segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

CAMBOJA - UMA AVENTURA INESQUECÍVEL DE MOTO - PARTE FINAL

 Olá, colegas. Esse artigo é uma continuação do meu relato feito no último texto. Caso não tenha lido, o mesmo pode ser acessado  em Aventura de Moto - Parte 1.  O relato acabou com a despedida da Senhora de Hong Kong que conhecemos enquanto jantávamos perto da antiga cidade imperial de Koh Ker. No outro dia, acordamos bem cedo, pois gostaria de voltar aos templos para ver o sunrise. Acabei assistido o nascer-do-sol na varanda da pousada e foi muito bonito. Por vários minutos fiquei apenas observando a vida se desenrolar naquela região mais afastada dos itinerários tradicionais de viagem no país. Crianças montado em suas bicicletas em uniformes escolares. Trabalhadores arando a terra. Alguns cachorros brincando e correndo pela estrada vazia. Tudo isso com uma bola de fogo radiante nascendo no horizonte. 

  Foi uma boa sensação de estar completamente imerso no momento presente. Aliás, esse é um conceito fácil de se apreender, mas difícil de se colocar em prática. Nosso cérebro (nossa mente se preferirem) é uma máquina de pensamentos, cálculos e reflexões. Isso faz com que sempre estejamos pensando em algo ou em alguma coisa, muitas vezes em situações ocorridas no passado ou projeções que fazemos do nosso futuro. Entretanto, tudo na realidade existe apenas no presente. Nesse aspecto, tanto passado e futuro são apenas ilusões criadas pela nossa mente que nos afastam da verdadeira realidade das coisas. Esse é um pensamento recorrente no Budismo. Logo, as pouquíssimas vezes que  consigo, mesmo que de uma forma fugida, estar realmente no momento presente são uma verdadeira bênção para mim.

  Viajar de moto, faz muito calor e o sol é muito forte nessa parte do Camboja, de manhã cedo é muito bom. Antes de seguir viagem, resolvemos voltar apenas no templo das árvores misturadas nas construções. Ficamos meia hora apenas contemplando a paz e solidão do local. Não esquecerei tão cedo os momentos naquele lugar especial. 

Uma última apreciada nesse lugar especial...

Um nascer-do-sol bacana. Acompanhar o desenrolar dos acontecimentos mais triviais num lugar afastado com o sol nascendo foi bem legal.


  Seguimos então em direção ao pouquíssimo visitado, mas lindíssimo tempo de Preah  Vihear. O percurso teria algo em torno de 150km.  A viagem transcorria normalmente. Percebi que nesse trecho da jornada havia pouquíssimas casas (que nessa parte do país nada mais são do que simples construções muito pequenas de madeira e palha) com trechos de dezenas de quilômetros sem absolutamente nada.  De repente, tive que avisar a Sra.Soulsurfer que um chamado da natureza estava prestes a ser feito e que teria que ser ali nas moitas da estrada. Depois de caminhar uns 20-30 metros mato adentro, eu simplesmente lembrei que aquela era uma das regiões com mais minas terrestres do mundo. Também veio em minha mente que eu não tinha visto nenhuma placa padrão de campo limpo de minas terrestres e não havia nenhuma construção na região. “Fuck”.

  Pode ter sido simplesmente psicológico. É bem possível que não houvesse qualquer mina terrestre, ainda mais perto de uma estrada. Porém, o simples fato é que há avisos muito claros de nunca dar um passo fora de trilhas marcadas em regiões com alta concentração de minas terrestres no Camboja. Não é brincadeira. Isso é um problema seríssimo em vários países em geral e muito grave no Camboja em especial. Vou tentar escrever um artigo apenas sobre esse tema. Psicológico ou não, real ou não, o fato é que eu paralisei e tentei relembrar exatamente o caminho que eu tinha entrado no mato, pois eu não daria nenhum passo fora de um caminho já feito. Ainda bem, espero que tenha sido apenas uma piração minha, nada ocorreu. Isso mostra como a nossa mente é poderosa em criar medos e situações de perigo, sejam eles reais ou não.

