domingo, 27 de janeiro de 2019

REVOLTA E IRRITAÇÃO - COMO DEIXAR VOCÊ "PUTO DA CARA" É UMA ESTRATÉGIA EFICAZ DAS MÍDIAS SOCIAIS



                Olá, colegas. Vocês conhecem um sujeito chamado Tristan Harris? Aposto que a maioria não faz a mínima ideia de quem seja.  Normal, eu também não fazia ideia de quem fosse até uns meses atrás. Bom, isso não é tecnicamente verdade, pois há alguns anos tinha lido um texto muito bom de como as mídias sociais são projetadas deliberadamente para atingir as vulnerabilidades das pessoas. O texto tinha sido escrito por um ex-mágico que trabalhava no setor de ética da Google, e apesar do texto vir a minha mente algumas vezes, eu nunca lembrava o nome do autor.

                Tristan Harris é um especialista de como as mídias sociais são construídas para cativar a nossa atenção, e como deveríamos fazer mais reflexões éticas sobre os caminhos que essas tecnologias estão tomando.  Nada melhor que ir à fonte e ler o artigo  orginal (infelizmente está em inglês para os que não dominam o idioma de Shakeaspere):how-technology-hijacks-peoples-minds-from-a-magician-and-google-s-design. É um artigo relativamente curto, e de certa forma assustador.


Se você gostar de ouvir podcasts e entender Inglês mais fluentemente, sugiro o excelente podcast que o Sam Harris entrevistou o Tristan Harris

                Se quiser uma versão mais condensada, sugiro essa palestra na TED


                Não vou comentar, ou tentar, sobre as diversas implicações do que esse incrível pensador traz para a sociedade, mas vou me concentrar apenas numa que acho essencial.  Hoje há uma batalha por sua atenção, prezado leitor.  Mídias sociais precisam manter cada vez mais as pessoas “engajadas” em suas plataformas, ou seja, quanto mais tempo os indivíduos ficam no Facebook, whatsapp, twiter, etc, etc, melhor para essas empresas. Essa busca desenfreada pela atenção das pessoas, cumulada com cada vez mais algoritmos de inteligência artificial, está conduzindo a uma “corrida armamentista ladeira abaixo”. Cada vez mais, táticas e técnicas, independente do seu conteúdo ético e no impacto do bem-estar das pessoas, estão sendo utilizadas para sequestrar a atenção das pessoas.

                O exemplo mais eficaz, e ao mesmo tempo grotesco, é a utilização cada vez maior da revolta ou repúdio na geração de notícias, feed, vídeos, etc.  Nós, e eu me incluo fortemente nisso, somos atraídos como formigas para um açucareiro quando nosso cérebro é estimulado com algum acontecimento que causa revolta.  Quer ver os compartilhamentos aumentarem e o tempo despendido com as mídias sociais aumentar basta mostrar a alguém que voltou no Bolsonaro algum acontecimento sobre “Lula Livre” ou basta fazer o contrário, mostrar a um admirador do Lula alguma frase do Bolsonaro sobre homossexuais.  Pronto, a isca será devidamente abocanhada.  

        No Youtube, por exemplo, dificilmente você verá destaque de um vídeo como o título “dois pensadores discutem amigavelmente sobre suas divergências”, mas é quase certo que algum vídeo como “Olavo de Carvalho destrói repórter comunista” ou “ Repórter humilha Olavo de Carvalho” terão um destaque maior, e os próprios criadores de conteúdo já perceberam isso há muito tempo. E é muito provável se estes dois hipotéticos vídeos estiverem na sua barra direita como sugestões de vídeo, eles estão lá graças a um algoritmo de inteligência artificial que sabe que pode explorar essa vulnerabilidade humana.     
       
                Basta olhar os vídeos do youtube, feed de notícias ou acontecimentos, etc, que esse padrão fica tão claro e cristalino que você se pergunta como ninguém, ou quase ninguém, está percebendo tal fato.  E num mundo onde todos podem dar opinião sobre tudo quase que instantaneamente sempre haverá alguém em algum canto dizendo algo que seja repulsivo ou revoltante para você em relação a alguma coisa, ou seja, se você deixar se levar sempre haverá algum "acontecimento" para instilar esse sentimento durante vinte quatro horas sete dias por semana.  

