Olá, colegas. Preciso escrever e por causa disso o presente artigo. Pode parecer repetitivo, mas quando falo que tenho inúmeras histórias para contar e, depois de algumas semanas, muitas mais histórias ocorreram, mas é a mais pura verdade. Desde o meu último artigo sobre viagem, o meu ano novo espetacular em Bangkok, a quantidade de experiências e pessoas bacanas que conheci apenas aumentaram. Entretanto, os últimos três dias conseguiram ser mais diferentes do que o normal. É preciso entender também que os meus últimos 300 dias foram tudo menos “normais”.
Meus amigos, como forma de tornar a leitura mais agradável, sugiro que ouçam o vídeo linkado. É o quarto movimento da Sinfonia número 4 de Tchaikovsky. A primeira vez que escutei foi há 12 anos vendo a Orquestra Sinfônica de Santa Catarina. O Maestro ao final se desculpou e disse que eles tentaram tocar essa sinfonia como forma de desafio, pois ela é uma das mais difíceis e até mesma as grandes orquestras internacionais a temem. Quando o último movimento terminou eu não sabia se chorava, se ria, se gritava, o que fazia. Fiquei sentado na cadeira apenas imaginando como alguém poderia ter produzido uma música tão fabulosa e com tanto sentimento.
Estou novamente no Camboja. Sempre me perguntam qual país eu gostei mais de ter visitado. É uma pergunta normal vinda de pessoas que não estão acostumadas ao tipo de viagem que aprecio. É o mesmo tipo de pergunta que sempre escutei quando jogava xadrez de forma semi-profissional “Quantas jogadas você consegue “ver” mentalmente”. Quem joga xadrez num nível de competição internacional jamais faria uma pergunta como essa, mas é uma curiosidade mais do que normal e saudável de quem não é habituado com o jogo. A minha resposta sempre foi “depende da posição”. É impossível dar uma única resposta a essa pergunta. É mais ou menos o mesmo tipo de explicação que dou em relação a países: não posso dizer qual é o melhor ou pior, pois todos são diferentes e cada um possui uma beleza particular.
Posso dizer que a Nova Zelândia é o país mais bonito do planeta, e é mesmo, mas isso não quer dizer que seja o lugar que eu mais tenha gostado. Eu me apaixonei pela Nova Zelândia, há duas cidades chamadas Raglan e Wanaka que eu poderia morar meses e meses, pois elas são simplesmente sensacionais. Entretanto, não poderia dizer que o país dos kiwis foi o que mais gostei. Agora, sempre existiu um país que, apesar de ser completamente diverso e eu não entender absolutamente nada da língua, me tocou profundamente: Camboja. Já discorri brevemente sobre o mesmo no artigo Os Campos da Morte É difícil descrever o que sinto, mas a história desse incrível país é uma memória constante de que tudo é efêmero. Como um povo pode ter ido da glória ao horror absoluto? Gostaria de escrever muitos artigos sobre esse país, quem sabe o faça, mas viajando é difícil, até hoje não produzi nada sobre a Nova Zelândia, país que renderia muitos e muitos artigos.
Este país me marcou profundamente e sempre tive dificuldades de achar uma forma racional de explicar o motivo.
Assim, foi uma sensação muito diferente retornar a este país 7-8 anos depois. Muitas coisas mudaram. Há muitos mais turistas, principalmente grupos de chineses. Na verdade, os chineses correspondem a uns 60-70% dos turistas, algo que não existia quando estive no Camboja pela primeira vez. Só esse fato já daria um artigo. Logo, os templos de Angkor (sobre isso com certeza escreverei mais detalhadamente) estão muito mais cheios, o que de certa maneira faz com que se perca um pouco a atmosfera. Como há dezenas e dezenas de templos, sempre é possível encontrar paz. Entretanto, nos templos mais famosos como Angkor Wat, Bayon ou Ta Prohm (onde foi filmado “Tomb Raider”) é difícil não esbarrar em muitos turistas, é preciso paciência e disposição para visitar esses templos ao meio dia (muito quente e chineses detestam sol forte) ou muito cedo como seis e meia da manhã para se ter uma experiência mais tranquila.
