sábado, 29 de novembro de 2014

FINANÇAS - MARKET DEPTH: SOBRE TUBARÕES, SARDINHAS E DARK POOLS

         Olá, colegas! Por razões profissionais estive em Brasília e tive a oportunidade de visitar o nosso Congresso Nacional. É uma experiência bem interessante. Todos deveriam ter essa oportunidade. É meio assustador e deprimente o que eu vi na Câmara dos Deputados. No salão verde, o líder do governo no congresso estava dando uma entrevista e o tema era a alteração da LDO. As perguntas dos jornalistas eram tão fracas que achei aquilo chapa branca demais. Um pouco indignado com a situação,  me aproximei dos jornalistas e estava pronto para fazer uma pergunta mais dura sobre o tema, como cidadão, mas a entrevista encerrou-se.  Ficou a impressão de que não se fazem perguntas difíceis a políticos, seja por arranjo, ou por despreparo dos jornalistas. Porém, o artigo hoje não é sobre cidadania e política, mas sim sobre um conceito de mercado financeiro e uma realidade americana que não deixa de ser um pouco assustadora, nos remetendo à célebre classificação de “sardinhas” e “tubarões” para o mercado financeiro.

                O conceito diz respeito ao market depth.  “O que seria isso, Soul?” alguém pode perguntar. Uma tradução literal seria “profundidade do mercado”. Há algumas definições para market depth dependendo a perspectiva que queira se adotar, porém uma conceituação simples poderia ser a seguinte: o market depth mede a quantidade de unidades financeiras necessárias para alterar uma unidade de preço.  “Ficou confuso, Soul”.  É fácil. Vamos supor uma ação vendida em bolsa como a BBAS3. O market depth tenta medir qual é a quantidade financeira suficiente para impactar no preço do ativo numa transação.  Quanto menor for a variação de preço de um ativo, mais “profundo” é o market depth, quanto maior a variação mais "raso" é o market depth. Assim, uma compra de 10 mil reais em ações do BBAS3 talvez não tenha o condão de alterar significativamente o preço do ativo. Porém, uma compra de 100 milhões de reais com certeza alterará o preço do ativo de forma significativa. O mesmo raciocínio se aplica para a venda.  Logo, o market depth de uma ação como do Banco do Brasil é maior do que uma ação como a Eternit, por exemplo. Porém, deve ser menor do que uma Petrobrás. O conceito é parecido com liquidez, mas não se confunde com ele, pois se podem ter ativos líquidos, mas que mesmo assim ordens altas de compra e venda interfiram significativamente no preço do ativo.

                Ao preparar um pouco esse post e ler algumas definições estrangeiras sobre market depth da Wikipedia, investopedia, etc, reparei que se faz menção a pesquisas que associam uma alta correlação de market depth  com desenvolvimento econômico. Sem olhar essas pesquisas, creio que faz todo o sentido. Geralmente, market depth maiores estão associados com mercados financeiros e bancários mais sofisticados. Apenas países com grande desenvolvimento econômico desenvolvem mercados de capitais maiores. Países mais instáveis ou não tão desenvolvidos geralmente possuem mercados de capitais relativamente pequenos, inclusive em relação ao PIB. É por isso que o market depth do mercado americano como um todo é muito maior do que o market depth do mercado de Angola, por exemplo.

                “Ok, Soul, entendido, mas o que isso tem a ver com tubarões e sardinhas?” pode pensar um atento leitor.  Bom, quantas vezes não lemos em vários espaços da internet sobre "tubarões" se aproveitando de “sardinhas” deslumbradas. Inclusive para o restrito mercado de Fundos Imobiliários eu leio sobre isso, no blog do Tetzner são constantes esses comentários, muitas e muitas vezes. Colegas, não há como ter “tubarões”, se entendermos essa denominação como grandes investidores fazendo timing, em lugares com market depth reduzidíssimo como em Fundos Imobiliários. Simplesmente não faz o menor sentido, pois mercados assim são muito mais custosos e difíceis para “tubarões” do que para “sardinhas” e o motivo é muito simples.

                Lembrem-se, amigos, que market depth mede a quantidade de unidades financeiras necessária para alterar uma unidade de preço. Ora, se com poucas unidades financeiras se pode alterar diversas unidades de preço, o que significa um market depth “raso”, isso quer dizer que qualquer grande investidor num mercado como esse é mais parecido com um elefante numa loja de cristais.  Vamos supor que o famoso fundo verde com seus 10 bilhões sobre administração (e os seus 150 milhões em taxas anuais, olha tem que ser realmente muito bom para receber essa grana toda anualmente) reconheça que faz sentido investir 4% do seu patrimônio em FII. Vamos supor que o fundo verde queira fazer uma carteira diversificada de FII e vai alocar 5% em cada um de 20 fundos diferentes. Assim, cada fundo irá receber 20 milhões de reais (10BI x 0,04 x 0,05).  Vamos supor também que o fundo MAXR esteja na mira do genial fundo verde.  Com valores atuais de quota (algo em torno entre R$ 1.110 e R$ 1.150), o fundo teria que comprar aproximadamente 18 mil quotas de MAXR. Quem acompanha esse fundo, sabe que uma ordem dessa envergadura de compra faria que o preço disparasse tranquilamente para mais de R$ 1.250/1.300, e que uma ordem dessas de venda faria com que as cotas despencassem para menos de R$ 1.000,00 com toda certeza.

                O que isso quer dizer? Se o fundo verde adotasse essa estratégia de entrar em FII em 20 fundos, ele pagaria enormes spreads BID/ASK na ponta compradora e vendedora, talvez no total na ordem de mais de 20%. O que acontece se alguém paga spreads tão grandes assim? Simples, os retornos serão medíocres, muito menores do que uma “sardinha” que compra as suas três ou quatro quotas por mês ou em qualquer outra periodicidade.  Logo, o MAXR não possui um market depth adequado para “tubarões” se movimentarem. A esmagadora maioria dos FII são assim, tendo alguns pouquíssimos fundos com um market depth maior, mas em minha opinião nada que possibilite realmente grandes “tubarões” de se movimentarem. Assim, se o fundo verde quiser ter participação no mercado imobiliário, não será via FII provavelmente e muito menos no mercado secundário.

É bem difícil imaginar um tubarão se movimento no reduzidíssimo market depth dos Fundos Imobiliários Brasileiros.

                Isso quer dizer que não há grandes investidores se aproveitando dos FII? Claro que há, principalmente nos IPOs e quando há febre por um ativo. É aí que pouca gente ganha muito dinheiro na ingenuidade alheia (eu incluso). Logo, não faz muito sentido ficar falando em “tubarões” ou “sardinhas” para movimentos de preço nos mercados de FII, por exemplo.  Eu, na verdade, tenho profunda reticência com esses termos e os motivos são vários, o principal deles é que se as pesquisas mostram que investidores ativos profissionais perdem de um índice em sua esmagadora maioria, tem sentido mesmo falar em “tubarões” se dando bem, ou esses “tubarões” apenas estão coletando as gordas taxas de administração para fazer uma gestão que qualquer índice, ou alguma estratégia de escolha de ativos com alguns filtros fundamentalista faz mais facilmente,  melhor e mais barato?

                Portanto, para pretensos “tubarões” agirem eles precisam de market depth ou de no mínimo uma grande assimetria de informações como no caso das ofertas iniciais de valores mobiliários.  Poucas pessoas talvez saibam, mas no mercado americano está se formando as condições para criarmos um ambiente propício para que investidores poderosos tenham a capacidade de estar muito a frente de investidores amadores, e aqui começo a falar das Dark Pools, também conhecidas como Dark Pools of Liquidity.

                “Ué, Soul, saímos de finanças para falarmos de ficção científica? Esse nome Dark Pool parece algo saindo de um filme como Star Trek”. Mais ou menos isso, colega. Dark Pools são ambientes de negociação onde não é possível os compradores e vendedores ver o tamanho das ordens de compra e venda, e nem mesmo quem são os lançadores das ordens.  Como a prática é muito diferente do dia a dia de um investidor brasileiro (não há dark pools no Brasil, e suspeito que a CVM não autorizaria o funcionamento delas tão facilmente), demanda que reflitamos um pouco mais a respeito.


Li que esse livro, do já bem conhecido Michael Lewis, centra a sua atenção em Dark Pools e HFT (high frequency trading). Deve ser um livro interessante, gosto dos livros do Lewis. Se não me engano já há versão traduzida para venda.

