quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

UMA DROGA PODEROSA : DEPOIS DE UM PERÍODO DE ABSTINÊNCIA, ONTEM A RECAÍDA

Sim, ontem tive uma recaída e abusei do consumo de uma droga poderosa. Ela é sedutora, e se infiltra em nossa vida sem que possamos dar conta. O pior é que às vezes nem se percebe que se trata de um entorpecente maléfico e muitas vezes, se não quase todas, é considerado algo positivo.

Depois de um período de quase dez dias em abstinência, ontem deixei a minha atenção e mente serem entorpecidos pelo fluxo de notícias. Para um brasileiro, ontem foi um dia para se prestar atenção no que acontecia com o julgamento do ex-presidente Lula. Adorado por muitos, detestado por muitos, uma parte significativa das pessoas prestou atenção ao que três juízes tinham a dizer sobre as alegações de corrupção e lavagem de dinheiro. Eu, brasileiro como qualquer outro, também devotei a minha atenção ao noticiário. “Oh boy”, como isso faz mal à saúde mental e a uma vida mais produtiva.

Eu há alguns meses venho modificando a minha alimentação. Carboidratos refinados muito dificilmente entram na minha dieta, assim como açúcar (na verdade todo carboidrato vai virar açúcar em seu organismo), a não ser eventualmente a frutose encontrada em diferentes quantidades com diferentes índices glicêmicos nas frutas. E o que isso remotamente tem a ver com o tópico dos dois primeiros parágrafos? Paciência, chego lá antes que os comerciais do programa de notícias do rádio terminem. Sábado passado, na festa de despedida de um bom amigo que está indo viajar para o exterior, comi um bom número de fatias de pizza, já que foi feito uma “noite pizzada”. No dia seguinte, me senti muito mal fisicamente. Parece que o meu corpo está se desacostumando a comer comidas que possuem a capacidade de produzir inflamação no corpo, ou seja, não muito saudáveis.

Foi exatamente o que aconteceu ontem. Eu tinha ficado uma semana sem ver absolutamente nenhuma notícia, em nenhum meio de comunicação. Não foi uma tarefa fácil, pois como estou a todo vapor na escrita do livro sobre leilões, constantemente estou sentando na frente de um computador escrevendo ou pesquisando algo na internet. É quase automático digitar algum endereço de notícias, seja brasileiro ou estrangeiro. Durante uma semana, nem mesmo isso eu fiz. Desintoxicação. Eu já passei diversas semanas, especialmente quando viajando em lugares mais inóspitos onde não tinha eletricidade, sem qualquer contato com as “notícias” do mundo. Invariavelmente, a sensação sempre foi de bem-estar e conexão com o momento, bem como com a realidade de uma forma muito mais forte. Tentei, portanto, fazer isso no meio do tumulto e das diversas distrações que os aparelhos eletrônicos hoje em dia proporcionam.

Consegui. No final do sétimo dia, me dei o “luxo” de olhar as notícias por uma hora, nem mais nem menos, colocando inclusive despertador para tanto. Meu cérebro ávido, como qualquer viciado talvez fique depois de um período sem entorpecimento, foi então olhar várias notícias. O Trump chamou países de “buracos de merda” ou algo parecido. A Caixa Econômica Federal teve funcionários do alto escalão acusados no envolvimento de condutas duvidosas. Uma apontada, filha do pivô do mensalão o ex-deputado Roberto Jefferson, foi impedida de tomar posse como ministra de alguma coisa. Deu 15 minutos, e eu sinceramente não agüentava mais, pois tudo aquilo me pareceu uma grande perda de tempo, um mecanismo engenhoso para capturar a atenção das pessoas sem fornecer nada significativo em troca. 

Um livro de Dostoiévski demanda muita atenção, mas ele proporciona algo em troca. Um livro mais profundo do Damodaran demanda empenho e atenção, mas ele proporciona um conhecimento de alto nível para aqueles que querem realmente entender sobre valuation de ativos. Um relacionamento forte com amigos, esposas, pais, demanda atenção, mas, se fortalecidos, eles nos proporcionam muita satisfação pessoal.