  Após algumas horas, chegamos ao local que se comprava tickets para visitar o templo. Mal sabíamos que seria nesse local onde os problemas começariam. A garota que estava vendendo os ingressos disse que teríamos que pegar transporte para chegar no topo da montanha onde o templo está localizado. Falei que não precisávamos, iríamos de moto. Ela disse que era muito íngreme e sugeriu que pegássemos um táxi-moto por U$5,00. As motos pareciam exatamente como a nossa e argumentei isso para a guria. Ela falou então que as motos eram mais potentes do que a nossa, mas se quiséssemos ir com nosso veículo a escolha era nossa. “It is up to you”. Ok, falei para a minha companheira “vamos tentar, qualquer coisa se não der certo, voltamos”. Já tínhamos tido nossa experiência com moto e m montanhas íngremes numa região mais remota da Tailândia fronteira com Myanmar. "Se deu certo lá com uma moto pior, por qual motivo não daria aqui”?, argumentei comigo mesmo. “Bora colocar um litro de gasolina e vamos, falei para a Sra. Soulsurfer”. Um litro de gasolina depois, a moto simplesmente parou de funcionar. Não ligava mais. “Gasolina batizada?”. “Putz, não pode ser, estamos no meio do nada, a mais de 250km do lugar onde temos que devolver essa moto”. “Dane-se, vamos ver o templo, depois me preocupo com isso”. Esses pensamentos passaram pela minha cabeça em poucos instantes.

Viemos ao templo de tão longe e no templo iremos independente das dificuldades...

  
  Montamos na garupa de dois locais com motos e fomos em direção ao templo. Menos de um quilômetro depois, no local onde se checa os ingressos, um oficial começou a discutir com os motoqueiros e fechou a chancela. Alguns minutos se passaram e ficou claro que deveria haver uma espécie de cooperativa local, se não fizesse parte, não poderia levar turistas. Voltamos novamente para o local de compra de ingressos. Estava pensando no que fazer, quando um rapaz me abordou perguntando se não queríamos dividir o custo de uma caminhonete 4x4 até o topo. Custava U$25,00, dividido por dois casais seria mais ou menos o que pagaríamos na moto. Aceitei e partimos para mais uma tentativa de chegar ao Preah Vihear Temple.

  O casal era de Hong Kong. Inacreditável a coincidência. O Inglês deles não era tão bom como da senhora e dos dois rapazes da pirâmide. Porém, algo mais do que compreensível. Um chinês falar Inglês é algo muito legal mesmo, pois são línguas completamente diferentes. Porém, creio que o Chinês é tão mais complexo e sofisticado do que a língua inglesa, que talvez não seja tão difícil eles aprenderem quando se esforçam. Difícil é nos ocidentais aprendermos a falar chinês de forma fluente. Eles eram bem bacanas. Ele trabalhava num banco e era formado em direito. Ela, geneticista. Foram uma boa companhia nas horas que passamos no templo.

  O Templo de Preah Vihear vem sendo razão de disputas entre Camboja e Tailândia por quase um século. Em 1962, a ICJ (Corte Internacional de Justiça) determinou que o templo pertencia aos Cambojanos, porém tal decisão nunca foi bem aceita por nacionalistas Tailandeses.  Em 2008, o Camboja solicitou a ONU que o templo fosse considerado patrimônio da humanidade. Isso irritou profundamente o governo Tailandês. Como a Tailândia vive uma crise política desde 2006, algo que se o Brasil não tomar cuidado pode se materializar por aqui , um problema externo é o motivo ideal para os políticos tirarem atenção dos problemas internos. Nacionalismo e inimigos externos é a forma mais fácil de se manipular incautos. Por isso, realmente acho incompreensível pessoas razoavelmente inteligentes caírem no papo furado de um sujeito como Trump. É um discurso tão raso, banal e repetido ao longo da história, que é inacreditável que alguém acredite nisso. Porém, creio que muitas vezes estamos condenados a repetir o passado.

  A situação ficou extremamente delicada em fevereiro de  2011, quando violentos combates tomaram conta da região com 8 pessoas mortas e dezenas de milhares de pessoas obrigadas a abandonar a região (mais informações nessa reportagem da BBC). 

   Felizmente, a situação está bem melhor, apesar de ainda ser tensa. Há vários soldados cambojanos estacionados no templo. Vários ninhos de metralhadora ao redor da montanha e há um senso no ar que a qualquer momento algo de ruim pode acontecer. O templo em si é lindíssimo. Sem turistas, apenas alguns locais que não precisam pagar para ir ao templo (que apesar de ter quase 1000 anos de idade ainda é um centro de peregrinação). Localizado em cima de um Cliff, as visões são espetaculares. Estar num local desse, com ruínas muito antigas, sem quase ninguém com um visual tão bacana realmente é algo que vale o esforço. Ficamos um bom tempo andando pelo templo e foi super bacana. Esqueci completamente que tinha uma moto não funcionando no meio do nada me esperando.

