quarta-feira, 20 de maio de 2020

CORONAVÍRUS - PARTE XI - VOCÊ NÃO PRECISA (NECESSARIAMENTE) TER UMA OPINIÃO SOBRE A CRISE COVID-19


Olá, colegas. Espero que estejam bem! Se ainda não leu nenhum artigo da série, convido a começar pela primeira parte.

          VOCÊ NÃO PRECISA TER OPINIÃO SOBRE TUDO

     Eu estava lendo um espaço da internet sobre o “vírus chinês”. O artigo era uma sucessão de senso comum, sem qualquer nuance num tema tão complexo. Não sei nem mesmo porque perdi o meu tempo com a leitura, já que o que mais tenho é coisa para ler.

   No meio do artigo, o autor dizia que “ainda não tinha uma opinião formada a respeito”, apesar dele já ter dado a opinião dele no decorrer do artigo, e o mesmo nem perceber a contradição entre as duas coisas.  

   Prezados leitores, vocês não precisam ter uma “opinião formada” sobre muitas coisas, especialmente sobre aquelas que pouco entendem ou dedicaram um escasso tempo para ao menos compreender os conceitos básicos.

         Sim, é uma tendência natural o ser humano querer ter uma opinião e ser ouvido. Claro que é. Adicione-se a isso a facilidade de ter acesso a uma quantidade enorme de informações sobre diversos temas de diversos lugares, e está feita a receita para que as pessoas sintam a necessidade de opinar sobre tudo.

       Eu sou imune a esse fenômeno? Claro que não! É possível tentar ao menos ter ciência dessa faceta da existência e procurar melhorar? Evidentemente que sim. Portanto, antes de opinar sobre se a política do Trump sobre o Irã faz sentido, primeiro, honestamente, pergunte a si mesmo se você sabe ao menos qual é a língua falada naquele país.  Trago esse exemplo à tona, porque já ouvi pessoas discorrendo sobre o Irã e quando perguntei qual era a língua falada lá, não faziam a mínima ideia.

        Como alguém pode ter alguma opinião sobre uma questão específica de um país, se não sabe nem mesmo qual a língua o país majoritariamente fala? Se não sabe a divisão geográfica, onde estão as montanhas, onde estão os desertos, quais são as minorias, qual a relação dessas minorias com o governo central, etc, etc. Isso é o básico do básico se alguém quer falar sobre o Irã.

                Tire Irã e coloque qualquer coisa, do menos ao mais complexo, e creio que o leitor pode ter dimensão do problema.

        Sim, a crise da COVID-19 está afetando a todos em maior ou menor grau. Somos bombardeados por inúmeras notícias e opiniões, e é perfeitamente compreensível a necessidade da pessoa querer ter e fazer que a sua opinião seja ouvida. Mas, pensem comigo prezados leitores, se alguém não sabe o que é um ensaio clínico duplo cego randomizado, como essa pessoa pode ter qualquer opinião sobre a Hidroxicloroquina? É o equivalente de falar sobre nuances da política do Irã, sem saber a língua que se fala lá. Ou seja, é uma tolice sem tamanho.

      Saber o que é cegar duplamente um experimento, e o porquê disso ser fundamental para a análise de hipóteses (especialmente no que tange a tratamentos e drogas), é meio que uma condição antecedente necessária para se ter alguma opinião que faça algum sentido sobre se a Cloroquina deve ou não ser aplicada em pacientes que contraíram o SARS-CoV-2.

       Eu fiquei muito feliz em receber uma mensagem de um leitor que por conta própria estava tentando entender as notícias sobre exames. Ele disse que assistiu o vídeo indicado por mim (sobre teorema de bayes e exames médicos) algumas vezes, e ainda não tinha compreendido bem. Normal, nem eu compreendo bem ainda. Mas, esse leitor, percebeu que para ter uma opinião sobre um tema específico da crise COVID-19 (no caso exames sorológicos) , entre tantos outros temas, ele precisava entender um monte de conceito antes.

     Não é fácil, ninguém disse que era. Não é certo, e ninguém disse que era. A vida é assim mesmo. Não é à toa que o W. Buffett e o seu parceiro Munger dizem que passam horas e horas lendo e refletindo. Alguém acha que é fácil formar opiniões sólidas num mundo envolto em complexidades e incertezas das mais variadas ordens?

     Eu sei que muitas pessoas acham que é fácil. Mas não é. Já disse várias vezes aqui. Fujam de gurus prometendo explicações simples para o mundo e as mais variadas facetas do complexo relacionamento humano. Seja esse guru à esquerda, à direta ou ao centro.

       Por que essa série já teve 10 artigos, e cada um tratando de vários temas diversos? Porque estou “enrolando”?  Não, porque eu estou devotando o meu tempo em entender os mais diversos aspectos dessa crise, inclusive os de ordem técnica. E, quanto mais leio e estudo, mais complexo e difícil tudo vai ficando. O que compartilho aqui é apenas uma fração do que leio.


                Meu pai já me dizia que nós nascemos com dois olhos e duas orelhas, e apenas uma boca, por um motivo. Ele também me dizia para sempre observar o ambiente antes de abrir a minha boca. Ele também ensinava para dar a minha opinião apenas se perguntado (algo que com quase 40 anos estou apenas agora compreendendo a profundidade desse ensinamento).

      Portanto, não, você não precisa ter opinião sobre tudo. Na verdade, é até prudente que você não o tenha.


PRÓXIMO PODCAST


   Meus amigos, muito obrigado pelo feedback sobre o podcast. Levarei todos em consideração.  A sugestão de fazer podcasts mais curtos intercalados com outros mais longos será acatada. Os mais curtos terão duração de 15-30 minutos, e serão, ironia, opiniões minhas sobre algum assunto, resposta a leitores-ouvintes, ou uma entrevista curta com alguém sobre uma determinada questão.

                Pretendo lançar esses episódios de forma semanal. As entrevistas mais longas, mais densas, pretendo fazer uma a cada 15 dias. Por qual motivo? Pois eu realmente quero me preparar. 

  Por exemplo, há uma probabilidade enorme da próxima segunda-feira eu entrevistar a cientista Natalia Pasternark. Ela vem se destacando nas últimas semanas dando entrevistas na Globo News, CNN, etc.  Ela é extremamente técnica e bem versada, e quero fazer um podcast à altura, e não apenas uma entrevista que não acrescentaria nada no que ela já disse em várias outras entrevistas. Esse preparo toma tempo. É algo que estou gostando muito de fazer, porém.
               
FIM DO BLOG PENSAMENTOS FINANCEIROS

      E, depois de seis anos, esse espaço está com os dias contados. Será o fim do “Pensamentos Financeiros” no formato atual. Só tenho a agradecer tudo que aprendi e os amigos que fiz.

Um abs!

quinta-feira, 14 de maio de 2020

MUNDO SOUL PODCAST ESTÁ NO AR!!

  Anchor - https://anchor.fm/mundosoul
Spotiffy- https://open.spotify.com/show/3RVLyhN1MUbNsCIIMZ9MxF 

Olá caros leitores!

