11.º A livre comunicação
das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo
cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo,
todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.
Art. 12.º A garantia dos
direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública; esta força é,
pois, instituída para fruição por todos, e não para utilidade particular
daqueles a quem é confiada.
Art. 13.º Para a manutenção da
força pública e para as despesas de administração é indispensável uma
contribuição comum que deve ser dividida entre os cidadãos de acordo com suas
possibilidades.
Art. 14.º Todos os cidadãos têm
direito de verificar, por si ou pelos seus representantes, da necessidade da
contribuição pública, de consenti-la livremente, de observar o seu emprego e de
lhe fixar a repartição, a colecta, a cobrança e a duração.
Art. 15.º A sociedade tem o
direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração.
Art. 16.º A sociedade em que
não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos
poderes não tem Constituição.
Art. 17.º Como a propriedade é
um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser
quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de
justa e prévia indenização.
Percebam,
colegas, que o último artigo é o estabelecimento que a propriedade privada é um
direito humano. Sim, os primeiros direitos humanos, conhecidos como direitos
humanos de primeira geração, foram concebidos como uma maneira do indivíduo se
proteger da ação arbitrária do Estado, que na época era Absolutista. Sendo
assim, nenhum humano poderia ser mais torturado, preso sem que houvesse uma
lei anterior que considerasse crime, impedido de exercer a sua liberdade de se
expressar ou privado de maneira arbitrária de suas propriedades.
A
humanidade, e ainda muitos países infelizmente são assim, conviveu milênios sem que esses direitos que consideramos básicos fossem garantidos ou até mesmo existissem. Portanto, quando as pessoas hoje em dia no nosso
país simpatizam com a tortura, a prisão sem um devido processo legal, a
possibilidade de se cercear a liberdade de expressão, é preciso ter em mente
que a humanidade já teve tudo isso e os resultados, se a pessoa não fosse do
seleto grupo dominante, não eram agradáveis. Nós já vivenciamos a barbárie, e
os direitos humanos são a evolução cultural humana, uma evolução moral da
humanidade.
Com
o passar do tempo, o espectro de direitos humanos foi aumentado. Depois da
revolução industrial e a condição precária de vida de muitas pessoas em quase
todo século 19, surgiu o conceito de direitos humanos sociais nas Constituições
Mexicana e Alemã do início do século passado. Logo, os humanos também viriam a
ter direitos de acesso à educação, à saúde, a alguma espécie de proteção contra
a invalidez (e daí que viria a surgir o conceito de previdência pública), etc.
Diz-se que os países desenvolvidos da Europa conseguiram promover esses
direitos para as suas populações principalmente na segunda metade do século
passado. Atualmente, há uma grande discussão
sobre a sustentabilidade desses sistemas europeus ou não, e não vou entrar
nessa discussão que é interessantíssima, mas o fato é que o que se discute é a
aplicação desses direitos humanos chamados de segunda geração.
Por
fim, nas últimas décadas se fala do surgimento de direitos humanos de terceira
geração, que seriam o direito de ter acesso a um meio-ambiente saudável
(inclusive os direitos humanos de gerações futuras de ter acesso a ecossistemas
sustentáveis), o direito à informação, o direito à privacidade digital (e a
polêmica do caso Snowden é sobre isso), etc. Portanto, a gama de direitos
humanos hoje em dia é imensa, fruto da nossa evolução, bem como da complexidade
das nossas relações e da nossa tecnologia.
Portanto,
limitar o alcance dos direitos humanos a uma discussão de política criminal é
um erro histórico, conceitual e material. Negar direitos humanos é simplesmente
negar o seu direito de ter acesso a um meio-ambiente saudável, ter direito à
informação, direito à saúde, direito a não ser torturado, direito a um processo
legal conduzido por uma autoridade imparcial, etc.
Ok.
Soulsurfer, até aqui nada a objetar, mas você considera certo que um "bandido" tenha direitos humanos, mesmo que ele tenha matado várias pessoas? Sim, eu
considero certo. Vejam, como dito no
corpo desse artigo, os direitos humanos são “adquiridos” pela pessoa pelo
simples fato de nascerem (e há direitos garantidos para aqueles que foram
concebidos, mas ainda não nasceram) humanos.
A proibição da tortura e o direito de
qualquer um ter acesso a um devido processo legal são garantias que
servem a toda coletividade, e não apenas a um indivíduo em especial. É porque
ninguém pode ser torturado que posso ficar tranqüilo de nunca vir a ser
torturado no futuro.