 Preah Vihear, patrimônio da humanidade pela Unesco (com a Sra.Soulsurfer ao fundo)
 O templo não é tão grandioso como um Angkor Wat (até porque este é uma das maiores obras da humanidade), mas a atmosfera do lugar é única
O templo estava vazio, a não ser por um grupo pequeno de locais e um monge

O visual em cima da montanha era demais...
Posto de Fronteira da Tailândia, com certeza deve ter inúmeros soldados armados por lá.

Soldados Cambojanos descansando. Foram muito simpáticos conosco. Um grupo ofereceu arroz e convidou para almoçarmos juntos. Outro grupo perguntou de onde éramos, quando falei Brasil, um  grande sorriso de abriu e começaram a fazer gestos de futebol. Tiramos algumas fotos com eles, pena que eles não falavam mais do que algumas frases em Inglês. Adoraria saber a opinião dele sobre toda a celeuma com a Tailândia.

O Templo e o único monge se tornaram muito fotogênicos

O templo tem uma localização fabulosa, uma das melhores que já vi...


  Voltamos para onde deixamos a moto. Os Chineses se despediram, deram os seus e-mails e falaram “Venham nos visitar em Hong Kong”. Se conseguirmos o visto chinês, pretendo obter no Laos, com certeza o faremos. Eles antes de irem embora (tinham contratado um motorista apenas para ir nesse templo) perguntaram “O que vocês vão fazer se a moto não ligar?”, respondi “Eu não tenho a mínima ideia, mas vamos dar um jeito”. Eles riram e nos desejaram boa sorte.

  A moto não ligava. Quando estava começando a me preocupar, a menina dos ingressos se aproximou de nós e disse que um caminhão, o mesmo que tinha nos levado até o templo, iria nos deixar num mecânico na vila mais próxima de nome Sra’Em. “Tenho que pagar alguma coisa?”, ela respondeu “Não, vocês estão com problemas e vamos ajudá-los”. Agradeci e alguns minutos depois estava eu e mais uns quatro homens levantando a moto e colocando na caminhonete. Por 20 km tive que ir segurando a moto para que a mesma não despencasse da caminhonete, pois a mesma não tinha nenhuma “porta" atrás. 


Eu e um local fomos segurando a moto em cima da caminhonete
  É muito bacana receber ajuda de desconhecidos que não falam a sua língua em uma situação de dificuldade. Paramos numa pequena mecânica, e um garoto de não mais do que 18-19 anos com uma habilidade incrível colocou a moto para funcionar em menos de 20 minutos. Maravilha! Pediu U$2,00 (uma quantia que deve ser mais do que ele ganha por dia), sorriu para a gente e entregou a moto tinindo. 

Na mecânica em Sra'Em. Alguns minutos depois e dois dólares, a moto estava tinindo...

Antes de seguirmos viagem, paramos para almoçar nesse restaurante. Comemos muitas vezes em locais assim, O que chamou a atenção foi a garotinha vidrada na televisão (estava passando uma espécie de "Malhação" do Camboja), enquanto balançava a rede onde uma criança muito nova estava dormindo. Os olhos dela brilhavam a ver uma adolescente cambojana e seu caso de amor com algum outro adolescente.

A pequena vila de Sra'Em.

  Com nossa scooter funcionando, o ânimo voltou com tudo. Vamos almoçar e seguir mais 100km para a cidade de Anlong Veng.  Uma cidade fronteiriça, mais conhecida por ter sido o último bastião de resistência do Khmer Vermelho, bem como local onde Pol Pot foi cremado. Colegas, não irei nesse artigo contar o que foi o Khmer Vermelho e quem foi Pol Pot. Porém, aos que não sabem muita coisa sobre o Camboja, apenas digo que esse regime foi um dos mais brutais que o século 20 presenciou. O nível de violência, brutalidade e insanidade atingiu níveis incompreensíveis. O sofrido Kampuchea sofreu um dos maiores genocídios da história moderna. É muito estranho pensar que até o final dos anos 90, o Khmer Vermelho ainda fazia operações de guerrilha no Camboja, utilizando a cidade de Anlong Veng e seus arredores montanhosos.