   O meu primeiro podcast já está no ar!  O primeiro entrevistado foi um leitor desse espaço, professor universitário de ciências biológicas, que me mandou um e-mail com um arquivo anexado de mais de 10 páginas com reflexões pessoais dele sobre a atual crise.

  Eu achei tão interesse que resolvi entrevistá-lo, e o resultado ficou acima das minhas expectativas pela qualidade do entrevistado.

 Já também está em "produção" o novo site, como não tenho habilidade e tanta paciência, contratei uma designer recomendada por outro leitor desse espaço. 

 E o que quero com isso? Um amigo blogueiro me mandou a foto de um casal que veleja pelo mundo, e dava para ver o encantamento dele com as fotos. Imagens lindas. Eu, porém, já tive o privilégio de  viajar por lugares remotos como o interior da Mongólia, lindos como regiões tibetanas na China, morando num carro por seis meses na Nova Zelândia e Austrália, entre tantas outras experiências.  

 Eu já vi muita coisa nesse mundo, e isso me ajudou muito a formar o meu atual caráter.  Atualmente, percebo, mais do que necessariamente viajar, possuo uma vontade ainda maior de construir relações significativas com meus semelhantes, pois de há muito percebi que as minhas melhores fotos das inúmeras viagens que fiz são aquelas onde havia pessoas com as quais compartilhei algum momento da minha breve existência. 

 Por meio desse modesto espaço, eu já conheci diversas pessoas e todas as vezes a experiência foi bacana. Portanto, pelo feedback que recebo de alguns leitores, vi que faria bem para mim expandir um pouco e tentar tornar o espaço algo visualmente mais bonito, e quem sabe crescer um pouco a audiência.

  O Podcast era algo que eu tinha há muito tempo em mente, depois de conhecer os diversos podcast de qualidade americano. Eu creio que há espaço para algo semelhante no país, com as nossas limitações é claro. Eu creio que poderia, se me for dada a oportunidade, extrair boas informações de pessoas inteligentes sobre os mais variados assuntos.

  Se serei bem sucedido? Só o tempo irá dizer. Mas, o que é sucesso? Fazer algo que me agrada, e que de alguma maneira possa ajudar algumas pessoas a ampliar o conhecimento sobre o mundo ou ter alguma reflexão relevante já não seria sucesso? Na minha percepção, seria.

 Por isso, convido a todos que gostam desse espaço, a ouvir o primeiro podcast. Podem deixar sugestão, críticas construtivas, etc, etc. Talvez tenha ficado muito longo, talvez a minha voz não é das melhores, pode sugerir qualquer coisa, que irei me esforçar para melhorar.

 Se gostar do podcast, peço que siga o programa na própria plataforma escolhida. E, mais importante, compartilhe com familiares, pessoas que conhecem, etc, para que o espaço possa crescer de forma orgânica. Ah, e compartilhe se você quiser e achar que vale a pena, se não gostar do podcast, sem problemas!

  Um grande abraço!

Links -  Anchor - https://anchor.fm/mundosoul

Em breve, outras plataformas serão adicionadas

sexta-feira, 8 de maio de 2020

CORONAVÍRUS - PARTE X - MODELOS

     Olá, prezados leitores. Como sempre, sugiro a leitura dos artigos anteriores da série. Comece pela Primeira Parte


SE VOCÊ QUER PROFECIAS, NÃO PROCURE MODELOS


     Pelos comentários que esse espaço vem recebendo, e por comentários que venho observando nos mais variados programas, eu creio que conceitos básicos ainda não foram bem entendidos. Quem vem lendo essa série, com a devida atenção, provavelmente já tem alguns conceitos mais solidificados.

     Volto a dizer: modelos são aproximações da realidade, eles não são a realidade. Repita comigo, você que ainda não entendeu: MODELOS SÃO APROXIMAÇÕES DA REALIDADE, ELES NÃO SÃO A REALIDADE. Mais uma vez: MODELOS SÃO APROXIMAÇÕES DA REALIDADE, ELES NÃO SÃO A REALIDADE. Para que fique claro só mais um vez: Modelos são aproximações da realidade, eles não são a realidade. 

     O meu primeiro entrevistado, do meu futuro podcast, muito bem falou que modelos não são oráculos proféticos sobre o que vai acontecer, ainda mais em sistemas complexos como modelagem de uma epidemia de um patógeno novo.

   Sim, na entrevista ambos concordamos que a esmagadora maioria das pessoas, ainda mais num momento como esse, querem certezas. "A Vacina sai até o final do ano?". A pergunta não é "Uma vacina vai mesmo sair?". Se não me engano, a vacina mais rápida produzida no mundo demorou quatro anos. "O Pico da infecção vai ser no dia 12 ou 14 de maio"? "A economia vai voltar à normalidade em três meses ou quatro meses?".
     
    Se um cientista sério, baseado num modelo, disser que ele não tem como responder as perguntas acima, ele, por boa parte das pessoas, vai ser ridicularizado, esquecido ou às vezes, a depender dos ânimos, agredido. Prezados leitores, modelos tentam modelar, no caso de uma pandemia por um vírus novo, algo completamente incerto. Não há qualquer certeza sobre o que vai acontecer.  Quem diz o contrário está simplesmente equivocado ou de má-fé.

      Portanto, modelos são aproximações que tentam de alguma maneira fornecer alguma forma de refletir sobre a realidade. Entenda isso, prezado leitor, e a sua vida tornar-se-á muito mais incerta, mas a sua compreensão da realidade ganhará alguns graus de profundidade.

MICHAEL OSTERHOLM


   Outra coisa que as pessoas, nos últimos comentários, estão se perdendo um pouco é sobre fontes. Eu indiquei o biólogo Átila, não porque o acho a melhor fonte de conhecimento sobre a eventual crise, ele está longe de ter esse conhecimento.  Eu já indiquei diversas fontes de uma qualidade absurdamente alta de renome internacional. Um deles chama-se Michael Osterholm. Foi ouvindo uma entrevista dele no Joe Rogan há dois meses que eu percebi que a crise seria realmente séria, e que muita coisa mudaria, pois era nítido que o cara sabia do que estava falando.

   Eu já indiquei inclusive um livro dele escrito em 2017 sobre pandemias. No capítulo 13 do livro em questão, ele trata sobre uma provável nova pandemia de um novo coronavírus tão ou mais contagioso como um vírus Influenza. Alguma relação com o que está acontecendo? Esse cara estava em Hong Kong como um investigador em 2002 no surto do SARS-CoV-1. Ele estava em Dubai em 2012-2013 no primeiro surto da MERS-CoV. Ele em 2015 disse que o MERS aparecer em algum centro urbano era questão de tempo, meses depois estourou um surto na Coréia do Sul matando 38 pessoas de quase 200 infectados (ou seja uma letalidade absurdamente alta de 20%) (1).

    O cara vive há 40 anos estudando surtos epidêmicos ao redor do mundo. Você, prezado leitor, quer informação melhor do que essa? Quem no Brasil já citou, dos diversos textos que li, Michael Osterholm? Ninguém. Zero. Nem mesmo o professor universitário de ciências biológicas que entrevistei o conhecida. Ele possui um podcast apenas sobre essa crise, e libera um episódio semanal, que sempre ouço no mesmo dia (2). Um dos órgãos que ele participa está soltando informes semanais desde a última semana, e eles são a coisa mais sensata e técnica que se pode ler sobre o assunto (3).