                Mesmo em mercados muito consolidados como o americano, com um market depth profundo, grandes ordens de compra e venda inevitavelmente irão alterar o preço do ativo sob mira.  Se a empresa de Buffett resolvesse se desfazer de suas ações da Coca-Cola, ou ao menos de uma parte substancial de sua posição acionária, muito provavelmente o preço do ativo iria cair.  E se fosse possível colocar uma ordem de venda das ações da coca-cola sem que ninguém soubesse a quantidade e quem está por trás da ordem? Nesse caso, os impactos sobre o preço poderiam ser muito diminuídos. É nesse contexto que entram as Dark Pools. São plataformas de negociação onde as ordens não são visíveis, daí o nome Dark. Portanto, numa Dark Pool, a Berkeshire Hathaway pode lançar uma ordem de venda de 1 milhão de ações sem que ninguém saiba o preço pedido, nem mesmo de onde a ordem está partindo. Se houver uma ordem de compra de 50 mil ações, por exemplo, da Coca Cola na mesma Dark Pool, a transação será parcialmente feita, sobrando 950 mil ações para venda, porém ninguém no mercado (presumindo que não há vazamento de informações) saberá que ainda há essa quantidade para venda.

                “Soul, só um pouquinho, mas cadê o raio da transparência nisso tudo?” Pois é, colegas, essa é uma das grandes críticas que se faz a essas plataformas de negociação.  Existem diversos tipos de Dark Pools, e não vou aqui comentar a respeito, até pelo conhecimento não muito profundo que possuo do tema. Porém, a Goldman Sachs, apenas para citar uma das grandes instituições financeiras mundiais,  possui uma Dark Pool, sendo que a própria Goldman Sachs pode usá-la tanto na ponta vendedora como na compradora e não apenas na intermediação.  Essas plataformas são apenas para grandes investidores, aqui sim podemos falar  realmente de “tubarões” e de “sardinhas”, pois estas podem estar completamente desinformadas sobre o que está acontecendo com o preço do ativo, pois uma ação, por exemplo, pode ser negociada em uma plataforma pública e numa Dark Pool, ou várias delas, ao mesmo tempo.

                 Imagine um grande investidor querendo vender 10 milhões de ações do Banco do Brasil, ou seja, quase 300 milhões de reais em ações. Pense numa Dark Pool brasileira e essa ordem sendo lançada não via Bovespa, mas via uma Dark Pool. Ninguém irá saber, muito menos investidores amadores como nós os “sardinhas”.  Uma hora ou outra essa transação irá aparecer em algum lugar, seja para o fisco, seja em relatórios contábeis (o que pode demorar meses). Alguém pode imaginar o efeito que pode haver na cotação quando a notícia que um investidor gigante se desfez de grandes quantidades de ações?  Assim, os preços de negociação nos mercados públicos, como na Bovespa, podem ficar desatualizados com os preços realmente praticados nas grandes negociações feitas numa Dark Pool. Esse problema é a segunda grande crítica que se faz as Dark Pools. Num mercado assim, a chance de uma “sardinha” se dar mal é muito maior, e aqui talvez possa fazer sentido usar esses termos para investidores muito poderosos e investidores amadores.

                Aos que acham que isso não acontece em larga escala, há consultorias que estimam que as transações ocorridas em dark pools of liquidity devem estar na ordem de 30 a 40% de todas as transações feitas no mercado acionário americano. Esse é um número incrivelmente alto e vem crescendo de forma assustadora desde a crise de 2008.  O que irá acontecer daqui alguns anos ninguém sabe, porém o fato é que podemos estar criando um ambiente extremamente mais perigoso  e opaco ao pequeno investidor, muito mais suscetível de assimetrias ainda maiores de informação. Quem sabe essa grande novidade não chegue no Brasil em alguns anos? Tenho certeza que muitos gestores brasileiros adorariam a existência de dark pools.

Será que estamos construindo um "admirável mundo novo" financeiro com instrumentos de negociação como dark pools? Só o tempo dirá.

                É isso colegas, espero que tenham gostado do artigo. Abraço a todos!

                

sábado, 22 de novembro de 2014

REFLEXÃO - "EU, PRIMATA"

                "Em seu comportamento com os animais, todos os homens são nazistas" Isaac Bashevis Singer

         Olá, colegas! Neste artigo escrevo sobre um tópico que é infelizmente deixado de lado pela esmagadora maioria das pessoas. Quando o assunto vem à baila em pouquíssimas ocasiões é tratado com gracejo, extrema indiferença ou fúria, o que me faz lembrar os três estágios da verdade para Ghandi em relação a algum conceito que de alguma maneira é oposto a idéias arraigadas em uma determinada sociedade:

- Ridicularização
- Oposição Violenta
- Aceitação
               
         Pensem na escravidão ou em direitos iguais para mulheres. São idéias que para nós seres humanos vivendo no Brasil no século 21 são triviais e auto-evidentes, mas nem sempre foi assim.  Eu tenho uma grande admiração pela vida e sua complexidade. Neste meu artigo http://pensamentosfinanceiros.blogspot.com.br/2014/05/reflexoes-os-tres-golpes-da-ciencia.html, eu abordo de maneira breve o meu espanto com a beleza da vida natural em nosso planeta azul e como os humanos deveriam ser mais humildes e amorosos no seu relacionamento com espécies não-humanas. No mesmo artigo, eu abordo três questões que abalaram, ou estão abalando, o egocentrismo humano. Se alguém acha que a teoria da evolução biológica faz sentido, e ela faz, então a conclusão inevitável é que os seres humanos não possuem um espaço privilegiado no contexto evolucionário (apesar de sua predominância sobre a maioria das espécies, mas não todas como bactérias, por exemplo). Cito uma parte do meu artigo:  


       “Se o homem não é A espécie, mas apenas mais uma espécie, o que poderia justificar todo um sistema de dominação da espécie humana sobre outras espécies não-humanas, a não ser o poder? Se assim o é, qual é a diferença fundamental do uso do poder para subjugar outras espécies do uso do poder para subjugar membros da espécie mais fracos?


              A conclusão inevitável é que se o ser humano não possui uma condição de destaque no plano evolutivo, ao contrário de mitos da criação religiosos ou não, as relações de dominância que ele estabelece com outras espécies não-humanas é apenas a aplicação das ideologias mais extremadas de poder, aquela na qual o forte sempre tem razão. Com isso em mente pode-se entender a citação do livro “Enemies, a Love  Story” do escritor judeu polonês ganhador do prêmio Nobel Isaac Bashevis Singer:


 “Por mais que Herman tivesse testemunhado o abate de animais e peixes, ele sempre tinha o mesmo pensamento: no seu comportamento em relação aos animais, todos os homens são nazistas. A presunção com a qual o homem pode fazer o que quiser com outras espécies exemplifica as teorias racistas mais extremas, o princípio de que o mais forte está certo”


                Por isso, a teoria da evolução é tão revolucionária e se corretamente compreendida e aceita levaria a uma revolução no modo como vivemos nossas vidas. Ela questiona idéias arraigadas no nosso tecido social, pois todas as maiores religiões institucionalizadas partem de mitos da criação onde o homem possui uma preponderância total e absoluta sobre qualquer outra espécie no planeta terra.  Ao se questionar a validade lógica e científica dessa forma de ver o mundo, a dominação humana total e absoluta sobre outras espécies só pode se justificar pelo uso da força, não diferindo em absolutamente nada do comportamento de nazistas em relação a outros seres humanos no holocausto. Com certeza é um comportamento desconcertante, pois transforma todos os “cidadãos de bem” em nazistas cruéis e insensíveis, quando o que está em jogo são os seus interesses em relação aos interesses de outras espécies. Questiona também nossa total dependência dos animais para quase tudo em que fazemos em nossa vida social.  E mais profundamente questiona a nossa própria posição no mundo de uma maneira tão mais pungente que nem a mais ousada teoria libertária, marxista, etc sonha em fazer. Talvez por isso seja um assunto que é convenientemente ignorado por qualquer corrente ideológica ou filosófica, pois é muito difícil sustentar racionalmente, sem se apoiar única e exclusivamente no poder, o nosso relacionamento com as outras formas de vida do planeta.

                Isso colegas com certeza trouxe, traz e trará ridicularização e oposição violenta, mas talvez aos poucos o estágio de aceitação esteja chegando pelo menos para algumas pessoas. Em minha visão, o ser humano não sai diminuído, ele sai engrandecido. Nas páginas finais do belíssimo livro “A insustentável Leveza do Ser” há algumas páginas sobre os animais e o seu relacionamento com os homens, o que pode parecer estranho num livro onde o romance e a sexualidade é o pano de fundo. Faz alguns anos que li o livro, mas lembro até hoje quando o autor sustenta que a violência e a dominação absoluta do homem sobre outros animais, talvez esteja no cerne dos motivos da violência entre os próprios seres humanos. Mostrar compaixão e respeito pelos outros animais nada mais seria, segundo Milan Kundera, o verdadeiro teste moral da humanidade:

“No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo. O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo unânime, mesmo durante as guerras mais sangrentas.
Esse direito nos parece natural porque somos nós que estamos no alto da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito: “Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas”, para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado à carroça de um marciano – eventualmente grelhado no espeto por um habitante da Via-láctea – talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato. Pediria então (tarde demais), desculpas à vaca.
(…)
A humanidade é parasita da vaca, assim como a tênia é parasita do homem: agarrou-se à sua teta como uma sanguessuga. O homem é o parasita da vaca, essa é, sem dúvida, a definição que um não-homem poderia dar ao homem em sua zoologia.
A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa a nosso olhar), são as relações com aqueles que estão à nosso mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras.”