Porém, o que essa máquina de produção de pretensas notícias que não para um minuto sequer dá em troca pela nossa atenção? Nada, absolutamente nada. Aliás, pelo contrário, ela apenas nos retira. Ela retira o tempo para você ler Dostoiévski, Damodaran, Paulo Coelho, ou qualquer outro autor que possa lhe interessar. Ela rouba precioso tempo em que alguém pode gastar fortalecendo relacionamentos. Ela suprime valioso tempo em que a pessoa pode gastar com ela mesma, seja reparando no seu corpo, seja reparando na respiração, e construindo rotinas para que o organismo possa se fortalecer e melhorar. Ela inspira, quase sempre, os piores sentimentos nas pessoas: desesperança, indignação, ódio, medo (ah, principalmente medo, o mecanismo perfeito de dominação e convite à passividade) e futilidade.

Ainda pior, ela destrói a capacidade de se focar em algo com a intensidade necessária para produzir algo de valor. Ontem, ao deixar o meu cérebro vagar pelos diversos noticiários, comentários sobre o julgamento, eu não escrevi nada de novo no meu livro. Zero. Mesmo na minha rotina de não precisar trabalhar mais por dinheiro. Apenas como comparação, na semana que me abstive do consumo dessa poderosa droga, eu li seis dissertações de mestrado sobre um tema que estará no livro, li centenas de decisões judiciais, reformulei 70 páginas que já tinha escrito e escrevi algo entre 40 novas páginas. Surfei diversas vezes, malhei diversas vezes, li diversos artigos sobre temas relacionadas à saúde, iniciei práticas meditativas e de rituais ao acordar e ao dormir. Não tenho a menor dúvida que há pessoas muias vezes mais produtivas do que eu, mas fiquei bem contente com o resultado. No dia de ontem, não produzi nada de valor. Não li nada de novo para a minha vida. Fiquei como um verdadeiro zumbi entre uma noticia e outra, ao ficar ouvindo o voto dos desembargadores do Tribunal, ao ler comentários de analistas e cidadãos, em suma o dia passou.

À semelhança com o pós “noite da pizzada”, eu me senti mal. Não só intelectual, mas como fisicamente. Era dia de descanso da academia, mas resolvi às 18:00 pegar a bicicleta e ir à academia fazer qualquer coisa. Estava chovendo, e foi incrível pedalar na chuva. Na academia, fiz apenas um treino funcional, apesar de ser em alta intensidade. Pedalei novamente na chuva sem camisa, e a sensação da água caindo no corpo foi incrível. Parei num sushi, comi um combinado (comendo arroz branco refinado, mas enfim) e me senti muito, mais muito melhor de como estava me sentido antes da atividade física.

Esse fluxo de informação é tóxico. É prejudicial para o seu bem-estar, para o seus relacionamentos, e principalmente para a sua capacidade de produzir algo significativo.  O fluxo de desinformação de redes sociais e de fontes criadoras de notícias sem pé nem cabeça é pior do que tóxico, porque além dos problemas apontados acima, vai criando pessoas incapazes de realizar pensamento crítico, crédulas em tudo que é apresentado. Em alguns casos é ainda pior, pois vai instilando raiva e ódio em relação a grupos de pessoas ou idéias. Dessa toxidade mais perniciosa ainda bem que nunca fui muito atingido.

O blogueiro Corey escreveu no seu último artigo sobre silêncio. O silêncio não é só dos estímulos externos, mas também o silêncio da mente. As mentes estão tão inquietas que boa parte das pessoas não consegue mais apreciar o silêncio tão necessário para o equilíbrio do corpo e da mente, e em muitos casos para a produção de conteúdo de valor. O fluxo constante de notícias, de mensagens em mídias sociais, de comentários, impede que a mente se aquiete. Impede que ela se restaure. É possível que até mesmo impeça que novos conhecimentos mais aprofundados sejam formados. A quantidade de estudos, e livros baseados nestes, sobre os efeitos deletérios do fluxo constante de informações é simplesmente enorme.