    Portanto, eu cito o Atila Iamarino pois ele produz vídeos simples, objetivos, com boas informações todas elas trazidas do exterior. E principalmente porque é em português. Quem vai ouvir uma entrevista técnica com um especialista em inglês? Aliás, quem consegue entender com a fluência necessária uma entrevista dessa? Mesmo um público seleto como desse blog, talvez 5%, no máximo 10% tenha a proficiência necessária da língua.  Portanto, diversas fontes de altíssima qualidade já foram fornecidas nesse espaço, e todas elas são, infelizmente, em inglês. Para uma boa fonte de informação em português acessível para o cidadão médio, sim os vídeos do biólogo brasileiro é uma boa fonte para ser ter um quadro geral do ponto de vista científico.

    Agora, se o cientista brasileiro citado é comunista, se ele fala bem ou mal da China ou EUA, isso deveria ser de tudo desimportante para quem é leigo em ciências biológicas, pois não tem qualquer relevância. Você que pensa assim deveria se importar apenas com a qualidade do assunto técnico tratado por ele, se não puder ter acesso a fontes estrangeiras.

Fica de novo a dica. Se você quer ir direto à fonte dos maiores especialistas aqui esta uma delas, não precisa de um tradutor brasileiro. Porém, se a língua, conhecimentos técnicos, tempo, são impeditivos, sim há pessoas produzindo bom conteúdo em português.



MODELO OXFORD X MODELO IMPERIAL COLLEGE - A DIFERENÇA É NA TAXA DE FATALIDADE DA DOENÇA E/OU POPULAÇÃO SUSCETÍVEL


   Leitores, eu falo aqui de "modelo oxford" ou "modelo imperial college" apenas como uma aproximação da realidade. Leia a Parte IV para mais detalhes sobre esse tema A grande e única discussão é sobre o grau de fatalidade da doença. Ponto. Se uma cidade-país tem uma população de 10 milhões, e morrem 10 mil pessoas, isso pode ser uma notícia não tão ruim se 50% das pessoas já tiverem sido infectadas - "Modelo Oxford". Porém, a notícia pode ser péssima  se 10% das pessoas foram infectadas - "Modelo Imperial College" (4). É isso. Ponto.

     E qual a diferença? Num, o vírus se alastrou pela população, causou muitas mortes sim, mas a sociedade já pode se preparar para voltar à normalidade. No outro, o vírus nem de perto se alastrou por uma parcela significativa da população e tem a probabilidade de ocasionar muitas mais mortes, com consequências nefastas na economia e no próprio sistema de saúde.

     E quem está certo? Só dados poderão responder. Só exames em massa de anticorpos de testes de boa qualidade (altíssima especificidade e ótima sensibilidade - vide Parte VIII - Imunidade e Testes) em populações que passaram por um grande surto.

    Mas os dados do Imperial College estão obviamente errados, muitos afirma, sem nem ter aberto o paper orginal, e eles já produziram dezenas deles desde o início da crise. Qual dado especificamente? De volta para um dos maiores especialistas do mundo no assunto o Sr. Michael Osterholm "Modelos todos podem fazer, sejam mais ou menos complexos, forneça a sua IFR e a população suscetível e começamos daí a conversar". 

   No exemplo da cidade de 10 milhões de habitantes. Qual é a população suscetível para um novo vírus? 20% da população? 30%? 75%? Há imunidade natural ou todos são suscetíveis? Tendo essa premissa, qual é a fatalidade da doença sem contar com colapso da saúde: 1%? 0.5%? 0.001%? Com isso, prezados leitores, você já pode entender, nos fundamentos ao menos, qualquer modelo epidemiológico para essa doença, e pode questionar se os fundamentos fazem sentido ou não.

   Muito se fala dos números exagerados do modelo original do Imperial College. É possível que seja exagerado mesmo. Mas onde estaria o exagero? No índice de fatalidade da doença? Ou na População Suscetível? Para se ter uma ideia, na modelação inicial para EUA e Reino Unido, a IFR foi fixada como um todo em 0.9%, e para cidades como NY e Londres em 0.6%, porque essas cidades possuem populações mais jovens do que o resto dos respectivos países.

    E para o Brasil?

                           
     

          Essa é uma modelagem para o país. Veja, prezados leitores, há cenários de supressão que eles dizem ser distanciamento de 75% da população. Há cenários de mitigação maior ou menor, com mais foco ou não em idosos, e com números de R0 variáveis de 2,4 a 3. Todos esses números de R-Naught são absurdamente altos. Os países que pensam em (re)abrir suas economias devem trazer esses números para abaixo de 1, e se quiserem margem de segurança para bem abaixo de 1. 

      Aqui estão os números. Os infectados, a depender do cenário, variam de 5% da população (11 milhões) a aproximadamente 85% (187 milhões). As IFR variam de 0,6% no pior cenário até 0.4% no melhor cenário. As mortes variam de 1.150 milhões até 44 mil. E qual é a diferença enorme para tantas mortes? Não é a fatalidade da doença, mas sim o número de pessoas infectadas. Simples assim. 

      

QUAL É IFR MAIS PROVÁVEL?  DADOS ATÉ O MOMENTO


       A única maneira de saber o real índice de fatalidade é saber o número de mortos e o número real de infectados. No brasil, conforme visto no último artigo Parte IX - Subnotificação, há até mesmo um problema enorme no número de contagem de mortes. Os números oficiais não condizem com a realidade, já que todos os indícios apontam para no mínimo o dobro de mortos pela COVID19. Cito isso, pois se parte do princípio de que não se poderia contar errado a morte, mas é o que se está fazendo no Brasil.

     Entretanto, a grande discussão é sobre o número de infectados assintomáticos e, ou, com sintomas leves. Sem testes de toda a população, não tem jeito, será preciso realizar testes de anticorpos e estimar o número de infectados atuais e passados. Isso foi explorado à exaustão na Parte VIII.

    Há inúmeros problemas com testes de anticorpos. A qualidade dos mesmos é algo que interfere muito nos resultados, especialmente se a incidência da infecção na população é pequena. Em lugares onde a crise foi imensa, e onde a testagem é feita num número muito grande, é possível que os números sejam mais confiáveis, simplesmente porque o "sample size" é maior, e porque a incidência é maior, aumentando o poder positivo preditivo.

    Não consigo pensar num exemplo melhor do que a cidade de Nova Iorque, bem como o estado de Nova Iorque. Eles estão fazendo dezenas de milhares de testes. Resultados preliminares em 02 de maio, conforme o governador do Estado:


Aproximadamente 12% da população do Estado de NY possui anticorpos, ou seja foi infectado

Para cidade de NY o número é de aproximadamente 20%



     A população da cidade de NY é de aproximadamente 8.4 milhões. A do Estado de NY é de aproximadamente 19.5 milhões.  Sendo assim, aproximadamente 1.7 milhões de habitantes da cidade teriam/estão infectados (8.400.000 x 20%). Já no Estado seria aproximadamente de 2.350 milhões (19.500.000 x 12%). Pode ser um pouco mais, pode ser um pouco menos, mas parecem números compatíveis com os resultados dos exames de anticorpos.