Um grande livro sem dúvidas. Além de discorrer sobre amor, paixão, tendo como pano de fundo a invasão soviética a praga em 1968, ainda há no final belas reflexões sobre o papel do homem no mundo e suas relações com os animais.

                Foi uma das passagens mais fortes que eu li em toda a minha vida, pois ela questiona absolutamente tudo que eu tenho (ou tinha) como mais certo e natural. Hoje em dia eu vejo como essas simples linhas são extremamente provocadoras, como elas são muito parecidas com os preceitos budistas de respeito total e irrestrito à vida ou os preceitos do jainismo de não-violência. O teste moral profundo sobre a humanidade é como ela se comporta em relação a outros seres muito mais fracos e sem qualquer capacidade de resistência ao poder dos homens. Como iremos usar esse poder enquanto espécie nos define muito do ponto de vista ético em minha opinião, inclusive nas relações   com  os membros mais fracos de nossa própria espécie.

O título do presente artigo é baseado no nome de um livro interessantíssimo chamado “Eu, Primata” do primatólogo Frans de Waal.  A espécie humana nada mais é do que uma espécie de primata. Há cinco outras espécies de primata (em grau descendente de semelhança genética com a espécie humana): Homens, Bonobos, Chimpanzés, Gorilas e Orangotangos. Os nossos dois primos genéticos mais próximos são os Bonobos e os Chimpanzés.  Infelizmente, quase ninguém nunca ouviu falar dos Bonobos e eu creio que sei quais poderiam ser as razões. Ao contrário dos Chimpanzés, as comunidades de bonobos são matriarcais ou seja, as posições de lideranças são exercidas por fêmeas, não por machos dominantes como é o caso das comunidades de Chimpanzés. Além do mais, comunidades de Bonobos são extremamente pacíficas se comparadas com comunidades de Chimpanzés, e um dos motivos é que uma das formas para se aliviar tensões comunitárias é o sexo. Bonobos fazem sexo continuamente uns com os outros. Inclusive é comum fêmeas bonobos esfregarem suas genitálias umas com as outras.

        Livro interessantíssimo sobre os nossos irmãos genéticos e sobre nós mesmos.


O que é mais palatável para nós humanos com nosso arranjo social atual: ter o primo genético mais próximo uma espécie que vive em  comunidades hierarquizadas, dominadas por machos, com alto grau de violência ou ter como primo genético mais próximo uma espécie que vive em comunidades relativamente pacíficas, onde a fêmea é dominante, com hierarquias muito mais flexíveis e onde boa parte dos conflitos comunitários é resolvido com sexo? Qual se assemelha mais a uma sociedade humana onde os valores de “bem” estão presentes e qual se assemelha mais a uma sociedade humana “deteriorada”? Fica aqui a dúvida para o leitor e o motivo de talvez nunca ter ouvido falar dos bonobos, apesar de alguns geneticistas acharem que eles são até mesmo mais aparentados com a espécie humana do que os Chimpanzés.


Em que pese essas diferenças entre essas duas espécies de primatas, as semelhanças são muito mais fortes entre eles com nós. Os chimpanzés, por exemplo, possuem intricadas relações de poder, capacidade complexa de uso de ferramentas (já se documentou chimpanzés usando cinco ferramentas diversas para a obtenção de uma única finalidade, demonstrando um grau de inteligência extremamente complexo) e reações emocionais ao mundo que o circunda muito, mais muito, parecidas com as reações de humanos ao seu ambiente natural. A semelhança entre Homens, Chimpanzés e Bonobos é tão grande, que há cientistas que acham que a taxonomia (ramo da biologia que lida com a classificação de espécies) dos Bonobos e Chimpanzés deveria ser mudada para adicionar o prefixo Homo,  palavra  que é apenas reservada a espécie humana.

Se talvez seja difícil para a humanidade no presente momento aceitar as conclusões inevitáveis da teoria da evolução para boa parte das espécies não-humanas, eu creio que a humanidade talvez esteja próxima de aceitar para espécies extremamente complexas do ponto de vista da inteligência e emoção como primatas não-humanos, golfinhos, baleias e elefantes de que alguns direitos devem ser estendidos a essas espécies como o direito de liberdade de movimento e o  direito a não ser submetido a experiências dolorosas a não ser no caso dos próprios interesses da espécie. Se apenas isso fosse reconhecido, já seria uma tremenda vitória para a própria humanidade.

Talvez baseado nas premissas brevemente discorridas aqui, um advogado dos EUA resolveu pedir Habeas Corpus em favor de um Chimpanzé mantido cativeiro numa cela americana (http://spotniks.com/nos-estados-unidos-chimpanze-pode-estar-prestes-ganhar-status-de-pessoa/). O advogado deve ter escolhido um Chimpanzé, pois talvez seja muito mais fácil percebermos alguns aspectos de nossos comportamentos em relação a uma espécie tão parecida com a espécie humana e percebermos os deslizes éticos que cometemos com outras espécies não-dominantes, pois como já escreveu Henry Beston no livro “Outermost house”:

Nós precisamos de um conceito mais novo, sábio, e talvez mais místico dos animais. Longe da natureza e vivendo através de artifícios complicados, o homem na civilização vigia as criaturas através da lente dos seus conhecimentos e vê, portanto, os detalhes de uma pena, mas uma imagem geral distorcida. Nós os padronizamos por serem incompletos, pelo seu trágico destino de terem se formado tão abaixo de nós. E nisto nós erramos, erramos gravemente, pois os animais não podem ser avaliados pelo homem. Num mundo mais velho e completo do que o nosso, eles se movem completos e confiantes, dotados de extensões dos sentidos que nós perdemos ou nunca possuímos, guiando-se por vozes que nós nunca ouviremos. Eles não são irmãos.  Eles não são servos. Eles são outras nações, presos conosco nesta vida e neste tempo, prisioneiros do esplendor e trabalho da terra”.


Talvez o nosso parente genético mais próximo:  um primata bonobo. A semelhança física com a espécie humana é absolutamente inegável.


Grande abraço a todos!

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

UMA HOMENAGEM À BLOGOSFERA FINANCEIRA

        Olá, colegas! Escrevo um artigo leve como tema a blogosfera financeira e os seus blogueiros. O post foi inspirado num recente artigo do colega Viver de Renda. Para quem não conhece, o Viver de Renda foi um blogueiro muito ativo nos anos entre 2009 e 2011. Eu apenas travei conhecimento com o conteúdo do blog dele no começo de 2012. Pois bem. O Viver de Renda estava sumido, mas resolveu fazer um breve artigo falando que tinha mudado de ideia sobre a sua estratégia com ações, bem como falou um pouco sobre como a sua situação financeira se tornou bastante confortável. Eu fiz um comentário no blog dele, e fiquei extremamente feliz que não só o Viver de Renda sabia da existência do meu blog, como teceu elogios ao mesmo. Foi algo muito bacana para mim.

         O Blog do Viver de Renda foi um dos primeiros, e talvez um dos únicos, lugares da internet brasileira a trazer informação mais técnica sobre investimentos para investidores amadores. Alguns dizem que isso é bobagem, que é perda de tempo, mas para mim foi fundamental ter um primeiro contato com aquelas ideias. Conceitos como "Fronteira Eficiente", "Equity Premium", "Taxa Segura de Retirada", etc, etc, foram num primeiro momento de difícil compreensão. Porém aos poucos, e com algum esforço meu em ler literatura estrangeira, eu fui entendendo os conceitos e fazendo ligações com muitas coisas. Foi tão bom para mim, que consegui aplicar o modo de pensar  financeiro em algumas transações fora do mercado financeiro que realizo." Ah, Soul, eu conheço o Viver de Renda, o blog não é tão técnico, quais são as referências dele?", alguém pode estar pensando. Colegas, eu adoraria ler o gestor do fundo verde escrevendo se devemos comprar BRCR ou BBCR ou nenhum dos dois. Falando de como se montar uma estratégia boa para investidores amadores. Eu gostaria mesmo. Porém, o fundo verde cobra taxa de administração de 1,5% do dinheiro sobre sua administração que é na faixa de R$ 10 bilhões. Sendo assim, a equipe do fundo verde recebe anualmente R$ 150 milhões de reais. Logo, infelizmente, eles não vão escrever para investidores amadores, nem escrever livro sobre estratégias que sejam coerentes com patrimônios pequenos/médios com aportes pequenos/médios, pois quem ganha 150 milhões por ano não vai perder tempo com isso.