Desintoxique. Se você pega o seu celular de manhã ao acordar para ver as notícias do dia, sem mesmo se olhar no espelho ver se acordou bem ou tomar um copo de água, você está viciado, e está lentamente adoecendo. Sinceramente, eu não sei se há níveis saudáveis de exposição a esse entorpecente. Porém, se é difícil se livrar totalmente desse vício, ainda mais no mundo onde vivemos onde tudo está conectado mas parece que as conexões verdadeiras humanas são cada vez mais raras, é possível sim diminuí-lo para que a sua toxidade seja mínima.  

E sobre o julgamento? O que se pode dizer? Uns ficaram tristes, outros alegres. Alguns juristas entendem que houve alargamento de conceitos, algo que ao menos em teoria não se pode fazer em direito penal, outros juristas entendem que não. Uns acreditam que Lula morreu politicamente, outros entendem que não. Uns acham que isso vai ajudar a reforma da previdência, outros acham que não. Uns acham que o mercado já tinha precificado a derrota por 3x0, outros acham que não.

O que eu acho é que o fluxo de notícias simplesmente não irá parar, e a pessoa irá pular de uma notícia para outra, de um “acontecimento importante” para o outro, e sem se dar conta, semanas, meses, e às vezes anos se passam no piloto automático. A pessoa de uma maneira inconsciente terá deixado que a sua atenção, o seu tempo (o que de mais precioso possuímos), tenha sido tomado, sem que nada, absolutamente nada tenha recebido em troca.

Um abraço a todos!

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

EU, VOCÊ E A MORTE DE IVAN ILITCH

“- Meus senhores, morreu Ivan Ilitch!
- Como assim?
- Aqui está. Pode ler – respondeu, e pôs nas mãos de Fiodor Vassilievitch o jornal que cheirava a tinta fresca.
(...)
Assim sendo, ao tomarem conhecimento da morte do colega, o que primeiramente ocorreu a cada um foi a possibilidade própria ou dos amigos nas promoções e transferência que ela iria provocar” (fls.19)


A morte. A não-existência. Como outros sentiriam a minha morte? Ficariam tristes? Seriam mesquinhos? Aliás, não sentir muita coisa e pensar em si, mesmo diante da morte de alguém, é mesquinho ou é simplesmente humano?


“Além das considerações sobre as prováveis promoções e transferências que a morte de Ivan Ilitch acarretaria, a própria morte de pessoa tão próxima deles despertou, como de costume, em cada um dos membros do Tribunal, a tranqüilizadora sensação de que escapara. ´Ora Bem!´ Ele morreu e estou vivo´ pensou e sentiu cada qual. Quanto aos amigos mais chegados de Ivan Ilitch, os chamados íntimos, unânime e involuntariamente consideravam os aborrecidos deveres a cumprir – acompanhar o enterro e fazer uma visita de pêsames à viúva” (fls.20)

Seria assim na minha própria morte? Será assim na morte da maioria das pessoas? Sempre me intrigou, e ainda intriga, que mesmo diante de sofrimentos atrozes de outros nós nos queixemos dos mais triviais aborrecimentos. Porém, será que não foi sempre assim? A empatia em relação ao sofrimento alheio, mesmo de conhecidos, é algo que nos torna mais humanos ou é apenas um código moral inatingível para boa parte da humanidade?

“A vida de Ivan Ilitch era das mais simples, das mais vulgares, e contudo,  das mais horríveis. Juiz do Tribunal falecia aos 45 anos.” (fls.28)

 Ivan Ilitch se forma em direito. Consegue então um cargo de grande importância junto a um governador provincial. A mocidade, e a alta posição social em tão tenra idade, permitem que ele se torne um bon vivant. Um Burguês, um Hustler dos tempos mais antigos. Alguém com maneiras decentes e elegantes, capaz de conviver nas mais altas camadas sociais com desenvoltura, relacionando-se com pessoas poderosas, aquelas relações as quais os entendidos modernos dizem que devemos cultivar para ter “um bom networking”,  e tirando proveito disso. A vida era boa para Ivan Ilitch