     E o número de mortos? Conforme o site worldmeters, há algo em torno de 27 mil mortes no Estado. Já em algumas outras fontes, o número é de aproximadamente 21 mil mortes. A diferença se dá porque há algo em torno de 5.500 mortes creditadas como prováveis por COVID19, e isso se deu porque foram, se não me engano quando eles reconheceram em meados de abril, de pessoas que morreram em casa com sintomas respiratórios. 

  Dados bem completos podem ser encontrados diretamente no site da cidade de NY sobre o tema (5). Mesmo com o acréscimo dessas 5.5 mil mortes, ainda haveria excesso de mortalidade de alguns milhares ainda não contabilizados, conforme reportagem recente do NYT. Portanto, creio que o número de 27 mil o mais fidedigno, sendo conservador. Para a cidade a mortalidade é de aproximadamente 20 mil pessoas.

      Se a IFR é igual a divisão do número de mortos pela população efetivamente infectada, a IFR para a cidade de NY atualmente é de 1.17% (20.000/1.700.000). A do Estado e de 1.14%. Essa IFR, porém, é provavelmente maior, razoavelmente maior. Por qual motivo? Porque, conforme já explicado em artigos , há uma demora entre a infecção e a morte que vai de 30 a 45 dias. Por isso, que a curva de descida das mortes é um processo bem demorado, conforme Itália, Espanha e França vem demonstrando. Há 257 mil casos ativos, ou seja de pessoas com algum sintoma, no Estado de NY. 

  Portanto, não seria de se estranhar que esses casos ativos redundasse em 2% de mortes, acrescentando algo em torno de mais 5000 mortes. Isso levaria a IFR da cidade e do Estado para algo em torno de 1.5%.  Sim, um número absurdamente alto, isso na cidade mais importante do mundo do país mais poderoso do mundo. Não é em Manaus, ou em Manila, mas sim Nova Iorque. 

    Talvez NY seja um aviso de que se a epidemia sai fora de controle num grande centro, mesmo sendo um centro rico, com os melhores médicos, melhores equipamentos, a IFR pode ser superior a 1%. O que é um aviso sinistro, pois conforme a seção anterior o cenário mais pessimista de IFR para o Brasil segundo o Imperial College é de 0.6%.


       A cidade de NY é um exemplo de que o modelo de oxford não se mostrou acertado, ou seja, uma IFR na faixa de 0.1-0.15%. Aliás, longe disso.

     E quando a crise acontece numa cidade de um país sem estrutura, mas não tão mais pobre que o Brasil como o Equador? Aí, meus amigos, são cenas de horror. Na cidade de Guayaquil há aproximadamente 10 mil mortes em excesso nos meses de março e abril. No ano de 2019 nos meses de março e abril nessa cidade morreram 2900 pessoas. Nesse ano, foram quase 13 mil pessoas. Sim, 10 mil mortes a mais. Os números oficiais dizem que morreram apenas 500 pessoas na cidade. O sistema lá colapsou de todas as formas (6). Como a população da cidade é de aproximadamente 2 milhões, a mortalidade em excesso é de algo em torno de 0.5% de toda a população

         Para se ter uma ideia, uma mortalidade em excesso de 0.5% da população brasileira inteira seria mais de um milhão de brasileiros. Não sei se a cidade de Guayaquil vai fazer testes de anticorpos em massa. Eu acho que não. E se apenas 10% da população tiver sido infectada? Isso quer dizer que seria uma IFR de aterradores 5% (10 mil/200 mil). 

  Espero, sinceramente, já que o Equador é um dos únicos países que não conheço em nosso continente, e gostaria muito de conhecer, que o número de infectados lá seja de 40-50%, e eles estejam próximo de Herd Imunnity depois de tanto sofrimento. Mas, Guayaquil é um alerta sinistro do que pode estar acontecendo em Manaus, Recife, Belém e Fortaleza nesse exato momento.

     Eu, particularmente, de tudo que eu vi e li, acredito que o limite para a IFR se for um bom sistema de saúde, se não houver um colapso, se os médicos estiverem bem equipados e protegidos, se houver uma liderança séria e um povo unido, é no mínimo na faixa de 0.3%-0.4%.



POPULAÇÃO SUSCETÍVEL

     
   Em teoria, um vírus novo pode infectar 100% da população. É o caso do SARS-CoV-2? Ninguém sabe. Será que há 50% das pessoas que são naturalmente imunes por alguma questão genética? Será que a exposição a outros coronavírus que causam gripe (há quatro deles) de alguma maneira fornece imunidade contra esse novo vírus? Não se sabe. Será que o vírus depois de infectar 15-20% da população simplesmente desaparece? Ninguém sabe. Será que o verão americano vai extinguir o vírus lá? Ninguém sabe

     Portanto, não se sabe o tamanho da população suscetível a ser infectada. Eu acho que o que faz mais sentido é presumir que todos podem ser infectados, sendo que boa parte, ou a imensa maioria será assintomática ou terá sintomas leves. Então, como todos podem ser suscetíveis, o vírus teoricamente apenas deixaria de ser epidêmico depois que uma parte da população se tornar imune, no conceito conhecido como imunidade de rebanho que é estimado em torno de 60-70%.

     Há um conceito, porém, que a mídia brasileira não trata bem, se é que já tratou, que é o conceito de overshooting. A ideia é basicamente a seguinte: se 60% garante imunidade de rebanho, mas se todos se infectam rápido demais, há um aumento acima de 60% de pessoas infectadas.  Se o R-Naught cair abaixo de 1, indicando que uma pessoa infecta em média menos de uma pessoa, mesmo assim o número de infectados cresce. 

   Se numa população de 50 milhões de pessoas, por exemplo, 60% já tenham sido infectadas (30 milhões), mas 20 milhões de pessoas estejam atualmente infectadas  com o vírus e o R-Naught caia para 0.5, isso significa que mais 10 milhões de pessoas ainda seriam infectadas (uma nova pessoa infecta em média 0,5 pessoas, logo 20 milhões de pessoas infectariam 10 milhões), levando o número total de infectados para 40 milhões, ou 80% da população, mesmo que a imunidade de rebanho fosse atingida com apenas 60% da população. Esse efeito é diluído se as infecções acontecem espalhadas no tempo, mas é muito mais acentuado se a infecção da população ocorre rápido demais.  Sobre imunidade de rebanho, sugiro a leitura Parte V.

    Um leitor atento, e o tema precisa de atenção, talvez tenha olhado com o devido cuidado os números do Imperial College para o Brasil e percebido uma inconsistência de achar que 85% da população poderia ser infectada, mesmo com um R0 de 3, que produz imunidade de rebanho com 70% da população. Esses 15%  a mais muito provavelmente é modelagem de overshooting, especialmente porque é o cenário onde nenhuma atitude fosse tomada.

   IFR e população passível de ser infectada, as duas premissas que qualquer pessoa precisa ter em mente para analisar qualquer modelo.