 Achamos um hotel bom por U$8,00. Creio que há bastante movimento, pois há um cassino perto da fronteira que fica a 15km da cidade, assim a oferta de um hotel razoável deve se dar pelo fluxo de pessoas. No hotel, ninguém falava Inglês a não ser por pouquíssimas palavras. Na cidade de noite para jantar, ninguém falava inglês. Lamentei não ter levado o guia para tentar falar algumas frases em Cambojano. Percebi que algumas pessoas estavam sem muita paciência com a gente. Ao invés de sorrisos, algo normal nos Cambojanos, caras fechadas e nenhuma disposição de nos atender. Comecei a achar que estrangeiros como a gente não são tão bem-vindos. Vai saber, último bastião do Khmer Vermelho - grupo que fechou o país e não tinha qualquer pejo em dizer que estrangeiros eram os inimigos -, sendo que a cidade ainda possui inúmeros simpatizantes da ideologia maluca desse grupo genocida. Pode ter sido apenas uma impressão equivocada minha, e um azar de ter pego algumas mulheres num mau dia.

Local onde o infame Pol Pot foi cremado. Não deu para visitar o local. Aparentemente, o sítio faz parte do roteiro de um tipo de viagem conhecido como "Dark Turism".


   Acordamos mais uma vez bem cedo. Falei para a Sra. Soulsufer “ Vamos até a fronteira, há o local de cremação do Pol Pot, bem como a casa usada pelo infame irmão número 5 - um dos comandantes do Khmer Vermelho também conhecido como “O Carniceiro” - voltamos então para Siem Reap, parando em alguns templos no caminho”. O único detalhe foi que a moto não ligou novamente. “Beleza, vamos para um mecânico novamente, e está tudo certo”.  Por sorte havia uma loja do lado do hotel que aparentemente poderia ter alguém que entendesse de moto. Uma tiazinha sonolenta deu um grito e alguns segundos depois um senhor apareceu. Mexe daqui, mexe dali, e nada da coisa funcionar. Agradeci e fomos procurar uma loja que aparentasse ser uma mecânica de verdade.

O Tiozinho não conseguiu dar um jeito na moto...

   Foi então que tive a “brilhante" ideia de ligar para o dono da moto. Acho que eu pensei que estava no Brasil ou na Austrália, onde o locador seria o responsável numa situação como essa. Em um minuto de conversa no telefone, a coisa deteriorou, quando eu disse onde estava. Com a voz alterada ele falou “você está na fronteira com a Tailândia? Você não podia sair dos arredores de Siem Reap!”. Era uma mentira deslavada, pois disse umas três vezes para ele qual seria o meu trajeto e ele só repetia “No Problem”. No terceiro minuto da conversa ele disse “você quebrou a minha moto, o problema é seu, quero a minha moto aqui” e desligou o telefone na minha cara.

 Foi uma burrice ter ligado para ele. Quando estava falando ao telefone, percebi que no recibo de 4cmx5cm que eu tinha do aluguel, estava escrito que o locatário responsabilizar-se-ia por qualquer situação de “brokeness" da moto. Foi estúpido. O cara tinha um passaporte meu com um importante visto dos EUA  que vale até 2023 e 400 dólares. Pensei comigo mesmo que esse cara iria me extorquir, ainda mais tendo um irmão na polícia. Não era uma opção, a moto tinha que ligar e tínhamos que dirigir 150 km até Siem Reap.

  Andamos com a moto, e achamos uma mecânica com vários jovens trabalhando em inúmeras motos. Mais de três pessoas ficaram uma hora mexendo na moto, até que eles simplesmente desistiram. Quando já estava pensando no que eu poderia fazer, um rapaz fez uma última tentativa de ligar a moto no pé. Ele quase quebrou o pedal, mas por uma obra do destino a moto ligou. Ele apenas fez um gesto com a mão querendo dizer “vai embora, pois essa moto ligar foi uma sorte danada”.  A Sra. Soulsurfer então com uma agilidade e pensamento rápido teve a brilhante ideia de colocar um papelão embaixo do assento da moto para que pudéssemos abastecer a moto (ela tinha autonomia para 100km mais ou menos e estava quase na reserva) sem precisar desligá-la. E assim fomos. Foram mais de duas horas dirigindo, e eu apenas pensando qual seria a minha estratégia com o dono. Paramos para abastecer, e um garoto quase desligou a moto e a gente gritou de reflexo “Não!!” hehe, o cara tomou um susto e deve ter pensado que os gringos não batem bem da cabeça.