Teve, na província, uma ligação com uma dama local que se atirara no braço do jovem e elegante advogado e ainda um breve caso com uma modista; houve farras com oficiais da guarda pessoal do czar de passagem pela cidade, com idas, após a ceia, a certa rua afastada e de duvidosa reputação; havia uma certa bajulação ao chefe e à esposa do chefe, mas praticada de maneira tão elevada e distinta que não seria possível aplicar palavras desairosas. Tudo cabia no adágio francês: Il fault que jeunesse se passe. Tudo era feito com as mãos limpas, com camisas limpas, com frases francesas e, principalmente, no seio da melhor sociedade, por conseguinte com a plena aprovação das pessoas altamente colocadas.” (fls.30)

Depois de alguns anos, Ivan Ilitch se torna juiz. Ah, o poder. A sensação que se pode influenciar a vida de homens e mulheres se assim o desejar. A sensação de que se alcançou algo que a maioria dos homens não conseguiu. Ah, que sensação boa, a sensação de um vitorioso, de vitória, afinal a vida é feita de vitórias, e uma vida de sucesso só pode ser baseada em alguém que atingiu posições elevadas, um vitorioso, portanto.

Mas, agora, na qualidade de juiz de instrução, Ivan Ilitch sabia que todos, sem exceção, mesmo os mais poderosos e emproados, dependiam dele, e bastava que escrevesse umas poucas linhas num papel timbrado para que o personagem mais importante e mais auto-suficiente comparecesse à sua presença como acusado ou como testemunha e , se não quisesse, que ele se sentasse, ficaria de pé suportando a sua argüição. Jamais abusou de tal autoridade, muito pelo contrário, procurava atenuá-la, mas a consciência do poder e a possibilidade de abrandá-la constituíam para ele o principal interesse e a absorvente atração do seu novo encargo” (fls.31)

Ivan Ilitch então casa-se. Com moça de alta estirpe. Bonita, a mais bonita do círculo social que frequenta.  Porém, com o passar do tempo, a rotina familiar começa a pesar sobre sua vida. Uma esposa que não o compreende e o recrimina pelas mais insignificantes frivolidades. A vida familiar torna-se insuportável. É preciso achar um refúgio.

O seu objetivo consistia em se liberar cada vez mais das contrariedades domésticas  e dar a elas uma aparência inofensiva e decente; e consegui-o passando cada vez menos tempo com os seus, e quando era impraticável sair de casa, procurava resguardar a sua posição cercando-se de pessoas estranhas. O principal, porém, era manter a sua vida de funcionário. Todo o interesse da sua existência se concentrou no mundo judiciário e esse interesse o absorvia. A consciência da sua força que permitia aniquilar quem ele quisesse, a imponência da sua entrada no tribunal, a deferência que lhe tributavam os subalternos , seus êxitos com superiores e subordinados, e, sobretudo, a maestria com que conduzia  os processos criminais e da qual ele se orgulhava – tudo isto lhe dava prazer e lhe enchia os dias, a par de palestras com os colegas, os jantares e o uíste. Assim, a vida de Ivan Ilitch decorria de maneira que achava conveniente – agradável e digna” (fls.36)

Vários anos se passam, e agora Ivan Ilitch é juiz na capital.  Sua vida familiar deteriora-se, mas ele se aferra à respeitabilidade do seu cargo e da sua posição com mais força. Porém, uma dor surge em seu corpo. Meses se passam e a sensação é cada vez pior. Grandes médicos são consultados, mas nada de conclusivo dizem. A dor vai se tornando insuportável.  Então, Ivan Ilitch  questiona a sua mortalidade, numa das passagens mais primorosas da literatura mundial.