Ao falar em Angelina Jolie (estrela do filme citado), é muito bacana também o envolvimento dela com o país. Eu admiro essa atriz, não pela beleza, algo que ela tem de sobra, mas por seu envolvimento em causas nobres. A ligação dela com o país é profunda. Podemos dizer que ela mostrou a glória do país no filme “Tomb Raider” ao mostrar os templos de uma das civilizações mais poderosas que o mundo já viu. Porém, o filme que a marcou foi quando ela experimentou os horrores que esse povo sofreu há menos de 40 anos. O filme chama-se “Amor sem fronteiras” e é lindo. Um dos filmes que mais gosto de assistir novamente. Ao conversar com um diretor de uma ONG que trabalha em projetos de retiradas de minas terrestres (um tema que merecia um artigo a parte), ele me disse que prestou algumas consultorias para a Angelina, pois ela estaria fazendo um terceiro filme sobre o Camboja. Aliás, ele é ex-militar americano, e tinha cada história para contar. Quando disse que era brasileiro, ele abriu um sorriso e falou que um dos melhores amigos dele era brasileiro. Contou-me que o mesmo era vendedor de armas, teve a empresa nacionalizada na década de 80 e era amigo pessoal de Kaddafi , sendo que ajudou no tratamento do filho do ex-ditador da Líbia trazendo o garoto para o Brasil, arrumando um passaporte francês falso para que o mesmo pudesse entrar nos EUA para tratamento de alta qualidade (aparentemente, os EUA não permitiriam a entrada de um filho de Kadaffi). Esse senhor deve ter história para contar.
Belíssimo filme sobre amor, sofrimento humano e redenção. Trata também sobre a omissão de nós humanos que temos uma boa vida e se isso é compatível com a auto-percepção de que somos bons enquanto seres humanos (tema tratado de forma indireta no meu artigo Cidadão de bem?
Enfim, tenho uma ligação com esse país, mesmo conhecendo tão pouco, é algo que não sei explicar tão racionalmente. Ao visitar mais uma vez por 4 dias os templos famosos de Angkor, fiquei sabendo que existiam templos mais remotos, centenas de quilômetros distantes, em regiões extremamente empobrecidas e com quase nenhuma infra-estrutura. Nesses templos, haveria pouquíssimos turistas, tendo em vista a dificuldade e empenho para se atingi-los.
Quando soube disso, coloquei-me a pesquisar uma rota. Não há transporte público para esses locais. Como recentemente as estradas foram sendo melhoradas, carros convencionais já conseguem chegar até lá. Alugar um carro com motorista para fazer o trecho que tinha em mente, em dois dias, sairia algo em torno de uns 250 dólares americanos (a economia do Camboja é dolarizada). Muito caro. Falei para a Sra. Soulsurfer: “Vamos alugar uma moto como a gente sempre faz”. Sempre alugamos motos, pois é muito barato na Ásia e prático. Entretanto, dessa vez seria diferente, não há quase estrangeiros dirigindo motos, como não há demanda há pouquíssima oferta. Além do mais, seriam mais de 500 km por lugares remotos e muito pobres com uma simples scooter, algo que ainda não tínhamos feito.
Pensei comigo “só se vive uma vez, vamos fazer essa aventura”, jamais poderia pensar que seriam três dias inesquecíveis pelos mais variados motivos. Descobrimos uma única loja na cidade de Siem Reap (porta de entrada para os templos de Angkor) que alugava para estrangeiros. O cara pediu 15 dólares por dia. Argumentei que estava muito caro, em qualquer lugar na Ásia pago de 4-5 dólares por dia. Foram muitos minutos negociando até que o cara aceitou reduzir para 13 dólares. Caro, mas acabei aceitando, já que o prospecto da aventura tinha crescido em mim. A moto não tinha compartimento interno e teríamos que nos virar para dirigir com uma mochila no meio das pernas do motorista.
Ao fechar o aluguel, o dono da moto pediu um passaporte de depósito (normal na Ásia). Já estávamos preparados e entregamos um dos nossos passaportes cancelados, mas que possui o visto de 10 anos para os EUA. Todos, sem exceção, aceitam esse documento (talvez simplesmente porque não entendem a palavra cancelado bem grande na segunda página do documento). O Cambojano não. Ele foi meticuloso e viu que no passaporte não tinha o visto do Camboja. Começou mais uma rodada de negociação. Argumentei que não poderia deixar o passaporte com o visto, pois como iria fazer se a polícia (estava indo para uma área tensa entre o Camboja e a Tailândia, com muito exército estacionado em ambas as fronteiras) me parasse e visse que não tinha o visto? Ele falou ligue para mim, o meu irmão é policial (o Camboja é um dos países mais corruptos do mundo) e está tudo certo. Contra-argumentei "meu amigo se eu estiver a 250 km de distância não vai adiantar nada ligar para você". Por fim, aceitei deixar 400 dólares de depósito, e no final isso provou ser uma verdadeira burrice.