         Portanto, não devemos subestimar quando amadores de maneira voluntária tentam de alguma forma explicar conceitos muitas vezes complexos e de alguma forma ajudar as pessoas a traçarem estratégias financeiras que façam sentido. Por isso, só tenho a agradecer o Viver de Renda. O fato dele ter mudado de estratégia apenas reforça que ele aparentemente não tem compromisso com o erro, mas sim com aquilo que acha que faz mais sentido. Eu  não partilho da mesma ideia dele (pelo menos dos artigos mais antigos) em diversos tópicos, porém, e eu sempre tento colocar isso como um mantra aqui, não é na concordância absoluta que evoluímos, mas sim na discordância racional e com humildade intelectual.

        Alguém com quem volta e meia estou em leve discordância é o Márcio do blog Di Finance. Correspondo-me com o mesmo há mais de um ano. Figura polêmica para alguns, eu gosto muito do blog Di Finance. Ele é o cara na blogosfera que mais transita facilmente pela matemática e pelas simulações, talvez pela sua familiaridade com números devido à sua área de formação e atuação profissional. Ele possui séries  de artigos bem interessantes, como já disse algumas vezes. Uma série de 10 artigos que ele fez de como calcular o Preço Justo de uma ação em 2012 é interessantíssima, não pela complexidade técnica, mas sim por abordar temas tão centrais para investimentos de maneira bem inteligível. Essa série foi muito importante para mim e por meio dela fui atrás de literatura especializada sobre valuation como da do Professor Damodaran.

       E como não falar do peso pesado Bastter e do meio pesado Tetzner? Eu gosto muito do espaço do Tetzner, sendo até uma vez "acusado" por um anônimo de que eu teria ele como grande líder (é cada asneira que temos que ler de vez em quando). Eu tenho sim respeito pelo Tetzner e pelo espaço que ele criou. No Blog do Tetzner, que hoje possui uma abrangência muito grande, se pode discutir diversas questões, mas principalmente ligadas a Fundos Imobiliários de Investimento, num ambiente agradável, sem ofensas e com muito respeito. Para mim isso vale muito ultimamente. Nessa semana, por exemplo, eu fiz comentários respeitosos , como procuro sempre fazer, e em minha opinião pertinentes num artigo publicado pelo Instituto Mises Brasil.  Falácias ad hominem vieram com uma força que eu só tinha visto em ambientes extremamente polarizados. Teve um que em uma mensagem me chamou de Vigarista Intelectual, Fanático, Ignorante e mais um monte de outras coisas. Quando eu perguntei se ele já tinha lido livros como "A Ilusão da Alma" do Gianneti ou "Rápido e Devagar" do Kahnaneman (que é um primor de livro) que trazem as últimas descobertas da ciência sobre a relação mente/cérebro, decisões inconscientes x decisões conscientes, etc, que são absolutamente vitais para entendermos o que é o homem e o seu papel na sociedade, o nobre colega que me chamou de fanático me respondeu que não tinha interesse em ler. Num espaço tão agressivo como esse, eu não tenho muita vontade de voltar a tentar debater. As condições ambientais podem influenciar nossas decisões de maneira inconsciente, dando a ilusão de que tivemos uma decisão plenamente consciente. Portanto, um ambiente onde a agressão é a norma , muito provavelmente espelhará e influenciará a atitude das pessoas daquele determinado ambiente. Porém, vi agora que uns colegas lá me responderam de maneira muito mais cordial, trazendo argumentos à baila. Assim, isso apenas mostra como temos que tentar construir espaços mais amistosos de convivência, pois pessoas podem ser "influenciadas" a ter comportamentos que não teriam em outras condições.

Um livro interessantíssimo de um dos pesquisadores que mais revolucionou as ciências econômicas e sociais nas últimas décadas. Uma pena que não é do interesse de alguns.

      É por causa disso que respeito e gosto muito do espaço do Tetzner, lá eu me sinto muito confortável para discutir, além de criar vínculos de amizade. Além do mais, aprendi bastante sobre FII com várias pessoas naquele espaço, principalmente com um rapaz chamado Baroni. Logo, hoje me sinto confiante nas minhas escolhas e na minha estratégia para FII muito devido ao Blog do Tetzner. Já o Bastter é um verdadeiro peso pesado da blogosfera. Com dezenas de milhares de pessoas frequentando o espaço, com dezenas de produtos a venda, com inúmera quantidade de informação acessível. Eu particularmente acho os vídeos do Bastter hilários e instrutivos. É claro que não existe um método Bastter de formar patrimônio, pois tudo que ele fala existe há dezenas de anos. Porém, é inegável que ele ajudou e ajuda muita gente a ter uma relação melhor com o dinheiro em geral e os investimentos em especial. Por isso, o espaço dele merece o meu respeito, apesar de não concordar com inúmeras linhas "editoriais", bem como o grau mais acintoso de como algumas discussões se dão naquele espaço, mas isso com certeza não faz eu desmerecer o trabalho que ele vem realizando.

         E o trio empreendedor da blogosfera CoreyBye Bye Brazil Rover? Os três não fazem muitas postagens sobre investimentos em si, mas falam de um assunto muito importante que é empreendedorismo. Os três querem sair do Brasil e os três querem ir para o Canadá (se combinasse não daria tão certo!). O Corey é mais antigo na blogosfera. Possui inúmeras postagens sobre empreendedorismo, indo um pouco além de algumas conceituações mais tradicionais, fazendo com empreendedorismo o que tento fazer um pouco aqui com conceitos financeiros. Ele quase nunca concorda comigo (que coisa Corey!), mas isso não é e nunca será motivo para não ter simpatia com quem quer que seja. Ele inclusive já me deu dicas valiosíssimas por e-mail quando eu fui sondado pelo dono de um restaurante japonês bem famoso da minha cidade (pelo menos era) para entrar como sócio no negócio, e por isso sou grato a ele. O Rover, um dos blogueiros mais novos, surpreendeu e surpreende positivamente com seus artigos na linha: "Ei, tome controle da sua vida!". Gosto bastante dos artigos que ele coloca diversas fotos maravilhosas. Ele é parecido comigo em alguns aspectos e em outros nem tanto, mas quem quer fazer o Annapurna Circuit merece o meu respeito, pois esse sabe reconhecer as coisas boas da vida!

         Na categoria capacidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, está o nosso amigo mineiro Uorrem Bife. Ele além de ser gente boníssima, gosta de um bom rock and roll. A capacidade dele de comentar em vários sites ao mesmo tempo é impressionante, sempre quando olho em algum blog quase sempre há um comentário dele. Não gosta de largar a sua análise técnica, adora um FII de papel, e sempre está fazendo um tradezinho aqui e acolá. Porém aos poucos vai se dando conta que uma boa carteira de FII de tijolo e manter um turnover baixo do portfólio é algo sábio a ser feito. Não posso deixar de citar o Guardião do Ze Mobral(infelizmente li pouquíssimas coisas do Ze Mobral, então não posso comentar muito. Apenas sei que ele gostava muito do livro do meu colega Anderson Lueders, que sempre está comentando no site do Tetzner), pessoa inteligentíssima, sempre com comentários interessantes e respeitosos.

         Uma postagem sobre a blogosfera sem o auto-intitulado rei da mesma não seria completa não é mesmo? Sabe aquele valentão que quando vê um filme de comédia romântica está chorando no final do cinema de forma disfarçada? Pois é, esse é o nosso Investidor Troll. Ele adora tecer os seus comentários ácidos em alguns espaços, mas nas poucas mensagens que troquei com ele via e-mail pude perceber que ele aparenta ter um grande coração. Reverenciado por muitos pelo seu jeito altivo e suas postagens "inspiradoras", ele é uma figura peculiar na blogosfera. Possui bastante conhecimento, quando quer escrever seriamente sobre um assunto produz textos de boa qualidade e não deixa de ser uma inspiração para muitas pessoas que almejam melhorar de vida seja pelas finanças, seja pela aprovação em algum bom concurso público. Creio que ele deveria focar mais em escrever assuntos sobre finanças, tenho certeza que poderia acrescentar bastante coisa.