     Por uma incrível sorte, a moto não enguiçou no caminho. Se tivesse ocorrido, eu sinceramente não sei o que poderia ser feito, pois não vi qualquer transporte público passando, nem qualquer jeito de transportar a moto. Quando entramos na cidade de Siem Reap veio um alívio "Ufa, estamos aqui, se der qualquer zica, estamos na cidade". Faltava alguns quilômetros apenas e a moto simplesmente morreu no meio da via. Paramos em mais um mecânico, ele disse que não dava jeito. Fomos em outro mecânico e depois de quase uma hora, eles chegaram a um diagnóstico: era um problema numa peça que não estava deixando a gasolina chegar para se dar a partida na moto. Só soube disso, pois o filho do dono da mecânica apareceu depois do pai ligar para o mesmo e pedir que ele viesse conversar com dois gringos com uma moto enguiçada. Até que enfim alguém que podia falar um Inglês básico ao menos. 

    O conserto iria sair 85 dólares. A moto não ligava nem com "reza braba". Eu não iria pagar essa grana toda para o dono da moto ainda vir com mil acusações e tomar os meus 400,00 dólares que tinha deixado de depósito. Pedi para o rapaz que falava Inglês ligar para o locador da moto e explicar a situação do que havia ocorrido na moto na língua deles.  Perguntei ao mesmo quanto devia pelo diagnóstico do problema (aqui  aparentemente se paga o ato de um prestador de serviço apenas diagnosticar o que está ocorrendo com algum produto) e se não poderiam arrumar um transporte para levar a moto até a loja do dono.

  O Senhor, que devia ter uns 70 anos e com certeza viveu os horrores do Khmer Vermelho, estava com um cigarro na boca, olhou para a gente e disse em Cambojano (o que foi traduzido pelo filho dele) "Deixa comigo que eu levo vocês lá". Perguntei "como?", "vou empurrando a moto com o pé", "o quê?". Lá fomos nós, eu em uma moto, e a Sra. Soulsurfer "dirigindo" a moto com o Sr. em outra moto empurrando a mesma com o pé. A minha companheira dirige moto há mais de 10 anos e nunca tinha feito algo assim, ela não entendeu muito como o Sr. conseguiu conduzir a moto com o pé no meio de um trânsito caótico. Apenas pensei comigo mesmo "o cara sobreviveu ao Khmer Vermelho, isso não é nada, ele é Ninja".

  Chegamos, enfim a loja. Situação minha para negociar: a moto estava quebrada, havia um recibo dizendo que eu me responsabilizava por qualquer "brokeness" da moto, o dono tinha um passaporte e 400 dólares meus, o irmão dele era policial (havia uma foto enorme dos dois abraçados em sua loja) e eu sou gringo. Evidentemente, minha posição era extremamente frágil.

  O meu objetivo, como penso em finanças ou qualquer coisa na vida quando algo vai mal, era simplesmente limitar minhas perdas ao mínimo possível, pois eu já tinha internalizado que eu teria que pagar alguma coisa. 
  
  O dono da moto abriu a mesma e começou a apontar um monte de problemas. "Sabia que ele iria fazer isso, agora que soube que fomos a um mecânico e abrimos a moto, todo e qualquer problema será a nossa responsabilidade" pensei comigo mesmo. Eu já estava pronto para falar que iríamos a polícia, se a situação desandasse, mas queria evitar ao máximo, pois sabe-se lá o que poderia acontecer.

  Então, ele falou "você me paga 85 dólares e eu arrumo o resto". Ufa! Minhas perdas agora foram limitadas em 85 dólares, um alívio percorreu o meu corpo. Começou-se então uma longa negociação, com muita calma, sorrisos, argumentos dali e daqui. Consegui abaixar para 60 dólares e talvez poderia ter conseguido até uns 50 dólares. Porém, dei-me por satisfeito. Há 4 horas estava há mais de 140km sem a moto estar funcionando, 60 dólares para me livrar do problema não me pareceu uma "perda" tão grande.

   E não foi mesmo. Estamos atualmente numa cidade chamada Battambang. Depois de muitos anos, quase fui assaltado. Dois garotos numa moto quase me atropelaram para pegar o meu celular. Minha sorte é que eles foram amadores e vieram pela frente e não por trás. Esse tipo de coisa não me faz ficar com paranóia, aliás estou a mesma coisa. Porém, fez com que saísse do modo "segurança Ásia" para o modo "tem que ficar esperto". Resolvi consultar então o site do Departamento de Estado dos EUA para saber o que eles dão de conselho aos visitantes americanos no Camboja (é muito interessante ver de vez em quando o que eles falam sobre os diversos países, inclusive o Brasil). 