Pelo menos tive a percepção na hora de tirar foto das fotos e da série das mesmas, o que provou ser uma boa estratégia. Vai que o cara me voltasse quatro notas falsas quando eu retornasse a moto.
Moto alugada partirmos para a nossa aventura. A primeira parte foi tranquila. No primeiro templo mais afastado infelizmente muitos ônibus de turistas chineses ainda vão até ele, pois a estrada é muito boa, demos o azar de chegar no horário de pico e resolvemos esperar para entrar até que os ônibus fossem embora. Ficamos uma hora e meia numa sombra se alongando, olhando o movimento. Nesse tempo, um senhor japonês de mais idade se aproximou e encantado que estávamos de moto, apontou e disse “É uma Honda!”, “meu filho trabalha na Honda!”. Soltei diversas frases em Japonês, e o tiozinho quase caiu para trás, abriu um enorme sorriso e desandou a falar japonês muito rápido comigo. Apenas sorri e disse “Nihon-Go Hanassemasen” (eu não falo japonês). Conversamos um pouco no Broken English dele e foi bacana. Ao final, ele pediu para tirar uma foto nossa com a moto. Alguns minutos depois, comecei a conversar com um guia cambojano sobre a estrada que iríamos pegar, se era fácil ou não. Ele estava como guia de um casal de americanos. Engatamos um diálogo, e o americano abriu um sorriso imenso quando disse que era de Florianópolis. Ele, então, começou a falar um português bem razoável sobre a experiência dele de ter morado na ilha da magia por quase um ano. Californiano, foi para o Brasil viver e estudar o Movimento Sem Terra, e as conclusões dele são bem parecidas com as que eu penso desse movimento específico. Uma pena que a conversa durou poucos minutos, pois os dois pareciam ser muito bacanas.
Visitamos então o templo de Beng Maela. Muito bacana mesmo. Havia turistas, mas não tantos, e deu para brincar um pouco de Indiana Jones ao entrar em salas cheias de destroços sem ninguém. Após um almoço mais ou menos, a comida por aqui não é tão boa como na Tailândia e sempre tem que se barganhar o preço (comida era algo que nunca barganhei), seguimos viagem para a antiga cidade imperial de Koh Ker.
Sra. Soulsufer perambulando pelo templo de Beng Maela.
As Árvores tomaram conta de boa parte do templo, depois de centenas de anos de abandono.
Tudo mudou. De repente, a estrada que tomamos nao tinha mais movimento. O povoamento tornou-se muito mais esparso e bem pobre. Gasolina era vendida em pequenas barracas no acostamento da pista e absolutamente ninguém, digo ninguém mesmo, entendia uma palavra em Inglês. Depois de quatro horas, e o traseiro já doendo um pouco de ficar tanto tempo sentado numa scooter, chegamos ao complexo de Koh Ker.
Posto de Gasolina da estrada...
Único e espetacular é o que posso dizer. Não havia absolutamente ninguém no primeiro templo que visitamos chamado Wat Prasat Pram. Ficamos mais de uma hora lá e fomos os únicos. Foi mágico e especial. Além do mais, o lugar era muito fotogênico, devido ao fato das árvores terem se misturado aos templos que datam de mais de 1000 anos de idade. Foi muito legal mesmo.
Momentos especiais nesse templo abandonado no meio da floresta e sem ninguém por perto
Olha as raízes e como se misturaram com o templo num efeito magnífico
Saudação ao sol!
Soulsurfer contemplando a beleza do templo e do momento único
Seguimos então por estradas de terra, passando por inúmeros templos sem absolutamente uma viva alma no meio da floresta com muitas placas dizendo que o local tinha sido limpo de minas terrestres (a região que estávamos entrenado na província de Preah Vihear é um dos locais com mais minas terrestres do mundo). Passamos por um grupo de três garotas numa moto bem antiga. Fiz sinal para que parassem, elas abriram um enorme sorriso. Eram jovens e bonitas, apesar de um pouco castigadas pela vida provavelmente dura. Perguntei por meio de mímicas onde era a Pirâmide, elas não entenderam e apenas sorriram. Disse então aw-koon ch’ran (muito obrigado em cambojano) e fomos em frente cercado de floresta e templos até que chegamos no enigmático templo de Prasat Thom.
Sem brincadeira, passamos por mais de 10 templos "abandonados" no meio da floresta. A região de Koh Ker chegou a ser por 20 anos a capital do mais poderoso império que o sudeste asiático já conheceu: A Civilização Khmer
Placas como essa avisando que o terreno foi liberado de minas terrestres é comum quanto mais se afasta das zonas eminentemente turísticas.