      E o Além da Poupança? O próprio nome do blog é interessante, e eu sempre lembro do clássico documentário nacional "Para muito Além do Cidadão Kane". O Além da Poupança é um sujeito cortês, humilde e extremamente dedicado. O esmero com que tenta fazer os seus artigos, as suas simulações e passar as suas ideias é muito bacana. O mesmo ainda possui um patrimônio pequeno, mas que vem aumentando com o passar do tempo. Isso deve ser muito motivador para várias pessoas, como alguém pode ir se educando financeiramente e prosperando com dedicação e estudo. Acho que o mesmo está estudando para passar num concurso público com alguma remuneração mais alta. Torço pelo sucesso dele, e tenho certeza que se conseguir, o caminho para Independência Financeira será trilhado de forma tranquila e segura.

       Enfim, colegas, há diversos outros blogues como Economicamente Incorreto, Executivo Pobre (se tudo der certo de passagem para Angola, creio que pode ser uma belíssima experiência de vida), Estagiário (rapaz extremamente inteligente, tanto que está terminando os seus estudos no Canadá), Viagem Lenta (muito bom blog, o André é uma pessoa muito bacana. Possui artigos bem interessantes sobre liberdade, filosofia, viagens e finanças), Pobre Catarrento (empreendedor também, posta pouco na internet, mas quando o faz se vê que possui uma boa visão sobre os assuntos), o Idiota( esse é o sábio vernacular da blogosfera! Quando postou uma bela imagem de BUDA combatendo Maya - Ilusão - ganhou definitivamente o meu respeito), Investidor Livre (e sua queda por seguir os passos do Bastter em sua totalidade).  Dividendos (com seu fluxo de caixa mensal alto que encoraja muitas pessoas), Valores Reais (um dos blogs mais antigos, com artigos de altíssima qualidade sobre os mais variados temas) entre tantos outros que poderia citar por aqui. Atrás de qualquer blog (talvez apenas tirando o do Bastter que já é imenso e nem blog é, mas sim um portal de investimento), há uma pessoa que dedica o seu tempo a escrever sobre finanças ou sobre alguma tema da vida. Talvez a pessoa cometa erros, alguns mais básicos outros mais técnicos, mas e daí? Devemos reconhecer o esforço e dedicação de cada pessoa que doa um pouco do seu tempo para compartilhar ideias com outras pessoas. Isso não nos enfraquece, isso não nos torna complacentes com erros, pelo contrário, isso nos fortalece enquanto ser humano e instiga em nós valores muito bacanas e formas melhores de vivermos socialmente. Infelizmente, os incentivos que existem ao nosso redor são quase todos no sentido de verbalizarmos críticas negativas ou completamente destrutivas a diversas pessoas no nosso dia a dia. Pare e pense. Quantas pessoas você elogiou hoje, ou na última semana e quantas pessoas você de alguma maneira reclamou, falou ou pensou mal? Sermos respeitosos, reconhecermos o valor do esforço dos outros e elogiarmos até mesmo pessoas que não conhecemos, tornam a nossa vida mais leve, mais tranquila e em última instância mais feliz. Podemos fazer isso mantendo a nossa independência intelectual e sendo cordiais, não há contradição entre ser independente intelectualmente e respeitoso com outras pessoas.

Uma auto-homenagem a mim mesmo! Em uns 9 meses foram mais de 70 artigos publicados e creio que escrevi mais de 400 páginas. Apesar de ter tomado bastante tempo, sinto me satisfeito com essa empreitada.

        É isso pessoal, espero que tenham gostado desse artigo sobre a nossa blogosfera financeira. Um grande abraço para todos!

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

FUNDOS IMOBILIÁRIOS DE PAPEL - ABRINDO A CAIXA DE PANDORA?

Olá, colegas! No artigo de hoje abordo um tema não muito tratado na blogosfera e que é de vital importância para quem investe em Fundos Imobiliários de Papel. Afinal, quais são os papéis que compõe uma carteira de um FII como o FEXC ou o XPGA. O que esses títulos representam? Quais são os riscos desses papéis? Todas são perguntas importantes e tentarei dar ao menos algumas indicações de respostas.

    Primeiramente, o que são Fundos Imobiliários de "Papel" e qual é a diferença para fundos de "Tijolo"? Essa é uma distinção adotada por investidores de Fundos Imobiliários para separar fundos onde a fonte principal de receita é oriunda de instrumentos financeiros de dívida de fundos onde a renda preponderante vem de receitas de aluguel de propriedades imobiliárias. Eu coloquei a palavra preponderante, pois há fundos de tijolo com alguma exposição a instrumentos financeiros de dívida, sendo assim o mais correto seria classificar esses fundos como mistos. Porém, como a exposição geralmente não é de grande monta, ou quando o é geralmente se trata de dinheiro classificado como "caixa" para futuras aquisições de novos imóveis, manterei a classificação tradicional entre fundos de papel e fundos de tijolo.

    Neste artigo http://pensamentosfinanceiros.blogspot.com.br/2014/08/fii-fundo-de-papel-o-que-realmente-esta.html, eu procurei demonstrar que essa espécie de Fundo Imobiliário em nada se confunde com um Fundo Imobiliário como o XPCM ou RNGO, por exemplo, são dois instrumentos financeiros completamente distintos. Fundos Imobiliários de Papel são renda fixa e devem ser tratados como tal. O ponto de contato com os Fundos Imobiliários de Tijolo é que os mesmos estão voltados para o mercado imobiliário e a semelhança para por aí. Portanto, uma vez vi uma pessoa falando sobre a complexidade dos FII, que muitos fundos carregavam papeis duvidosos e colocou os fundos de papel na mesma posição de fundos imobiliários onde a receita principal, e na maioria dos fundos única, advém de contrato de aluguéis.  Isso é um erro crasso, pois se trata de dois investimentos completamente distintos.

         Eu infelizmente ainda não escrevi sobre Renda Fixa, mas presumo que a esmagadora maioria dos leitores desse blog tenham os conceitos principais dessa forma de ativo bem estabelecidos. Basicamente, os dois principais riscos da renda fixa são: risco de default ou de atraso e risco de duration. Não irei tratar especificamente sobre o segundo risco citado, mas é uma medida que se refere à intensidade em que um título de dívida pode se apreciar ou depreciar de valor de acordo com mudanças no custo de oportunidade da economia (ou taxa básica de juros). O maior risco no mercado de dívida é o default, ou seja, o não pagamento do principal ou de juros da dívida. Assim, a qualidade do emissor da dívida é o principal aspecto a ser levado em conta quando se  quer analisar instrumentos de dívida. Emissores de dívida que o mercado acredita ser mais confiáveis irão pagar menos juros para se endividar, emissores não tão confiáveis irão pagar mais juros para se endividar.

          No mercado brasileiro, o emissor de dívida mais "confiável" é a União Federal. São títulos de dívida da União Federal que se compra ao usar a plataforma do tesouro direto, ou a comprar quotas de fundos de renda fixa via bancos ou corretoras que investem em títulos federais. Empresas privadas ou públicas também pode emitir títulos de dívida e elas geralmente o fazem por meio de instrumentos conhecidos como debêntures. Como, pelo menos na teoria financeira, os governos são mais confiáveis para se emprestar do que empresas, é lógico se raciocinar que as empresas terão que pagar mais do que o governo central para se endividar.  Esse "ágio" é conhecido na doutrina como Credit Risk Premium, ou seja qual o prêmio que será pago ao investidor por suportar um risco de crédito maior do que simplesmente emprestar dinheiro para o governo. Poucas pessoas conhecem o conceito de Equity Risk Premium (o prêmio que teoricamente uma pessoa deveria ser recompensada por investidor no mercado acionário), mas quase ninguém, pelo menos aqui no Brasil, aborda os diversos outros conceitos de Risk Premium: Bond Risk Premium (em relação a duration), Iliquidty Risk Premium (em relação à iliquidez), Credit Risk PremiumSmall Cap Risk Premium,  entre outros. Na verdade, toda essa variedade de prêmios está relacionada ao custo de oportunidade do dinheiro e aos retornos potenciais de cada ativo e os seus riscos específicos. Tais assuntos foram tratados quando discorri brevemente sobre custo de oportunidade em http://pensamentosfinanceiros.blogspot.com.br/2014/09/financas-custo-de-oportunidade-o.html, quando fiz uma relação lúdica entre incerteza e retornos financeiros neste artigo http://pensamentosfinanceiros.blogspot.com.br/2014/11/financas-o-principio-da-incerteza-e.html. Para uma análise sobre os prêmios, ou também conhecidos como fatores de risco, do mercado acionário, pode ser consultado esse artigo um pouco mais específico sobre os fatores de risco de Fama e French em http://pensamentosfinanceiros.blogspot.com.br/2014/05/acoes-os-tres-fatores-de-risco-de-fama.html.