O exemplo de silogismo que aprendera no compêndio de Lógica de Kiesewetter – ´Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é Mortal` - sempre lhe parecera exato em relação a Caio, jamais em relação a ele. Que Caio, o homem abstrato, fosse mortal era perfeitamente certo; ele, porém, não era Caio, não era um homem abstrato, era um ser completa e absolutamente distinto de todos os demais. Ele fora o pequeno Vânia, com sua mamãe e papai, com Mítia e Volódia, com os brinquedos, o cocheiro, a ama e depos com Katienska e com todas as alegrias e entusiasmos da infância e da adolescência e da mocidade. Porventura conheceu Caio o cheiro da pequena bola de couro listrado de que Vânia tanto gostava? Por acaso Caio beijava a mão a mãe como Vânia? Era para Caio que a seda do vestido da mãe fazia aquele frufru? Fora Caio quem protestara na escola, por causa dos pastéis? Tinha Caio amado como Vânia? Seria Caio capaz de presidir, como ele, uma audiência?
´Caio é de fato mortal, e portanto, é justo que morra, mas quanto a mim, o pequeno Vânia, Ivan Ilitch, com todos os meus sentimentos e idéias, o caso é inteiramente outro. É impossível que eu tenha que morrer. Seria demasiado horrível” (fls.55)

Claro que os homens são mortais, mas a nossa própria mortalidade parece difícil de acreditar. Como é possível  que eu, presidente de uma multinacional, possa morrer? E os meus compromissos, e as minhas vitórias? Ou como eu, juiz de uma suprema corte, reverenciado por um séquito de subalternos posso ser mortal? Eu não!  Porém, a morte um dia chega seja você quem for, e Ivan Ilitch cada vez mais se dá conta disso. O seu sofrimento existencial começa a ser tão ou mais pesado do que o seu sofrimento físico. A impressão que ninguém se importa realmente com ele, amigos, familiares, é por demais dura.  As suas limitações físicas, ao seu olhar, se tornavam cada vez mais degradantes, nem mesmo suas necessidades fisiológicas mais simples ele era capaz de fazer.

“Mas foi exatamente graças a tão penosa circunstância que Ivan Ilitch experimentou um dado consolo. Quem sempre vinha limpar o vaso era o camareiro Guerássim. Tratava-se de um jovem mujique, asseado e saudável, que engordara um pouco com a comida da cidade, se mostrava sempre bem-humorado. No começo, Ivan Ilitch ficara constrangido com a presença daquele homem limpo, na sua branca roupa de camponês, desempenhando um serviço tão nojento.” (fls.58)
(...)
“Guerássim era o único que não mentia e tudo indicava que também era o único a compreender plenamente o que se passava e não considerava necessário ocultá-lo, singelamente condoía-se do patrão tão fraco e esquelético” (fls.61)

O único que via, sentia e tinha um sentimento de empatia era a pessoa responsável por limpar os dejetos de Ivan Ilitch.  Quão surpreendente não é isso? Ou não é surpreendente? O cuidar de outro ser humano.  O sentimento de cuidado. Não é isso que torna possível que empreendedores, pessoas de sucesso, existam em primeiro lugar? Quase sempre precisamos de alguém, quando somos frágeis, que nutra esse sentimento de cuidado e carinho em relação a nós.  A Mãe, o Pai, um Tio distante, um enfermeiro, um amigo, quão importante não podem ser? Quão essencial não é o cuidado em nossas vidas? Por qual motivo esse sentimento tão nobre é negligenciado, omitido e colocado em segundo plano tantas e tantas vezes?