O PICO DA INFECÇÃO NÃO QUER DIZER ABSOLUTAMENTE NADA SE APENAS UMA PEQUENA PARCELA DA POPULAÇÃO FOI EXPOSTA AO NOVO VÍRUS. É APENAS A PRIMEIRA BATALHA, NÃO O FIM DA GUERRA


      "O pico no nosso modelo acontece entre 04 de maio a 10 de maio". Sim, e? Pico relacionado ao quê? O cidadão médio não está entendendo esse conceito, e eu o trouxe com maior detalhe na Parte V. Achatar a curva, deprimir a curva, demolir a curva, não irá fazer com que o vírus desapareça. Ele pode ser controlado com extremas medidas de segurança, testagem e controle da população, como está sendo feito na Coréia do Sul, China e Taiwan. A curva pode ser domada como o foi pela Austrália e Nova Zelândia


     Porém, enquanto houver focos de contaminação no mundo, nenhum país está seguro de novos surtos, se a sua população não possui imunidade. Ponto. Não entender isso, as autoridades não comunicarem isso com clareza ao público, vai criar e já está criando extrema frustração para as pessoas que em alguns lugares já estão 30-40 dias sob medidas de restrição. 

    Um amigo meu quis comparar a nossa ilha de Santa Catarina com a ilha da Nova Zelândia no combate à pandemia.  Sério, não precisamos desse escapismo, a hora é séria, talvez uma das mais graves das últimas décadas, da minha geração com certeza, e precisamos de realismo.

Sim, a NZ esmagou a curva

     A Nova Zelândia é longe de praticamente tudo. É uma ilha onde a entrada de quase todos os estrangeiros se faz por aeroportos. É uma população de aproximadamente cinco milhões de pessoas, razoavelmente esparsa. É liderado por uma mulher com M maiúsculo.  É um país com forte senso de identidade. É um país rico. É um país educado.  Etc, etc.  Eles talvez consigam manter o vírus longe do país ou sob controle, se puderem testar, fazer rastreamento, quarentena de estrangeiros que chegam, etc. Talvez seja possível. Ninguém sabe ao certo. Mas em nada, absolutamente em nada, se compara com a situação da ilha de Florianópolis. Ainda mais agora, onde o vírus saiu completamente de qualquer controle das autoridades brasileiras.
    

   A "Gripe Espanhola" é dita que ocorreu em 1918. Sim, mas o que não se fala muito é que houve ondas sucessivas de contaminação, sendo que a segunda e terceira ondas (ocorrida em 1919) foram muito mais mortais

                                     
Será que o Sars-cov-2 terá o mesmo comportamento? É o que alguns especialistas prevem para os EUA, que eles estão ainda na crista da primeira onda, e a segunda onda a começar no outono pode ser muito maior e mortal, especialmente se vier cumulada com uma temporada forte de Influenza.



    Ninguém sabe ao certo. O grupo de Michael Osterholm propõe 3 cenários. O primeiro cenário é de picos sucessivos de contaminação, onde a atividade comercial vai e volta a depender de cenários de R-Naught, leitos de UTI disponíveis, etc, etc. É o que um grupo de Harvard modelou de cenários intermitentes como esse até 2022. É o cenário do Do Martelo e da Dança descrito na Parte VI. Há o cenário de ondas sucessivas maiores a começar no outono americano. E o último cenário, que não foi visto em nenhuma das últimas 8 pandemias de influenza nos últimos 250 anos, que o vírus tem um pico inicial e vai se extinguindo aos poucos até 2022.





     Portanto, ou a população já foi exposta ao vírus em sua imensa maioria, ou nós vamos conviver com isso, a não ser que haja uma vacina em tempo record, por bastante tempo. Ficar falando de pico como se ao passar o "pico" tudo teria se resolvido, é uma grande ilusão, a não ser que o "modelo oxford" realmente esteja correto, e a IFR seja em níveis menores do que 0.1%.


"MODELO SAMY DANA"


     Por fim, me foi perguntado algumas vezes sobre o "Modelo Samy Dana". Conversei sobre ele no meu primeiro podcast com o professor universitário. Para quem não sabe, esse não é um modelo Samy Dana, mas ele é o "garoto propaganda". Há uma equipe formada por médicos, matemáticos e pelo próprio Samy Dana.  E aqui, deixo já expressado, absolutamente nada contra ou desrespeitoso ao economista e sua equipe. Pelo contrário, acho louvável brasileiros tentarem modular algo para a realidade nacional.

  Cada um, imagino, depois desse artigo, na verdade depois dos nove artigos anteriores, pode analisar por si só a força do modelo, sem precisar de grandes conhecimentos matemáticos ou de modelagem. Sabe qual é a IFR desse modelo? Segundo palavras do próprio Samy Dana a IFR no cenário mediano é de 0.05% (7).  Não, você não leu errado. Vou repetir: a IFR desse modelo é de 0.05%. É só 8-10 vezes menos do que os cenários mais realistas de países de primeiro mundo  onde o sistema de saúde não vai ruir, e talvez 20-25 menos do que aconteceu na cidade de NY. Eu não acho nem um pouco crível. Na verdade, o "modelo Samy Dana" nada mais é do que o "Modelo Oxford". Sendo assim, com uma IFR de 0.05%, mesmo que 50% de brasileiros sejam infectados, 50 mil brasileiros morreriam. 

   Um número alto, com certeza, mas muito menor que os cenários piores. E na real, é o que eles projetam, com o número de mortes até o final de maio em aproximadamente 40 mil. O que eles deveriam dizer claramente, é que o modelo estima que até o final de maio 80 milhões de pessoas teriam sido infectadas, para que a IFR de 0.05% faça sentido, ou seja 40% da população (8).  Até porque pelo modelo, ao menos na apresentação, ninguém morre mais por COVID19 no Brasil a partir de junho de 2020. Sim, a curva de mortes se torna flat.

   E como se chega numa IFR tão baixa assim? Porque segundo o economista para cada uma pessoa testada positiva com sintomas, há nada mais nada menos do que 99 pessoas assintomáticas ou com sintomas bem leves (7). Sim, um fator de 99 para 1. É crível? Eu tenho a minha opinião de que não, não é nada crível pelos dados que vem de todo o mundo. Mas, leitor, você já está suficientemente informado para fazer a sua própria análise.

  Um abraço a todos!




(1) https://www.who.int/westernpacific/emergencies/2015-mers-outbreak
(2) https://www.cidrap.umn.edu/covid-19/podcasts-webinars
(3) https://www.cidrap.umn.edu/covid-19/covid-19-cidrap-viewpoint
(4) num a fatalidade da doença é de 0.2% e no outro é de 1%.
(5) https://www1.nyc.gov/site/doh/covid/covid-19-data.page
(6) https://edition.cnn.com/2020/05/07/americas/ecuador-coronavirus-missing-intl/index.html - relato guayaquil
(7) https://www.youtube.com/watch?v=FWoxyVEZ1JI&t=1504s - entrevista Samy Dana da semana passada final de abril de 2020
(8) https://investnews.com.br/relatorios/relatorio_covid_v2.pdf - fls.32 da apresentação do modelo






terça-feira, 5 de maio de 2020

CORONAVÍRUS PARTE IX - BRASIL - O PROBLEMA DA SUBNOTIFICAÇÃO


                Olá, prezados leitores. Antes de tudo, informo que já gravei o primeiro podcast. Foi uma entrevista com um leitor desse espaço, professor universitário de ciências biológicas. A conversa foi muito boa, e espero lançar o episódio nos próximos dias. Pretendo também tirar do papel algo que vinha pensando há anos: a atualização desse site para algo mais funcional, moderno, etc.