     Essa breve introdução teve o escopo de relembrar alguns conceitos com os quais o mercado financeiro trabalha e raciocina.  Retorno ao tema do artigo sobre Fundos Imobiliários de Papel. Essa espécie de ativo financeiro investe preponderantemente em instrumentos de dívida relacionados ao mercado imobiliário. Muitas pessoas cada vez mais investem nesse mercado por meio de bancos ou  corretoras em instrumentos de dívidas chamados  Letras de Crédito Imobiliário, as famosas e queridas por muitos LCI. Os fundos de papel também investem em LCI, mas o foco principal desses fundos é o investimento em uma outra espécie de ativo financeiro: o não tão conhecido Certificado de Recebível Imobiliário, ou CRI. Para compreender o que são atualmente os FII de papel e quais são os riscos que eles estão expostos, é imprescindível saber o que são Certificados de Recebíveis Imobiliários.

    Não vou dar a definição do que seja CRI, pois isso o leitor pode consultar no google. Prefiro apresentar a estrutura de que uma CRI assume com a figura abaixo:




      Só pela quantidade de etapas e intermediários já da para perceber que a CRI é um instrumento de dívida complexo, muito mais complexo do que um instrumento de dívida como a Letra Financeira do Tesouro emitida pela União Federal. A formação de uma CRI e a posterior venda da mesma para investidores, sendo que os FII são um destes investidores, se dá em várias fases. No começo da cadeia, uma pessoa física ou jurídica toma um empréstimo a ser quitado num determinado prazo tendo como objetivo algo relacionado ao mercado imobiliário. Vamos pegar um caso simples de uma pessoa que quer comprar a sua casa própria financiada, e chamaremos esse inusitado personagem de Sr. X. O Sr. X viu um apartamento maravilhoso de 100m2 num bairro em valorização na cidade de São Paulo pela módica quantia de 1M de reais, perfazendo uma relação de R$ 10.000,00 o m2. O Sr. X possui apenas 300.000,00, mas acha que encontrou o imóvel da vida para si e família. O que ocorre quando alguém quer antecipar a gratificação do consumo quando não possui poupança suficiente (como o Brasil está fazendo atualmente)? Toma-se empréstimo da poupança de outros (exatamente como o Brasil está fazendo), fazendo com que a pessoa que antecipou o consumo torne-se devedora do empréstimo e dos juros associados a este empréstimo. Assim, o Sr. X toma emprestado o valor de R$700.000,00 a uma determinada taxa de juros para pagar no curto prazo de 30 anos, tendo como garantia para pagamento a sua renda, bem como o próprio imóvel dado numa forma de garantia chamada Alienação Fiduciária (a AF é um pouco complexa e é algo que eu entendo razoavelmente bem, muito mais do que sobre finanças, mas não irei discutir esse tema no blog) . 

    A instituição financeira que realizou o empréstimo pode fazer algo muito interessante, ela pode transformar o empréstimo feito num título de crédito, criando assim uma Cédula de Crédito Imobiliário, ou conhecida pela abreviação CCI. Títulos de crédito são documentos que possuem força executória sem a necessidade de um prévio processo de conhecimento na esfera judicial. Para não adentrar em aspectos jurídicos técnicos, isso quer dizer que o detentor de um título de crédito tem a presunção de que o seu crédito é exigível judicialmente, não há a necessidade de uma sentença judicial para afirmar que o crédito é exigível. A duplicata, o quase extinto cheque, a nota promissória são todos títulos de crédito com força executiva. O interessante de se criar um título de crédito é que o mesmo pode ser negociado sem a anuência do devedor original, o Sr. X no nosso exemplo, e isso está explícito na lei n° 10.931/04. Logo, a instituição que emprestou o dinheiro para o Sr. X pode criar um CCI e vender este instrumento financeiro no mercado. 

    Como a instituição que realizou o empréstimo talvez tenha necessidade de caixa, talvez ela possua interesse de ceder os seus direitos creditórios por meio de um contrato de cessão de crédito, que nada mais é do que vender o crédito que a mesma tem em relação ao empréstimo feito ao Sr. X, para alguma outra instituição financeira. Uma instituição que faz empréstimo para pessoas adquirir imóveis não faz empréstimos apenas para uma pessoa,  mas para varias outras pessoas. Assim, teoricamente, a empresa que faz esses empréstimos pode emitir diversos CCIs e vender os direitos creditórios para uma outra instituição. 

    A instituição que comprou esses diversos direitos creditórios, entre eles do nosso simpático Sr.X, pode fazer algo também muito interessante. Ela pode "empacotar" todos esses CCIs comprados em um único instrumento e chamá-lo de Certificado de Recebível Imobiliário e colocá-lo a venda geralmente para investidores qualificados. Assim, uma instituição como a Brazilian Securities compra diversos CCI, empacota todos eles numa série de CRI e vende diversos certificados geralmente a valor inicial de R$ 300.000,00. Um Fundo Imobiliário como FEXC, depois de captar dinheiro de investidores em alguma oferta de quotas, então compra diversos CRIs da mesma série ou de diversas séries e recebe remuneração por isso. Essa remuneração vem da onde Soul? Vem do pagamento das parcelas do financiamento imobiliário feito pelo Sr. X e vários outros. Então, quando um FII de papel compra uma série de uma CRI emitida por exemplo pela Brazilian Securities tendo como funding principal o mercado residencial, quer dizer que os quotistas desde FII na verdade compraram os direitos creditórios do recebimento de contratos imobiliários de imóveis financiados às vezes por 30 anos.

    Pausa para balanço. Nessa altura, mesmo sem entrar nas métricas de uma determinada série de CRI, dá para perceber que esses instrumentos são muito mais arriscados. Quando você compra uma LTF na plataforma do tesouro direto você compra o direito de receber juros e depois de um determinado tempo o principal da dívida, tudo isso garantido pelo governo federal. Quando um quotista compra uma quota de um FII como o XPGA ou FEXC ele compra o direito de receber juros e o principal de um devedor, se o funding for residencial, imobiliário muitas vezes pessoa física. Deu para perceber a diferença? Se um gerente do BB chegasse com a seguinte proposta para você ao saber que a sua intenção é comprar LCA do próprio BB: "Olha, ao invés de investir em LCA, onde o BB garante o empréstimo, você não gostaria de assumir a posição de credor do BB nesse empréstimo imobiliário feito pelo banco para uma pessoa comprar um apartamento pelo prazo de 30 anos, recebendo juros de 10%aa?". Você, se tem alguma educação financeira, provavelmente iria responder apenas "Não, obrigado", pois qual seria o sentido de assumir uma bronca dessas no valor de várias centenas de milhares de reais para ganhar 10%aa se o custo de oportunidade do dinheiro está acima disso? Primeira lição de FII de papel: retornos de 0,9 ou 1% am não são nada espetaculares pelo risco muito maior que esses papeis possuem, principalmente levando em conta que a taxa SELIC está atualmente em 11,25% e que há debêntures incentivadas pagando algo em torno de 1% am. Sendo assim, cuidado ao se empolgar com taxas que não são nada elevadas, pelo contrário eu acho que são extremamente baixas se comparadas com o custo de oportunidade financeiro atual brasileiro.

    "Poxa, Soul, mas no caso hipotético do gerente do banco, era apenas um contrato, o que ficava muito arriscado. No caso dos CRIs são dezenas, centenas de CCIs, e no caso de fundos imobiliários de papel são dezenas de CRIs, o que quer dizer que são milhares de CCIs", alguém pode estar pensando. Sim, é a mais pura verdade. É inegável que há uma pulverização do risco individual de cada empréstimo com os CRIs, e com os FII adquirindo diversos CRIs o risco se pulveriza ainda mais. Pode-se chamar de diversificação, o que é algo bem saudável. Porém, essa diversificação não é capaz de eliminar o risco de uma crise aguda no mercado imobiliário em geral e nos empréstimos imobiliários em especial, e aqui começo a tratar de métricas de análise.

    Colegas, os CRIs são muito parecidos com os instrumentos financeiros CDOs (Collaterized Debt Obligation ) que estiveram no epicentro da crise financeira de 2008. Não sabe ao certo oque é CDO ou CDS (Credit Default Swap)? Assista ao documentário fenomenal ganhador do Oscar "Inside Job". Não vai te dar uma compreensão técnica completa do que são esses instrumentos, mas vai dar uma primeira base ao menos.

Um belo documentário. Obviamente não é para saber profundamente sobre a crise financeira de 2008, mas é um belo trabalho investigativo que deixa no ar diversas questões profundas sobre o nosso sistema financeiro.