Depois refleti se as garotas sabiam escrever ou ler, como era a vida delas e qual seria o futuro das mesmas, e automaticamente lembrei-me de como as pessoas se iludem e se enganam com histórias sobre mérito ou extremo sucesso pessoal sem levar em conta o fator acaso e aleatoriedade. A vida muitas vezes é uma loteria genética e muitas pessoas não percebem isso, abordei esse tema, um dos artigos meus que mais gosto, chamado A Herança e a Incongruência de Alguns Argumentos
Enfim, tínhamos chegado a famosa pirâmide de Koh Ker. Como já tive o privilégio de viajar pelo México e América Central, vi muitas ruínas Maias (as mais fabulosas foram Palenque no conturbado, creio que hoje em dia não tanto, estado de Chiapas no México e Tical na Guatemala), estou acostumado com construções maias. É impressionante a semelhança dessa do Camboja com algumas que vi em minhas viagens anteriores pela América. Enorme, mais de 40 metros de altura, e sem ninguém a não ser um pequeníssimo número de uns seis turistas e mais dois sujeitos que tinham aparência de chineses. Encontrar um monumento desses no meio da floresta com quase ninguém é algo absolutamente raro no mundo, a não ser que você seja um arqueólogo mapeando cidades ainda desconhecidas, o que é cada vez mais raro de se encontrar.
Portal que leva a Pirâmide
Andando até chegar a monumental pirâmide sem ninguém no caminho, havia um templo antes da pirâmide que era consideravelmente grande
Subimos então ao topo da pirâmide, e todos os turistas já tinham ido embora, apenas os dois homens que não. Resolvemos então ficar para ver o por-do-sol, mesmo sabedor que ainda não tínhamos lugar para dormir e estávamos no meio do nada. Engatei uma conversação com os rapazes, e eles eram muito simpáticos. Oriundos de Hong Kong. Um deles falava um ótimo inglês, algo difícil de encontrar em chineses e trabalhava como corretor de venda de obras de arte em leilões (emprego chique hein).
A conversa foi boa, muito bacana. O sol se pondo, no alto de uma pirâmide de mais de 1000 anos de idade, sem mais ninguém, no meio da floresta, o que esperar mais de um fim de dia? Falei então que estávamos viajando há 10 meses, ele disse que tinha uma “inveja boa”. Comentei então sobre neurociência, memória de longo e curto prazo e como experiências como aquela ficam em nossa memória de longo prazo e disse brincando que em algum canto da memória deles a experiência de encontrar dois brasileiros numa pirâmide no meio da floresta iria permanecer por muitos anos, muito mais do que eventual compra de um telefone ou qualquer bem material. O Chinês mais fluente em inglês concordou assentindo com a cabeça.
Hora de descer a pirâmide e procurar algum lugar para ficar (o Lonely Planet dizia que havia uma única pousada na estrada de volta, não tínhamos visto no caminho de ida, mas resolvemos confiar que a acharíamos). Pedi mais uma foto para a Sra. Soulsurfer. Ora, por que não mais uma foto, não é mesmo? Subi então numa laje. Não sei o que ocorreu, mas o meu óculos caiu. Num impulso tentei pegá-lo no ar com a mão direita, mas isso fez com que o óculos voasse longe para a outra direção. Tentei pegá-lo com a mão esquerda e me desequilibrei quase caindo para o lado.
Quando me dei conta apenas pensei “Ah, Merda!!”. O topo da pirâmide tinha um buraco escuro sem fundo visível no meio, algo que não havia notado. Os meus óculos simplesmente tinha caído nesse poço, eu inadvertidamente quase tinha caído no poço ao me desequilibrar para pegar o óculos. Eu não dou bola para marca de produtos, procuro ter um consumo consciente daquilo que me é necessário e realmente importante para a minha satisfação. Entretanto, como tenho os olhos muito claros, como sempre estou na praia, faço questão de ter bons óculos escuros. Ultimamente, venho comprando apenas Per Sol. Já tinha quebrado um óculos na Austrália e agora tinha perdido outro. Caraca! Os óculos são carro para burro, 270 dólares americanos. Mierda. Se tivesse apenas quebrado, poderia trocar o óculos quebrado por um novo pela metade do preço. É isso, mil reais caindo no fundo do poço, porém pensei que não tinha sido nada, pois poderia ter sido eu a cair, aí creio que a chance de escapar com vida seria muito pequena.
Um pouco atordoado, ainda tentei em vão ver se o poço era muito fundo mesmo, quando um dos Chineses me disse “Deixe isso para lá, não vale a pena se arriscar por um óculos. Ele pertence ao templo agora”. É, claro que não vale. Os óculos agora pertencem ao templo, apenas aceite e foi o que fiz.