                Como sempre, sugiro a leitura dos demais artigos dessa série, como o o último artigo Parte VIII - Imunidade e Testes

MEU BRASIL BRASILEIRO

              
        Eu, em minha cabeça, teria alguns artigos a escrever antes de entrar no tema Brasil. Porém, ao que tudo indica, a situação do país está se agravando, e infelizmente talvez o nosso país seja o novo epicentro mundial da doença com consequências imprevisíveis. É sobre isso que pretendo tratar nesse artigo.


UM COMEDIANTE E UM BIÓLOGO


                O tema de subnotificação, coincidência ou não, foi tratado por um comediante e um biólogo nesses últimos dias. Recomendo fortemente que os programas sejam assistidos. O primeiro é o último Greg News. Eu gosto muito desse programa, acho muito bem-feito e bem divertido, isso independentemente se concordo ou não com tudo ou boa parte do que ali é exposto.  O segundo é a último vídeo do biólogo Atila, pois traz muitos insights interessantes sobre diversos números e está bastante atualizado.

Eu, particularmente, acho o Gregório Duvivier muito engraçado. Infelizmente, em tempos de polarização, muitas pessoas se antipatizam com ele por causa das opiniões políticas do mesmo. O programa dele no HBO Greg News acho muito bem-feito. O último foi sobre o problema das subnotificação.


O Biólogo Atila Iamarino vem se destacando nos últimos meses pelos seus vídeos. Como já dito no primeiro artigo da série, ele é uma boa fonte de informação em português. Nesse vídeo específico, ele foi bem didático sobre os desafios do Brasil para as próximas semanas.


        Eu recomendo os dois programas. Não quero nesse artigo ser apenas uma reprodução do que pode ser obtido nessas duas fontes, mas talvez acrescentar algumas outras informações, bem como talvez trazer um pouco mais de clareza sobre alguns tópicos.

         
ALL CAUSE MORTALITY (MORTALIDADE POR TODAS AS CAUSAS)


          Nos últimos 18 meses que venho me dedicando a estudar um pouco mais profundamente sobre nutrição, alguns aspectos da medicina, otimização da saúde, um termo costuma aparecer bastante: mortalidade por todas as causas. O que é isso? Para que serve esse conceito? A explicação é o que a própria expressão diz é simplesmente o número de mortes que ocorrem por todas as causas possíveis.

   Imagine-se uma droga que tem como promessa principal diminuir a mortalidade de pacientes com câncer do pâncreas (geralmente um câncer bem agressivo), aumentando assim a taxa de sobreviva média. Se um estudo mostrar que a droga realmente diminuir a mortalidade em relação ao câncer de pâncreas, o medicamento não pode ser considerado um sucesso sem saber o que a droga fez com a mortalidade por outras causas.

     Imagine que o estudo mostrou que as pessoas morreram menos por câncer de pâncreas, mas a mortalidade por ataques cardíacos aumentou, fazendo com que não houvesse qualquer diferença na mortalidade geral, ou pior, que a mortalidade geral no grupo da droga fosse maior do que o grupo placebo. Nesse caso, a droga se mostraria um retumbante fracasso, pois não adianta morrer menos de câncer por um tratamento, se este ocasiona um aumento da mortalidade por alguma outra causa. Esse é um, entre outros, do motivo de ser necessário fazer estudos duplo cego ramdomizados rigorosos para averiguar a eficácia e segurança de qualquer tratamento medicamentoso.

        Poucas pessoas sabem, mas colesterol elevado está associado a uma diminuição da  mortalidade por todas as causas. Há diversos estudos observacionais mostrando uma relação inversa entre mortalidade e colesterol. Esse é um ponto bem polêmico, mas há muitos dados nessa direção. Portanto, o colesterol, melhor dizendo a lipoproteína que carrega o colesterol pelo sangue, pode ser associado a um aumento na mortalidade cardíaca (algo que, em minha opinião, está longe de ser um assunto pacificado), mas isso não traduz necessariamente num aumento de mortalidade por todas as causas, pelo contrário. E por que isso ocorre? Porque colesterol muito baixo está associado com câncer, por exemplo. 

     
  Logo, a morte por todas as causas é o parâmetro final pelo qual qualquer intervenção médica deve ser julgada. A mortalidade também é uma métrica importante, talvez a mais importante, para saber os verdadeiros impactos de uma epidemia numa população específica. 

                      
"Nesse mundo nada é certo, apenas a morte e os impostos"

       Foi por esse motivo que na Parte VII desse série onde se tratou sobre os céticos, se fez questão de falar sobre a mortalidade em excesso de algumas regiões do mundo. Essa mortalidade pressupõe mortes por todas as causas. O número de pessoas que morrem todos os mês numa determinada localidade costuma ser constante e não possuir muita variação, a não ser que haja algum evento como um grande acidente ou algum surto de uma doença. 

    De um ano para o outro também não costuma haver variações bruscas, mas sim apenas de alguns pontos percentuais para baixo ou para cima. Logo, se numa cidade X morrem em média 30 pessoas por dia, e essa média se mantém constante (com alguns dias para mais outros para menos) durante vários meses, se num determinado dia morrem 120 pessoas, algo de diferente aconteceu. 

      É verdade que pode ser um evento aleatório, uma simples flutuação aleatória. Porém, se durante vários dias 120 pessoas morrem, é porque alguma coisa deve ter acontecido para explicar o excesso de mortalidade.

    Excesso de mortalidade nada mais é do que o número em excesso de mortes que se esperaria tendo em vista o número previsto de mortes para um determinado período numa determinada localidade. Na Parte VII dessa série, foi abordado o excesso expressivo de mortalidade de diversos países e cidades, dando conta que sim, esse excesso muito provavelmente é quase que todo ocasionado pelo SARS-COV-2. Esse conceito é importante para algumas secções mais adiante.


TESTING, TRACKING AND QUARANTINE  (TESTAGEM, REASTREAMENTO E QUARENTENA) - O PROBLEMA DA SUBNOTIFICAÇÃO DE CASOS

   
     O último artigo dessa série foi sobre imunidade e testes. Um país realizar testes é apenas uma parte da equação, nem de longe apenas realizar testes é suficiente. O objetivo de se realizar inúmeros testes para o controle de uma doença infecciosa é possibilitar que pessoas infectadas sejam localizadas, mas principalmente para que só possa fazer o rastreamento de toda linha de contatos potenciais que essa pessoa teve nos últimos dias/semanas. Fazer testes em massa e não fazer o rastreamento posterior é uma estratégia evidentemente falha. 