  Infelizmente, o Camboja não é o mesmo que encontrei há 8 anos, onde apesar da extrema pobreza me senti muito seguro como na Tailândia (porém, os Thais são muito mais ricos, creio que o per capta é até mesmo maior do que dos brasileiros). Aparentemente, roubos utilizando motos, inclusive com várias vítimas estrangeiras que vieram a óbito, estavam se tornando comuns. Assaltos a mão armada também. É, teríamos que usar o que nós brasileiros sabemos bem como nos defender. Dizia o relatório do governo americano que a Polícia não solucionava nenhum dos crimes contra estrangeiros, que não podia se confiar nela e havia vários relatos de que a Polícia cobrava entre U$30,00 a U$100,00 para se fazer uma declaração de roubo, por exemplo (essencial se você perdeu o seu cartão de crédito). 

  Uma grande tristeza percorreu o meu corpo. Não pela tentativa de assalto, já tinha tirado da minha cabeça, mas por isso estar acontecendo com o Camboja. Um país com tantos problemas terá que lidar com mais um como esse? Na maioria, são jovens que usam drogas e se tornam extremamente violentos. Apenas refleti que toda a situação da moto terminou razoavelmente bem, pois se fosse na polícia, eles nem iam me dar ouvidos e a minha perda financeira seria muitas vezes maior e com consequências imprevisíveis.

  Após entregar a moto e tomar um belo banho, fomos comer, pois a adrenalina foi tão grande que apenas tínhamos comido algumas frutas de manhã e uma sopa de noodles. Hoje, depois da experiência passada, apenas consigo sorrir com tudo que vivenciei nesses três dias. Absolutamente de tudo aconteceu. Pessoas fantásticas, templos sublimes, uma parte inexplorada de um país fabuloso, locais simpáticos pelo caminho, minha "oferenda" a grande pirâmide de Koh Ker, todos os problemas com a moto e muitas mais coisas.

  Ao final, fico satisfeito como eu e minha companheira lidamos com todas as situações adversas. Uma prova de que podemos superar ocasiões difíceis sem nos desesperarmos. Foi uma aventura que irei guardar para o resto da minha vida, pois foi muito especial para mim. 

  
Depois de tudo que passamos, resolvemos comer uma comida "de gringo" num restaurante "gringolês". Ao menos era Happy Hour e a cerveja estava U$0,5 e muito gelada. Duas cervejas depois, eu não consigo beber muito, estava muito mais relaxado.


 No dia seguinte, quando estava respondendo a um comentário de um anônimo na outra postagem, recebi uma mensagem de um Francês que tinha conhecido em Mission Beach na Austrália há mais de seis meses. Neste artigo Austrália - Wallaman Falls: uma grande surpresa falo sobre eles no terceiro parágrafo. Uau, eles estavam em Siem Reap e Pierre tinha visto uma foto da minha companheira no Facebook e perguntou se ainda estávamos na cidade. Por coincidência, eles estavam num bar a uns cinco minutos andando da nossa pousada.

 Foi esplêndido ter reencontrado esses franceses tão bacanas. Muito legal mesmo. Sorrisos, gargalhadas, muitas histórias para contar, parecia que nos conhecíamos há muitos e muitos anos. Como não é a vida. A primeira coisa que ele me perguntou "Como foi o centro (outback)?" (se quiser entender leia ao menos o parágrafo do artigo linkado sobre a Austrália), "Mágico" respondi e o agradeci por ter me incentivado a fazer a viagem de duas semanas e mais de 5.000km pelo Outback Australiano. Inacreditável estar falando com o mesmo francês no Camboja depois de tanto tempo. A noite foi agradabilíssima na companhia deles.

      Hoje fiz um belo passeio pelos arredores de Battanbang  com direito a bamboo train, uma caverna onde o Khmer Vermelho assassinou dezenas de milhares de pessoas, diversos templos em montanhas e no final da tarde uma procissão de milhões de morcegos saindo de uma caverna, algo único - apesar de já ter visto algo parecido em Bornéu na Malásia e em Soppong no norte da Tailândia). O motorista que contratei, quando perguntei porque havia tantas ruas fechadas e caminhões do exército, me disse que era para o filme sendo produzido pela Angelina Jolie. Será  baseado no livro referido no meu artigo Os Campos da Morte "First They Killed My Father".  Muito bacana. Gostaria de ver mais de perto algumas cenas sendo filmadas, mas acabei indo fazer o passeio. Espero que seja um filme que possa trazer mais consciência as pessoas sobre o que ocorreu nesse país durante os anos de 1975 a 1979.


Um livro forte e muito triste. Fico feliz que será transformado em filme.