    A simples semelhança dos CRIs com os CDOs já deveria deixar algumas pessoas extremamente cautelosas ao fazer investimentos em FII de papel que está recheado de CRIs. Porém, por quais motivos a coisa degringolou nos EUA com os CDOs? Há várias explicações, porém eu vou me ater a duas métricas principais que se deterioram rapidamente: Loan to Value, ou LTV e Debt to Income ou DTI. O que é o LTV? Nada mais é do que a razão entre o empréstimo e o valor do bem dado em garantia para um empréstimo (no caso dos CRIs são os imóveis alienados fiduciariamente). Quanto menor for essa métrica, mais seguro o empréstimo. Quando maior essa métrica, mais inseguro é o empréstimo. Por qual motivo? Voltemos ao caso do Sr. X. Ele pegou 700.000,00 emprestados para comprar um bem avaliado em 1M. Assim, o LTV desse empréstimo é de 70%. Isso quer dizer que se o Sr. X parasse de pagar já na primeira parcela, o credor teria que executar a garantia, no caso o imóvel dado em alienação fiduciária, para assim poder vender o bem e recuperar o dinheiro emprestado. Assim, quanto mais alto for o LTV mais arriscado vai ficando o empréstimo, pois a garantia depois de vendida talvez não cubra o saldo devedor do empréstimo. Agora, se o Sr.X ao invés de ter apenas 300.000,00 de poupança tivesse 800.000,00 e pegasse apenas 200.000,00 emprestado, teríamos um LTV do empréstimo de apenas 20%. Isso quer dizer que a garantia teoricamente é mais do que suficiente para bancar qualquer inadimplemento de pagamento. Portanto, uma métrica de LTV alta significa risco cada vez maior de perdas líquidas no empréstimo. Eu uma vez li em algum lugar que nos EUA se faziam empréstimo com LTV de incríveis 97%, significando que o tomador de empréstimo estava comprando 97% do bem de forma financiada, o que é um risco enorme para quem concede o empréstimo.

    Além do LTV, há uma métrica muito importante para se analisar a segurança de um empréstimo, que é o Debt to income ou DTI. Essa métrica analisa a capacidade financeira de um tomador do empréstimo de honrar os seus compromissos. Assim, para efeitos de praticidade vou considerar as parcelas constantes no tempo, se o Sr. X precisa pagar R$ 5.000,00 mensalmente do empréstimo feito e possui uma renda mensal de R$ 20.000,00, quer dizer que o Sr. X possui uma DTI de 25% (5.000/20.000), representando que o pagamento da dívida representa um quarto da renda corrente do Sr. X. Logo, DTI maiores significam empréstimos mais arriscados. DTI menores significam empréstimos mais seguros. No caso do EUA, ficaram famosas as hipotecas sub-prime, ou seja empréstimos feitos para pessoas sem uma renda tão alta ou estável. Nunca vi números, mas imagino que os DTI dessas hipotecas sub-prime deviam ser altos. O que acontece quando se junta empréstimos com LTV alto e DTI alto? Boa coisa com certeza não é, e a crise gigantesca de 2008 provou mais uma vez o quão míopes alguns investidores podem ficar em relação a métricas claramente deterioradas e extremamente arriscadas.

              "Soul, essas métricas DTI e LTV são estáticas?" alguém pode perguntar. Não, colegas, não são. Primeiramente, o devedor  pode ir pagando o empréstimo fazendo que o saldo devedor diminua cada vez mais, fazendo com que o LTV diminua. O imóvel pode aumentar de valor, fazendo com o que o LTV também diminua. Imaginem que um ano depois do Sr. X comprar financiado o imóvel de 1M, o mesmo passe a ter um valor de mercado de 1,2M. O LTV irá baixar (estaremos aumento o valor do denominador) e o empréstimo terá ficado mais seguro. E o DTI? O devedor pode conseguir uma melhora salarial e ter a sua renda aumentada, o que fará com o que DTI diminua. A economia como um todo pode crescer fazendo com o que o nível de renda da maioria das pessoas suba fazendo com que os empréstimos fiquem mais seguros. Esse é o cenário otimista, onde tudo dá certo, o que faz as pessoas ficarem otimistas e menos cautelosas e aceitarem receber remunerações cada vez menores mesmo em títulos que oferecem riscos significativos. E o cenário pessimista?

    No cenário ruim, os imóveis diminuem de valor, o país entra em estagnação ou recessão fazendo com que os salários fiquem estagnados ou recuem, o desemprego aumenta (fazendo com que a métrica DTI perca o sentido para uma pessoa que perdeu completamente a renda). Se os imóveis perdem valor, o LTV aumenta. Se o imóvel que o Sr. X comprou por 1M cair para 700.000,00, o LTV irá subir sensivelmente. Se os salários decrescem, O DTI provavelmente irá aumentar ou perder o sentido quando a renda deixa de existir pelo desemprego. Assim, num cenário de contração da economia como um todo e do setor imobiliário em especial, pode fazer com que os empréstimos financeiros baseados em garantias imobiliárias fiquem extremamente arriscados, dependendo da variação do LTV e da capacidade das pessoas pagarem os seus empréstimos.

    Voltemos ao exemplo inicial do Sr. X. Lembrem-se que o LTV era de 70% para um empréstimo de 700.000,00 para o valor de imóvel de 1M. Acreditando que era o imóvel da vida dele, e que o valor intrínseco do imóvel era fenomenal não importando tanto o preço a ser pago já que ia financiar o mesmo em suaves prestações durante 30 anos, o Sr. X, bem como quem emprestou dinheiro para ele,  deu o azar de comprar o imóvel num pico de valorização imobiliária e a beira de uma recessão da economia.  Assim, dois anos depois da compra realizada o imóvel caiu 30% de valor, o saldo devedor não diminuiu muito (vou considerar igual para fins de simplificação) e o Sr. X perdeu o emprego (que fase Sr. X!). O LTV do empréstimo se tornou de 100% já que o imóvel diminui 30% (1.000.000 x 0.7) e o DTI perdeu o sentido, já que o Sr. X não terá mais dinheiro para pagar o seu empréstimo. Como o Sr. X ficará inevitavelmente inadimplente, o credor terá que obrigatoriamente executar o imóvel dado em alienação fiduciária. Porém, há custos para se tomar um imóvel e vendê-lo em leilão. A agência de classificação de risco Fitch (em diversos relatórios de classificação de risco que li da agência sobre algumas séries de CRIs) estima que uns 20% seriam os custos envolvidos para a transformação em dinheiro do imóvel dado em garantia. Isso está para lá de otimista. Os custos finais podem ser muito maiores, pois em leilão os deságios exigidos pelos investidores serão muito maiores do que meros 20% (sem contar os pesados custos de advogados, que com certeza não irão cobrar barato). Se a situação for de crise sistêmica  é possível que não se encontre nem mesmo compradores para esses imóveis, a não ser que se dê descontos de 70/80% do valor do imóvel (sim, isso existe, o que faz a alegria de quem entende um pouco do assunto). Portanto, no caso do Sr. X que o LTV passou de 70% para 100% é certo que o credor terá perdas líquidas pesadas no empréstimo feito, pois o imóvel dado em garantia não será suficiente, depois de pagos todos os custos e o spread grande bid/ask da venda do imóvel em leilão, para pagar o saldo devedor. Foi isso que aconteceu nos EUA. Alguns tomadores de empréstimo pararam de pagar, começou a se ver que os LTV eram imensos, veio pânico, o valor dos imóveis começou a cair, o que fez com que o LTV aumentasse ainda mais, os bancos retomavam as casas jogando muitos imóveis no mercado ao mesmo tempo, não apareciam compradores suficientes mesmo com grandes deságios em short sale ou foreclousure, o que fazia com que as pessoas que emprestaram dinheiro (ou que última instância compraram esses créditos) ficassem com grandes prejuízos líquidos. Um bom momento de estar líquido deve ter sido nos meses de pânico de 2008, consigo imaginar casas em La Jolla San Diego sendo vendidas em short sale ou em procedimento de foreclousure a preço de banana. Portanto, crises econômicas e imobiliárias podem cair com uma verdadeira bomba em instrumentos como CRI e por via de consequência em Fundos Imobiliários de Papel. 

      Depois dessa longa digressão, irei colocar algumas breves análises que venho fazendo séries de CRIs onde o Fundo Imobiliário FEXC possui grande participação como investidor. Depois das explicações creio que o leitor poderá facilmente compreender os dados abaixo. Todas as informações podem ser vistas no site da Brazilian Securitires (http://www.bfre.com.br/braziliansecurities/pt).

1)   1)    Série 269 – 8% + IGP-M (é quanto a CRI paga para os compradores) emitida em 2011
 Fundo Imobiliário FEXC possui 14M cota Sênior de uma emissão de 26M. Há ainda 3M de quotas subordinadas (10% do total, essa é a margem de segurança). A Taxa da CRI subordinada (série 270) é de módicos 51,1% aa, não você não leu errado.