        Países como Taiwan e Coréia do Sul se destacam não apenas pela testagem abundante de sua população, mas especialmente pela capacidade de rastreamento dos casos e dos contatos próximos. Uma última etapa depois de testado, rastreado é a quarentena de pessoas infectadasEssas pessoas devem ser quarentenadas onde? Em suas casas? Mas se outros membros da família não tiverem infectados? Em hotéis fornecidos pelo Estado? Essas não são perguntas triviais. 

    Minha mulher disse-me, não sei se é verídica ou não a história, que uma pessoa que mora sozinha foi diagnosticada com COVID19 e pediu para o síndico do condomínio fazer compras e deixar na porta do apartamento dela. Essa pessoa, aparentemente, começou a receber interfones de outros moradores o ameaçando e exortando que ele se mudasse de condomínio.

      Tirante o comportamento ético deplorável, esse é um problema enorme. Se uma pessoa mora sozinha, se não houver meios da mesma obter comida ou outras necessidades primárias, parece-me evidente que ela irá quebrar a auto-quarentena e expor outras pessoas a risco de contaminação. Países como a Coréia do Sul, por exemplo, determinam que todos os estrangeiros chegando no país sejam quarentenados em acomodações fornecidas pelo Governo durante 14 dias (1).


      Ou seja, a testagem é um primeiro passo, ele não é o único. Por que falo isso? Os EUA, por exemplo, aumentaram e muito a testagem desde o começo da crise em meados de fevereiro. Os EUA fazem aproximadamente 250 mil testes diários. Até 05 de maio, já realizaram quase 8 milhões de testes. Como o surto se disseminou pelo país, especialistas advertem que os EUA teriam que fazer ainda mais testes, muito mais. Porém, para além da questão da testagem, os EUA não parecem estar fazendo um rastreamento muito bom, pode-se dizer que é bem inferior do que alguns países asiáticos. Ou seja, os EUA estão superando o problema dos testes, mas não inteiramente, mas estão deixando a desejar na próxima etapa que é o rastreamento.

    E o Brasil? Bom, o Brasil até agora fez 340 mil testes (2). Sim, o Brasil desde o começo da crise até o dia 05 de maio realizou o mesmo número de testes que os EUA fazem em um dia e meio. Portanto, o Brasil não pode falar de rastreamento, e muito menos de quarentenas seletivas, pois ainda não saiu nem do primeiro "andar" que é uma testagem adequada. Aliás, longe disso, o Brasil tem uma testagem muito inferior, o que faz concluir que o Brasil está navegando às escuras nessa epidemia.

    Como o surto parece disseminado no país, infelizmente, a epidemia parece que está descontrolada no país, e o Governo Central não tem nem mesmos instrumentos para saber quão ruim é a situação. E aqui nem se está falando de assintomáticos, mas sim de casos graves onde nem assim testes estão sendo feitos. É por isso que o número atual de infectados no Brasil com toda absoluta certeza é muito maior do que os números oficiais. Quão maior?

   Um estudo da UFMG (3), tendo como base o número de internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave até o final do mês de março de 2020, chegou no número de 7.7 não notificados para cada caso notificado. E, prezados leitores, como dito no parágrafo anterior seriam subnotificações de casos já graves que requereram internação hospitalar e não casos sintomáticos leves ou assintomáticos.

Os pesquisadores pegaram os dados por internação de síndrome respiratória de vários anos durante os três primeiros meses

E compararam com os anos.

         Claramente, em março de 2020 houve um aumento absurdo no número de internações hospitalares por síndrome respiratória aguda grave.  Corretamente, em minha opinião, os pesquisadores mineiros então concluem: 

"It is known that, in the present moment in Brazil, there is no atypical outbreak by other viruses such as Influenza, H1N1, MERS-Cov, etc. So we assume that an atypical increase in the cases of ARS hospitalization must then be attributed to COVID-19 infection"
"É conhecido que no presente momento no Brasil, não há nenhum surto atípico de outros vírus como Gripe, H1NI, MERS-COV, etc. Então, nós assumimos que o aumento atípico nos casos de hospitalizações por ARS devem ser atribuídas a infecção pro COVID19".

     Essa conclusão parece-me a única plausível. Se há um aumento de muitas vezes de internações hospitalares por síndrome respiratória, do que seria esperado tendo como base internações de anos anteriores, e não há nenhum outro surto de vírus, parece-me claro que a explicação óbvia é um aumento de internações por causa do SARS-COV-2 não notificadas.

      Há outros grupos de pesquisa que dizem que a subnotificação poderia ser da ordem de 15 para 1 (4). É difícil saber exatamente, mas o fato é certo que há uma imensa subnotificação de casos sintomáticos graves por falta de testes no país. Esses números são confirmados pelo próprio Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde:

Até 24 de abril havia quase que 40 mil internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave em excesso no Brasil
O Ministério da Saúde está colocando um número enorme de SRAG como não especificada, e não pelo SARS-COV-2, o que não faz o menor sentido.

Nessa tabela pode-se ver. Internações por SRAG não especificada que no Brasil eram na faixa de 300-400 por semana, por algum mistério passaram para 3.500-5.000 por semana, um aumento de 10/12 vezes. Há algum outro vírus ocasionando um surto invisível de internações respiratórias no Brasil que não estamos sabendo ou isso é apenas o próprio Ministério da Saúde admitindo a subnotificação da doença?



         Sendo assim, a subnotificação, mesmo de casos graves, é imensa no Brasil. E isso atrapalha qualquer manejo minimamente eficiente de combate a epidemia e de uma reabertura controlada do comércio. Portanto, nesse quesito, é difícil imaginar um país numa situação pior do que a do Brasil, o que  leva a crer que o Brasil já pode ser o epicentro mundial da doença.


SUBNOTIFCIAÇÃO DE ÓBITOS?

         

       Se o número de casos, mesmos os graves, estão claramente não sendo notificados em sua totalidade, poderiam as mortes estar sendo sub-reportadas? Pode-se confiar nos números divulgados todos os dias pelo Ministério da Saúde? Está morrendo mais gente de COVID19 ou não?

    Um passo óbvio é ir no mesmo boletim epidemiológico fornecido pelo Ministério da Saúde (5) e observar o padrão de óbitos por síndrome respiratória aguda grave. É importante destacar que está se chamando atenção para esse problema, pois aparenta ser o problema principal da forma grave da doença: a dificuldade que as pessoas apresentam para respirar. Recentemente, outros problemas sérios, especialmente para os mais jovens e principalmente porque em muitos casos não leva a óbitos mas deixa sequelas, é o aumento expresso no número de derrames . O vírus SARS-COV-2 parece promover inflamações generalizadas em células endoteliais fazendo com que o organismo passe para um estado trombótico, ou seja numa formação acelerada de coágulos sanguíneos, que pode levar eventualmente a um derrame (6). 