  É isso, colegas, espero que tenham gostado desse longo relato. Desejo a todos apenas força para quebrarem as suas zonas de conforto, se aventurarem na vida (seja viajando de moto pelo Camboja remoto, seja fazendo o que bem entenderem), só assim, repetindo a frase da Senhora maravilhosa de Hong Kong, "poderemos viver uma vida que vale a pena ser vivida". Sim, o que mais quero para mim, e para vocês queridos leitores, é que tenham vidas que valham a pena ser vividas, de preferência "com corações aquecidos" pela experiência de compartilhar momentos bacanas com outros seres humanos.

  Grande abraço a todos!
  

  

19 comentários:

  1. Não entendi seu comentário em relação ao Trump. Ele é qualificado para resolver os problemas sociais graves que estão se formando nos Estados Unidos. E tem coragem pra dizer o que deve ser dito, não fica fazendo média com "minorias" ou botando panos quentes.

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    1. Leu com atenção o relato hein colega?:)
      Olha, vai que o Trump ganhe (parece que está perdendo o nomentum nas primárias), isso pode até ajudar o Brasil, apesar de ser ruim para o mundo. Vai que ele, num mundo cada vez mais complexo, dê uma de Bush filho e enfie os EUA em outro atoleiro fazendo com que o dólar se deprecie novamente. Quem sabe o que vai ocorrer...
      Abs

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    2. Achei sua resposta um tanto sarcástica, mas enfim...O trump dificilmente faria isso, ele é esperto o bastante pra ficar apenas na retórica. Você se esquece também que os principais problemas do país são internos. De qualquer forma é melhor ele do que o Bernie Sanders. Este último sim destruiria a América e o espírito empreendedor americano. Provavelmente incharia o Estado com funcionários públicos e aumentaria os seus salários e regalias a níveis absurdos, além de criar benefícios sociais igualmente absurdos. Já imaginou a América se tornando um Brasil, onde por exemplo um funcionário público da área da justiça poder "largar" o seu emprego e tirar férias viajando pelo mundo, enquanto os outros funcionários que ficam tem que se sobrecarregar para fazer todo o serviço, que já é péssimo?

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    3. Colega, o texto tratou em poucas linhas, nas suas mais de cinco páginas, sobre como políticos usam inimigos externos para seduzir incautos, apenas isso. Quando isso ocorre em países desenvolvidos, há, por serem justamente países desenvolvidos, inúmeras barreiras institucionais para que não se façam grandes bobagens (felizmente). O problema é esse tipo de político, e pessoas que dão suporte a esses discursos banais e rasos, em países pouco desenvolvidos como o nosso que não possuem nem maturidade, nem séculos de instituições consolidadas.

      Entendo o seu ponto de vista. Ele não fará o que diz, pois é muito espero para seguir a sua própria retórica (qualquer semelhança com a eleição passada do Brasil é mera coincidência), e por isso ele é um bom sujeito. Quem votar nele, pode reclamar de estelionato eleitoral depois?:P
      Se esse tipo de lógica lhe satisfaz, que assim seja:)
      Hum, gosto quando as pessoas adaptam a frase do Sartre para as suas próprias ideias, algo como "Sarcástico são os outros".
      Eu acho que há uma probabilidade grande dos EUA virarem o Brasil, sim. Ela é enorme.
      Se a legislação brasileira permitisse tirar férias nas condições colocadas por você (o que presume descanso remunerado), olha o que teria de apadrinhado fazendo isso não estaria no gibi. Agora, se está a falar em afastamento sem vencimentos com perda de prioridade em remoções, promoções, não contagem de tempo de serviço para aposentadoria, bem como a perda de qualquer possibilidade de "escalada" na hierarquia de uma instituição, é uma questão de opinião.
      Colega, creio que você está precisando de mais momentos "serendipitosos" dm sua vida:)
      Abs

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    4. Sob outro ponto de vista o cara tá ajudando o Brasil, já que se estivesse aqui trabalhando seria necessário pagar o salário dele. Mas não é nenhum e nem outro. O Soul so está viajando. Graças a Deus tem condições para tal e tem o espírito necessário! Felicidades e não liga para esses trolls!

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    5. "Eu acho que há uma probabilidade grande dos EUA virarem o Brasil, sim. Ela é enorme."

      Interessante. Você poderia discorrer sobre isso?

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  2. Estou lendo seu blog inteiro. Parabéns.

    Tenho uns amigos que levam a vida como vcs levam (o casal Partiu). Quem sabe em alguns anos tbm nao nos esbarramos por aí!

    Abs e obrigado por mais essa história.