- Funding - residencial (216 contratos originários de empréstimo). Porém 80% dos contratos são de refinanciamentos. Em 2014, o número de contratos caiu para 139. O saldo devedor da CRI Senior para 17,4M. O saldo do FII nesse CRI é de 14M (o que representa 80% da CRI Senior dessa emissão)
- LTV dos empréstimos – 47% em 2012, passando para 50% em 2014.
- DTI – DEBT TO INCOME – 30% na emissão 
- A Inadimplência em setembro de 2014 não era baixa. Apenas 55% dos pagamentos estavam em dia.  Mais de 18% do saldo devedor estava com atrasos superiores a 90 dias (atrasos superiores a 90 dias tem uma probabilidade grande de implicar em default do devedor original e necessidade de execução da garantia). Tal métrica vem piorando desde a emissão, o que pode significar um certo stress no fluxo de pagamentos.


 2)      Série 251 – 8,2% + IGP-M
Emissão Sênior de 35,3M (mais 10% de CRIs subordinados com remuneração de 44%,8 aa).

Funding – Residencial e comercial. Em setembro de 2014, havia 159 contratos. Apenas 46.9% do saldo devedor estava em dia.  24% do saldo devedor estava com atraso superior a 90 dias, o que é um número bem elevado. Saldo remanescente de 16,1M sendo que o FII possui 5,6M (o que representa uns 35%)
LTV – Em setembro de 2014, o LTV médio era de 57%. Porém, dos contratos em atraso em mais de 180 dias era de altíssimos 80%. Sendo assim, a própria agência de risco diz que nestes casos há possibilidade real de perdas patrimoniais, caso haja desvalorização dos imóveis.
DTI – Não encontrei.


        Assim, a série 269 que o FEXC comprou parte significativa da mesma rende IGP-M +8%. Nada tão espetacular se compararmos com NTNB pagando IPCA +6,5%. Alguém pode argumentar que há IR no título público federal, o que é verdade, mas se pode responder que o investidor em quotas do FEXC paga taxa de administração, que não são nada baratas em fundos de papel, assim o investidor final em FII não receberá IGP-M +8%. Pelas métricas, observa-se que atualmente há 139 contratos de financiamento. O LTV está em média em 50%. Uma parte significativa (45%) do saldo devedor apresenta atraso, sendo que 18% do saldo devedor total está com atrasos superiores a 90 dias. Será que alguém realmente analisou ou analisa cuidadosamente esses 139 contratos de financiamento?  Nessa série, por exemplo, há uma grande concentração do saldo devedor na cidade de São Paulo. Assim, bastaria um arrefecimento do mercado imobiliário em São Paulo (não precisa nem ser no Brasil inteiro) para que o LTV cresça tornando mais arriscada toda a operação. Além do mais, será que a qualidade dos tomadores de empréstimo foi muito bem conferida? Será que a empresa que concedeu os empréstimos sabia que poderia emitir CCIs e vender para uma securitizadora para essa transformar essas CCIs em CRIs e vender para investidores qualificados, não pode ter feito uma análise mais "frouxa" de crédito, tudo com o intuito de gerar esses instrumentos financeiros, já que o risco do empréstimo não ficaria mais com ela? Foi exatamente isso que ocorreu na crise das hipoetcas sub-prime do mercado americano. Isso pode vir a acontecer no Brasil? Eu não sei. Porém, eu acho que uma taxa de IGP-M + 8% aa (essa taxa pode ser maior se houver compras com deságio no VP) tendo que ainda descontar taxas administrativas pesadas, está longe de remunerar adequadamente o risco com SELIC a mais de 11% e FII de tijolo pagando de 10 a 12%.


     Não vou continuar na análise para não deixar esse artigo muito pesado. Porém, deu para perceber como pode ser complexa a análise de um FII de papel. Para analisar apenas duas séries de CRI, e o FEXC possui participação em dezenas de séries de CRI, é preciso um bom tempo e paciência para olhar todas as métricas. Alguém faz isso? Eu duvido, acho que até mesmo os gestores dos FII de papel não fazem isso. Para fazer uma análise completa, eu creio que teria que se analisar todos os CRIs do fundo, colocar os dados atuais de LTV e DTI, e simular dezenas de cenários de Stress em algum modelo de análise mais complexo. Sim, colegas, não é simples não. Não é à toa que os Quants (denominação que se dá a gênios de física ou matemática que vão trabalhar para o mercado financeiro) adoram esses instrumentos complexos de dívida, onde quase ninguém sabe ao certo precificar se o preço está correto ou não, mas apenas alguns poucos Quants com seus modelos de análise poderosos. Os Quants tiveram participação decisiva na crise financeira de 2008, e o livro "Mentes Brilhantes, Rombos Bilionários" é uma forma agradável de se saber mais sobre essa nova forma de encarar o mercado financeiro.


Um livro bacana que conta a história de diversos Quants e os seus fundos Hedges e como a forma de pensar de se criar instrumentos financeiros cada vez mais complexos onde apenas um punhado de pessoas compreendia bem acabou arrebatando W. Street e muitos incautos investidores.


        Muitos colegas olham apenas o preço da quota no mercado secundário e o preço do valor patrimonial da quota. Outros investidores mais sofisticados talvez olhem o preço da quota e tentem fazer alguma projeção com a curva futura de juros. Porém, eu me pergunto, se esses investidores sabem exatamente o que estão comprando. Não há nenhum problema em se comprar o que quer que seja no mercado financeiro, desde que o investidor saiba os riscos associados e desde que seja corretamente remunerado por esses riscos.  Mesmos instrumentos complexos e arriscados como os FII de papel podem ser bons investimentos, caso a margem de segurança seja grande. Se a compra é feita com um deságio de 20% do valor patrimonial, quer dizer que se muita coisa der errada e 20% do saldo devedor micar  o investidor mesmo assim não sairá perdendo nada. 

          Porém, os retornos potenciais devem ser atrativos. Não há qualquer sentido financeiro em comprar um FII de papel pensando num retorno financeiro de 11% ou até mesmo 12% aa, quando a SELIC encontra-se no patamar de 11.25%. Além do mais, é insólito ter um retorno quase idêntico, ou às vezes idêntico, de um FII de tijolo onde a fonte de receita é de aluguéis de empresas. Se tudo der errado para um FII de tijolo ele fica com 100% de vacância e pagando os custos de manutenção, porém o ativo permanece lá com toda a possibilidade de gerar receitas. Se tudo der razoavelmente bem, o FII de tijolo não só fornecerá renda de aluguel, como apresentará dividendos crescente com o tempo, como é normal em alugueis, já que o yield de um FII tende a ser uma métrica real. Portanto, é ilógico termos FII de tijolo e FII de papel pagando o mesmo yield, e isso está acontecendo atualmente no mercado brasileiro. Não acredita? Quando fiz uma série sobre REITs (que considero um dos melhores artigos que já escrevi, pois é um tema quase não tratado no Brasil), eu fiz uma comparação dos Yields dos Mortage Reits (FII de papel americano) e do Yield do  S&P 500  (Os Equity Reits - FII de tijolo americano -  possuem um yield pouco superior ao S&P 500. Atualmente o Yield é na faixa de 3,5% aa - o leitor pode conferir a série em http://pensamentosfinanceiros.blogspot.com.br/2014/04/reits-um-estudo-sobre-suas.html, são três artigos) :



      Percebam a diferença abissal do yield que os Mortage Reits proporcionam. Isso nem remotamente acontece no Brasil. Quando escrevi a série há seis meses, eu não entendia muito bem o motivo de não haver quase nenhum spread entre FII de tijolo e FII de papel. Hoje cada vez mais me convenço é de que talvez não se saiba corretamente quantificar o risco dos FII de papel e se exige um prêmio muito baixo.

      Uma crise econômica ou uma estaginflação cumulada com uma crise imobiliária pode ter impactos bem negativos no mercado imobiliário de aluguel. A vacância pode atingir níveis altos, os alugueis podem cair, e alguns FII podem passar por dificuldade (apesar de achar que com uma carteira de uns 15-20 FII bem selecionados o investidor não terá grandes sobressaltos em seu fluxo de caixa). Porém, um cenário desses pode ser uma verdadeira bomba para FII de papeis, pois isso pode aumentar o inadimplemento e os LTV podem chegar a níveis bem perigosos caso haja uma desaceleração imobiliária geral. Cabe ao investidor sopesar os prós e contras desse investimento, e estar ciente no que está se metendo ao comprar esse instrumento financeiro.




É preciso abir a caixa preta que são os FII de papel. Resta torcer para que não seja uma caixa de pandora.

       É isso colegas. O artigo ficou extenso, mas é um tema que não é muito abordado na internet, portanto creio que a leitura tenha valido a pena. 



                
 Um grande abraço a todos!