   Porém, óbitos por SRAG parece ser um bom local para se observar se há óbitos em excesso ou não. Do último boletim epidemiológico:
     



         É possível ver pela tabela acima que até 26 de abril havia 8.881 mortes registradas pelo ministério da saúde de síndrome respiratória aguda grave. Dessas, 3.364 foram atribuídas diretamente ao SARS-COV-2.  Chamo atenção, assim como para as hospitalizações (ver seção acima), para as mortes por SRAG não especificada, ou seja que não se especificou a causa que ocasionou essa síndrome. Até a semana epidemiológica 09, o número de mortes no Brasil por SRAG não especificada variava na faixa de 30 a 50 por semana. A partir da semana 10 esse número passou a subir enormemente, chegando na faixa de 700 a 900 por semana. Um aumento incrível de 15-20 vezes. 

      As pessoas começaram a morrer por problemas respiratórios 10/15/20 vezes mais no Brasil de uma hora para a outra? Há algum outro vírus respiratório causando isso? Não parece ser o caso. É muito provável que a esmagadora maioria desse excesso de mortes por SRAG não especificada, trata-se na verdade de mortes ocasionadas por SARS-COV-2 que não irão entrar nas estatísticas oficiais. Ou seja, está havendo sim, por esses números, uma subnotificação enorme do número de óbitos.

      
     Veja essa reportagem de um jornal do Rio Grande do Sul (7):

"Dados da Secretaria Estadual da Saúde (SES) indicam que os óbitos provocados por problemas no sistema respiratório cresceram 602% e saltaram de 37 no ano passado para 260 neste ano, até 18 de abril. Oficialmente, a covid-19 respondia até aquele momento por 25 dessas ocorrências, o equivalente a 9,6%. A SES atribui a explosão na quantidade de mortes ligadas à SRAG a um maior nível de notificação das síndromes respiratórias em geral em razão do alerta provocado pela pandemia na rede de atendimento e descarta a possibilidade de que a diferença corresponda a uma subnotificação de coronavírus.
 Excluídos os óbitos provocados de forma comprovada pela covid-19, restam 235 vítimas a mais em 2020 em relação ao ano passado. Uma das hipóteses para explicar essa diferença poderia ser um avanço maior do que o divulgado oficialmente nos casos de covid-19 no Estado, mas a SES descarta o risco de uma subnotificação tão grande. Por meio de nota, a secretaria informou que trabalha com duas hipóteses: aumento na "sensibilidade" das notificações e um crescimento conjunto na circulação de outros vírus como o Influenza.
 Santa Catarina registra um cenário bastante semelhante ao gaúcho em relação aos casos de morte ou internação por SRAG. No Estado vizinho, a secretaria estadual contabilizou um salto de 605% no número de mortes por SRAG e de 552% nas internações pela mesma razão. O governo catarinense também alegou que poderia estar havendo uma maior "sensibilização" dos profissionais da saúde para fazer as notificações, além de uma maior procura dos doentes por atendimento hospitalar."

     A reportagem detectou aumento significativo no número de mortes no estado RS e também em SC. As secretarias estaduais dizem que não há subnotificação. Mas o que explicaria um aumento de 600% nas mortes por problemas respiratórios? A primeira resposta é a circulação de outros vírus como Influenza. Essa resposta não faz o menor sentido. Desde quando o Influenza ocasiona um aumento de 600% de mortes em relação ao mesmo período do ano passado? A segunda resposta é que houve um aumento na "sensibilidade" das notificações.

      Essa segunda explicação também não parece fazer muito sentido. Pessoas estão morrendo muito mais, comparado a anos anteriores, por problemas respiratórios, pois os profissionais de saúde estão mais atentos no ano de 2020 a pessoas morrendo por dificuldade de respirar? Eu imagino que uma morte por dificuldade respiratória não deve ser nada agradável de presenciar e deve ser difícil de não diagnosticar. Não parece ser razoável que um aumento de 600% seja explicável por uma maior "sensibilidade" no diagnóstico dos médicos de mortes respiratórias. 


      Além do SRAG não especificada, há um número grande casos (mais de 1000) em investigação. É muito provável que essas mortes sejam em sua imensa maioria ocasionada por SARS-COV-2. Sendo assim, em 26 de abril quando o Brasil dizia ter 3.364 mortes, é muito provável que o número real fosse mais do que o dobro disso.


       Porém, o problema das notificações pode ser ainda mais grave do que o óbvio descompasso no aumento de mortes por SRAG não especificada. Há outro possível número muito grande de não notificação, e vejo pouquíssimas pessoas prestando atenção nisso. Veja o gráfico abaixo de mortes em Manaus nos dias de 21 a 28 de abril:
        





     Para se ter em mente, o número de óbitos em Manaus é constante entre 28-30 mortes por dia. Seja por assassinatos, câncer, diabetes, etc. Manaus vem enterrando de 100 a 140 mortes por dia nas últimas duas semanas, ou seja, um excesso de mortalidade gigantesco. Mas vamos analisar os números acima. Em oito dias (21 a 28 de abril), esperaria que houvesse algo em torno de 240 mortos, e foi exatamente isso que ocorreu com 254 mortes na categoria "outros".

       77 mortes foram atribuídas ao COVID19. 7 mortes com suspeita de COVID19. Um número muito grande de 388 mortes por síndrome respiratória, o que deve ser quase tudo ocasionada por SARS-COV-2, e esses números não aparecerão nas estatísticas da mortalidade do novo vírus (o que é compatível com o que foi dito ao analisar os números do ministério da saúde). Porém, há um outro problema. O número de 262 mortes por causas indeterminadas.

     Se os óbitos por síndrome respiratória aguda grave não especificada ao menos aparecem no Boletim do Ministério da Saúde, mortes por causa indeterminada obviamente não aparecerão. Logo, essas mortes também não entrarão nas estatísticas oficiais. O número de mortes por causa não determinada em Manaus no período analisado é maior até mesmo do que o número de mortes esperado por mortalidade por todas as causas. É evidente que há um problema grande aí, e é muito possível que essas mortes por causa indeterminada possam ser na sua imensa maioria ocasionadas pelo SARS-COV-2. Por ausência de testes, pelo colapso do sistema de saúde, pelo estresse dos sistemas funerários, muitas pessoas falecidas estão sendo simplesmente declaradas como mortas por "causas desconhecidas".  

        
                   
O número de enterros em Manaus no mês de abril subiram de maneira vertiginosa.


      Portanto, no Brasil, atualmente, tudo leva a crer que além de estarmos navegando no escuro pela ausência completa de testes, e pela subnotificação enorme de casos, é muito provável que nem mesmo os mortos estão sendo contados de maneira correta. Portanto, o prognóstico para o Brasil nas próximas semanas e meses não é nada bom.

    Até o próximo artigo.




(1) https://www.gov.uk/foreign-travel-advice/south-korea/coronavirus
(2) https://www.worldometers.info/coronavirus/
(3) Estudo UFMG
(4) https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/14/pesquisas-subnotificacao-casos-confirmados-brasil.htm
(5) https://www.saude.gov.br/boletins-epidemiologicos
(6) https://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMc2009787?articleTools=true
(7) https://gauchazh.clicrbs.com.br/saude/noticia/2020/04/registro-de-mortes-por-sindrome-respiratoria-grave-cresce-602-no-rs-ck9j1bjf400od017nftx01ql7.html - mortes por SRAG sobem 600%