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    1. Olá, Felipe.
      Você conhece o casal do Partiu? Bacana. Li apenas uma ou duas vezes o blog deles e achei interessante.
      Obrigado pelas palavras. Quem sabe:)
      Abraço!

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  3. pq alguém com tantos de milhões na conta fica passando perrengue por causa de uma moto barata? Em último caso, era só dar uma moto nova pro cara.

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    1. Amigo, se você pode sair por aí queimando mais de R$ 8.000,00 (U$ 2.000,00), sorte -ou azar- seu. Não estou com essa bola toda não. Com esse dinheiro viajo mais de um mês. Além do mais, minha criação é de origem alemã. Não deixo nem grão de arroz no prato.
      Mas, você tem razão no sentido de que nunca colocaria minha integridade física em risco num confronto mais sério com o dono da moto por causa de dinheiro.
      Abs

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    2. Soul, não distorça meu comentário. Não disse que alguém com milhões na conta deve agir como um inconsequente perdulário. Só penso que uma das coisas boas de ter dinheiro é ter também segurança e, por isso mesmo, não há necessidade alguma de se envolver em situações de risco por mixarias de 400 dólares ou por conta de uma moto usada que certamente custa menos de mil dólares.

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    3. Colega, concordei parcialmente com seu comentário ao dizer que não colocaria minha integridade, ou da minha companheira, em risco por causa de dinheiro.
      É verdade que dinheiro proporciona essa segurança, mas para mim sempre foi o último recurso, não o primeiro. Por fim, não posso saber. Ao me alugar a moto ele disse para "cuidar bem dela, pois vale 2 mil dólares. Você cuida bem da minha moto que cuido bem do seu passaporte". Logo, não cuida bem da moto, não se cuida bem do passaporte. Scams como overcharged gringos por problemas em moto é infelizmente normal. Por isso, nunca deixo meu passaporte original.
      Enfim, cada um pode tentar resolver o problema da maneira que achar mais conveniente. Foi o que fiz no calor do momento, foi uma história para contar e a minha perda foi diminuta perto do que poderia ser.
      Abs

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  4. É uma pena que depois de ler um artigo tão bom nos deparamos com comentários com alto teor de inveja.
    Pra mim esses artigos servem como inspiração.
    Com relação ao Trump, eu sou dos que torce para que os republicanos ganhem sempre, mas que discordo do radicalismo e das idéias malucas do Trump. Acho que os Democratas estão indo por um caminho muito perigoso, dando espaço para discursos como o do Sanders.
    Se acho radical o discurso do Trump, o do Sanders eu acho abominável.

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    1. Olá, colega. Grato pelo comentário, fico feliz que possa de alguma forma servir de inspiração para você artigos sobre viagens.
      Abs

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  5. Parabéns pelos artigos. Senti aflição ao ler a história da moto. Também já passei por situações difíceis em locais remotos. Mas nada perto disso.

    Uma hora dessas conta tua opinião sobre os sem-terra.

    Abraço
    Eduardo

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  6. Belo texto, muito legal.
    Conheço alguns países dessa região e eles são verdadeiras maravilhas culturais.
    A propósito, caso queiras visitar teu amigo Chines, caso seja em HK, não precisa de visto. Se ficares na ilha, não é necessário visa.
    Abraço

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  7. Olá, Dividendos! Grato pela visita, amigo.
    É verdade, são maravilhas culturais mesmo, e o povo é um caso a parte. O Cambojano está sempre sorrindo, muito legal mesmo.
    Sim, para HK e Macau não precisamos. O Estranho é que se eu estiver em mainland China e for para HK eu saio da China para efeitos de visto. Vou tentar conseguir um visto de duas entradas para um mês cada.
    Abraço!

    Eduardo,
    Valeu, colega. Grato pelo comentário.
    Abs

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    1. Sim, e o mais interessante ainda é que vc faz 2 borders. Um de saída da china e outro de entrada em HK em questão de 50 metros.

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  8. Olá,Soul.

    Continuo, obviamente, sempre acompanhando tuas postagens, tanto as financeiras como as de aventuras. As histórias para contar dariam talvez um livro por mês.

    Aproveitando que mencionastes acima a questão da LTI, eu te mandei um e-mail em dezembro passado tocando nesse assunto, não sei se chegastes a ler ou nem usas mais o gmail, mas é sobre uma alteração importante e inesperada que ocorreu.

    Acabei reenviando hoje, apenas porque a situação sofreu nova mudança no início de fevereiro e acho que terias interesse em ficar atualizado.

    Abraço,

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