“Depois, sossegou, deixou de chorar, prendeu a respiração, ficou atentamente ouvindo a voz que vinha silenciosamente, a voz de sua alma, a torrente de pensamentos que dentro dele se acumulara.
´O que é que tu queres?´ foi a primeira coisa que ouviu claramente.  ´O que é que tu queres?´ ´O que é que tu queres?´ repetiu. E respondeu: ´O que eu quero é viver. Viver sem sofrer´.
´Viver? Como?´ perguntou a voz anterior. ´Ora, viver como sempre vivi. Bem, agradavelmente´, respondeu. ´Como viveste antes, bem e agradavelmente?´, tornou a voz.
E ele começou a repassar na imaginação os melhores momentos de sua vida. Mas- coisa estranha! – tais momentos não lhe pareciam agora tão agradáveis como cuidava que fossem, salvo as primeiras recordações da infância.  Na meninice, sim, havia coisas verdadeiramente prazenteiras, que gostaria que se repetissem, se pudesse viver outra vez. Mas aquele menino estava morto, era como a reminiscência de uma outra pessoa.
Quando entrou a repassar o período que gerara o atual Ivan Ilitch, tudo que lhe parecera ser alegria se desmoronava antes os seus olhos, reduzindo-se a algo desprezível e vil. E quanto mais longe da infância e mais perto do presente, tanto mais as alegrias que vivera pareciam insignificantes e vazias. A começar pela faculdade de Direito. Nela conhecera alguns momentos realmente bons: o contentamento, a amizade , as esperanças. Nos últimos anos, porém, tais momentos já se tornaram raros. Depois, no tempo do seu primeiro emprego, junto ao governador, gozava alguns belos momentos: amara uma mulher. Em seguida, tudo se embrulhou e bem poucas eram as coisas boas. Para adiante, ainda menos. E, quanto mais avançava, mais escassas se faziam elas. Veio o casamento, um mero acidente, e com ele, a desilusão, o mau hábito da esposa, a sensualidade e a hipocrisia. E a monótona vida burocrática, as aperturas de dinheiro, e assim um ano, dois, dez, vinte, perfeitamente idênticos. E, à medida que a existência corria, tornava-se mais oca, mais tola. ´É como se eu tivesse descendo uma montanha, pensando que a galgava. Exatamente isto. Perante a opinião pública, eu subia, mas na verdade, afundava. E agora cheguei ao fim – a sepultura me espera´.
(...)
´Talvez eu não tenha vivido como deveria´, acudiu-lhe de súbito. ´Mas de que sorte, se eu sempre procedi como era preciso?´, e imediatamente afastou a única hipótese possível para o enigma da vida e morte” (fls.70-71)

Será possível? Mas eu fui atrás de uma boa posição social, do sucesso, afinal fui um vitorioso. Fui mesmo? Mas não é possível, como uma vida vivida de maneira decente, digna, com trabalho respeitoso pode ter sido uma forma errônea de se viver?

“Ponderou que aquilo que antes acreditava ser totalmente impossível, isto é, não ter vivido como deveria, podia ser verdade. Considerou que as pequeninas tentativas que fizera, tentativas quase imperceptíveis e que logo sufocava, para lutar contra o que era considerado acertado pelas pessoas mais altamente instaladas na sociedade, podiam representar o lado autêntico das coisas, sendo falso tudo mais. E que os seus deveres profissionais, sua vida regrada, a ordem familiar e todos os interesses mundanos e oficiais não passavam de grandes mentiras. Tentou defender tudo aquilo perante a si mesmo, e, de repente, atinou com a fragilidade da sua defesa. Não, não havia nada a defender.” (fls.75)

Será que é possível que o que se estima como verdade para uma boa vida não seja uma grande falsidade? Títulos, poder, dinheiro, conquistas, as cenouras que são colocadas na frente de nós coelhos-humanos, representam realmente uma vida prazerosa e de sentido ou será que não passam de ilusões? Há um meio termo possível ou não? 
Não sei. O que sei é que quanto mais o tempo passa, mais impressionado fico com algumas obras literárias, e o motivo delas serem verdadeiros clássicos. A primeira vez que li "A morte de Ivan Ilitch" tinha vinte e poucos anos. A segunda foi com trinta, e me causou uma impressão muito mais forte do que a primeira vez, já que eu vi muito de Ivan Ilitch em mim. Essa terceira vez, agora com 37 anos, foi significativamente mais perturbadora, mas de certa forma mais prazerosa, já que sinto que as reflexões que Ivan veio a fazer no leito da sua morte, quando em certa medida já era tarde demais, são questionamentos de extrema importância em minha vida ainda jovem e com saúde. 


“Aspirou profundamente, deteve-se no meio, inteiriçou-se e morreu.” (fls.77)

E assim termina uma das maiores obras da literatura russa.

obs: Citações retiradas do livro "As Obras-Primas de Leon Tolstói" da editora Ediouro, 2000.