Ok,
então se um criminoso tortura uma família, está tudo certo, você vai defender o
criminoso e deixar a família que sofreu a violência desassistida? Não, a toda
evidência, e é esse tipo de argumento que costuma embasar a críticas a
organizações de direitos humanos. É de se deixar claro se uma pessoa comete um
crime definido em lei, a mesma deve ser punida conforme a legislação em
vigência. Se fôssemos combater todos os
crimes cometidos no Brasil, quando alguém dolosamente sonega um imposto, quando
alguém dirige embriagado, quando alguém agride o meio-ambiente, etc (a lista é
bem longa, e aposto que a maioria da população já fez algum ato criminoso), o
sistema simplesmente entraria em colapso. Assim, não vou me ater a todas as
espécies de crimes, o que seria do ponto de vista racional e intelectual o mais
correto, mas aos crimes que agridem diretamente a integridade física das
pessoas. Porém, até aqui pode se falar que alguém que não paga o imposto
devido, provavelmente está prejudicando a vida de outras pessoas ou alguém que
polui um rio e leva pessoas a ficarem doentes anos depois, mas não vou me
estender nesse tópico e irei me concentrar nos crimes onde há uma maior cobertura midiática.
Quando
alguém comete um homicídio, sequestra alguém, ou comete qualquer ato violento, essa
pessoa deve ser punida, conforme a legislação. A punição não deve ser aquém nem além do que
prevê a lei, e esse é o fundamento básico do Estado de Direito. Diz a legislação que pessoas que cometem
crimes dessa gravidade devem ser segregadas do convívio social, ou seja irem
para cadeia, e assim deve ser feito.
Porém, a pessoa deve ser punida dentro da lei e pelos procedimentos que
a legislação permite. Uma pessoa que tortura não pode ser torturada pela
polícia, pois há uma diferença abissal entre um ato ilícito cometido por um
indivíduo dentro da coletividade de um ato ilícito cometido por um agente
estatal no exercício do monopólio da força.
Soul,
o que é esse exercício estatal do monopólio da força? Colegas, eu teria que
fazer uma digressão bem grande aqui e citar inúmeros filósofos políticos que
pensaram sobre a formação e os pressupostos do Estado Moderno. Porém,
simplificando, as pessoas para viver em coletividade aceitam abdicar do uso da
força, a exceção de casos em legítima defesa, para o Estado, pois este deve ser
imparcial nas resoluções dos conflitos e pode apenas usar a força nos limites
estabelecidos pela lei, para que o uso da força não seja arbitrário. Portanto, o
Estado possui o monopólio do uso da violência numa sociedade, mas essa
violência deve ser feita de forma legal e organizada. A partir do momento que
se permite que agentes estatais no uso do monopólio da violência, basicamente a
força policial, transgrida os limites estabelecidos pela lei, estamos diante de
um rompimento do pacto fundamental de qualquer sociedade moderna. Portanto,
alguém que tortura uma família deve ser processo, julgado e ,se comprovada a
sua culpa, preso. Porém, isso nunca pode ser uma desculpa para o órgão estatal
torturar seja quem for.
Certo,
mas não parece utópico para você Soul? Do que adianta essas palavras “bonitas”
num país que vive um estado de insegurança enorme? Amigos, o nosso estado de
insegurança não vem do pretenso respeito aos direitos humanos dos “bandidos”,
mas sim de erros gestados por muitos anos em nossa sociedade. É muito mais
fácil falar “bandido bom é bandido morto” do que pensarmos numa forma das
nossas polícias serem mais eficientes e mais transparentes. É fácil dizer que um
suposto criminoso não deve ter direito à defesa, do que melhorar nosso sistema
jurídico, para fazer que o mesmo seja mais célere e eficiente, e assim
sucessivamente. É a mesma lógica que
infelizmente ainda temos em nossa economia e em diversos outros assuntos sociais e políticos importantes. Por exemplo, é mais fácil aumentar o IOF para
viagens internacionais, já que muita gente viaja para fora do país para gastar,
do que tornar a nossa economia mais produtiva e eficiente e os produtos
mais baratos. Nós, enquanto nação,
precisamos começar a dar de ombros para essas soluções fáceis para problemas
complexos, e começarmos a pensar que problemas difíceis envolvem soluções
difíceis e quase todas de médio/longo prazo.
O
uso da violência e o desrespeito aos direitos humanos não produzem nada
positivo, muito pelo contrário, eles acabam criando monstros. Vou falar sobre
um monstro criado dentro do Brasil e outro extremamente assustador gestado no
exterior em dois artigos específicos sobre isso. Portanto, quando um político
ou alguém vier a dizer que o problema de segurança no Brasil é causado pelos
direitos humanos, desconfie, pois essa pessoa talvez não saiba exatamente que são, como surgiram e evoluíram e para que servem os direitos
humanos, e talvez esteja apenas tentando uma solução simples e falha para um problema que deve ser atacado em diversos fronts. Não é demais lembrar que inúmeras organizações de direitos humanos são
aquelas que dizem que há violação de direitos humanos na Síria, na Venezuela,
nas prisões clandestinas que eram mantidas pelos EUA no exterior, etc, etc. Geralmente
são instituições sérias, quase sempre perseguidas pelos governos e muitas vezes
a única voz de milhões de pessoas oprimidas em inúmeros lugares nesse planeta.
Por fim, deixo dois vídeos curtos muito bem feitos de uma dureza e delicadeza ímpar produzido pela respeitada Anistia Internacional:
Um grande e cordial abraço a todos!