No crepúsculo da Pirâmide. É, meus (que não são mais meus) óculos agora pertecem ao templo.
Aqui está o buraco que "engoliu" a minha proteção ocular. Quase fui eu que despenquei lá para baixo.
Cabisbaixo descendo a pirâmide, lembrei que tinha que me preocupar em achar uma acomodação. Saímos então com a nossa scooter no meio da floresta e caminhos de terra até voltar a estrada. Por sorte achamos a pousada. Tomei um banho gelado, não tinha água quente, e fomos jantar. Mais uma vez tivemos que negociar o preço da comida. A dona da pousada queria 10 dólares, mas a Sra. Soulsurfer ficou cinco minutos conversando com a mesma até ela aceitar fazer por 7 dólares. Fazer o que, no meio do nada era pegar ou pegar.
Éramos apenas nós na pousada e mais um grupo de quatro italianos acompanhados de um guia local. Eles não fizeram questão de conversar, então fiquei na minha comendo. Foi quando surgiu uma senhora com aparência chinesa de já certa idade falando um ótimo inglês. Ela chegou na mesa dos Italianos e eles, a exceção de um, nem deram bola para a senhora e continuaram a falar em italiano. Aquilo me incomodou bastante. Perguntei então para a senhora se ela não queria se sentar conosco. Ela abriu um sorriso e disse “Claro que sim!”.
Meus amigos, foi uma das conversas mais gostosas e felizes que tive em vários e vários meses. Eu e minha companheira sentimos-nos conectados com a Senhora. Ela era nascida em Hong Kong (coincidência, pois os dois rapazes da pirâmide também o eram), mas morava há 42 anos no Canadá em Toronto. Falamos sobre tantas coisas. Filosofia, política chinesa, a bobagem que é achar que a visão ocidental sobre a China é o único retrato da realidade que existe, sobre a vida, filhos, desejos, bens materiais, foi sinceramente demais.
Quando ela nos disse o que estava fazendo, apenas respondi "what?" Ela estava simplesmente pedalando. Sim, uma senhora de 62 anos resolveu comprar um ticket aéreo Canadá-Bkk, trazer a sua bicicleta e estava pedalando há 10 dias. O objetivo dela era chegar na China em um mês. Fantástico, extraordinário, é o que posso dizer. O nome da senhora Elley Ho (provavelmente o nome ocidental dela). Foram duas horas conversando que pareceram alguns minutos apenas.
Frases e pensamentos lindos que ela ia dizendo como “coisas que aquecem o coração”, “vida que vale a pena ser vivida”, “a beleza de ajudar os outros e compartilhar momentos” apareciam enquanto a conversa transcorria. Como dois brasileiros na faixa de 30 e poucos anos podem se sentir tão conectados com uma Senhora na sétima década de vida de uma origem cultural tão diferente? Há algo que nos une enquanto seres humanos, prezados amigos leitores, algo difícil de se explicar (apesar de eu tentar fazer isso nesse espaço em alguns artigos), mas muito fácil de se sentir quando se passa por uma situação dessas. Foi maravilhoso.
Disse para ela “esse é o jeito brasileiro de se despedir” e nós três demos um grande abraço longo e apertado. Ela então falou “venham me visitar em Toronto”, e se um dia passar por lá, como pretendo fazer numa próxima viagem de carro longa pelas Américas, com certeza será um prazer imenso reeencontrá-la.
Colegas, o relato ficou razoavelmente grande e a parte da aventura nem começou ainda (deixei muitas coisas de fora). Vou fazer uma segunda parte para que a escrita não se torne tão cansativa para aqueles leitores que se interessam pelo texto, mas tem apenas alguns minutos para se dedicar ao mesmo. O que terá na segunda parte? Bom, minha ida ao “banheiro" num lugar com suspeita de ser um campo com minas terrestres, a visita a um templo no alto da montanha onde há menos de cinco anos foi palco de um conflito armado entre Tailândia e Camboja com vários mortos, a quebra da moto no meio do nada, a ajuda espontânea das pessoas e a quebra novamente da moto num lugar que foi a última cidade sobre controle da organização genocida Khmer Vermelho até o final da década de 90 (lugar onde o infame Pol Pot foi mantido prisioneiro e cremado após a sua morte) , o desespero de ninguém falando inglês, a moto não ligando e meu passaporte com o visto americano com mais 400 dólares na mão de um Cambojano furioso com toda a situação a mais de 140 km de distância.
Espero que tenham gostado, um grande abraço a todos!