       Sabe aquele desejo de comentar num texto que você não concorda com absolutamente nada? Essa é a sensação constante, mas feito de uma maneira muito mais vulgar, crua e agressiva. É possível haver uma genuína troca de idéias entre pessoas com idéias absolutamente antagônicas, mas é quase impossível que isso se dê dentro de plataformas que possuem limitação de espaço, e onde o fluxo constante de novos dados de informação é a regra.

                Isso é horrível, pois deixa as pessoas sempre com sentimentos ruins, bravas, e aos poucos vai minando a própria possibilidade de uma convivência mais pacífica e harmoniosa dentro de uma sociedade que naturalmente é multifacetada e diversa (ainda mais uma como a brasileira).

                Ficar brabo todo o tempo e irritado por que alguém disse algo absurdo para a sua visão de mundo é um caminho certo para uma vida desequilibrada. É evidente que há casos mais patológicos, mas para mim fica claro que as mídias sociais, do jeito que elas são configuradas atualmente, são quase sempre tóxicas, e o motivo delineado nesse texto não é o único, mas talvez seja um dos mais fortes.      

                A solução? Leia esse bom livro que você irá descobrir:

Um curto e bom livro com argumentos bem interessantes de alguém que viveu e vive por dentro do círculo de tecnologia do vale do silício.

      Um abraço!


segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

A BUSCA DESENFREADA POR "SUCESSO" E A TRISTEZA QUE ISSO OCASIONA EM MUITOS


                “Faça sucesso!” “Agregue mais valor a você mesmo, ´pense fora da caixa´!” “Destaque-se da multidão, seja diferente”. “Seja o melhor.” “Seja mais, mais e mais!”. Essa talvez seja a mensagem número um, ou talvez número dois perdendo apenas para o “consuma cada vez mais seja lá o que for”, que recebemos de livros, pessoas “iluminadas”, pessoas de “sucesso”, do sistema como um todo, é o mantra que todos repetem. Basta olhar pelos variados blogs e artigos, e essa é a mensagem difundida ad nauseam.

                Há alguns dias escrevi sobre o incrível experimento dos nove pontos, e a dificuldade que os seres humanos possuem, ao menos a imensa maioria, de pensar em soluções que estejam fora dos limites que achamos naturais . Ou seja, é difícil mesmo “pensar fora da caixa”, e esse simples experimento feito a primeira vez há mais de cinqüenta anos deu insights valiosos para entender como funciona a mente humana na resolução de problemas.

                Então, fui surpreendido pela mensagem de um blogueiro sobre o supracitado texto que dizia o seguinte:



                Por qual motivo fui surpreendido? Porque há muitos anos reflito exatamente sobre isso.  Essa ânsia generalizada por ser o melhor, especial, diferente, cria, ou está criando, um estado permanente de insatisfação generalizada nas pessoas. Essa insatisfação se manifesta das mais variadas formas como: irritação, ansiedade, casos de depressão, incapacidade de se saborear e viver no momento presente, neuroses das mais variadas espécies, e uma tristeza imensa resultando numa grande perda de bem-estar geral.     

                E por qual motivo isso pode estar ocorrendo? Se eu falasse que sei, estaria mentindo, pois o assunto é por demais complexo e com inúmeras variáveis, mas posso fazer algumas conjecturas.  Quando alguém diz que você precisa obter sucesso, a primeira pergunta, e de certo ponto óbvia, é indagar o que é sucesso. É mais dinheiro? São mais relações sexuais com mulheres (ou homens)? É mais poder sobre outros seres humanos? É ajudar os outros? É ser um melhor pai ou mãe?

                Todas as indicações do parágrafo anterior são respostas possíveis para o que seja uma vida de sucesso. Chegado num consenso do que seja sucesso, será que isso varia de indivíduo para indivíduo? De cultura para cultura? De tempo histórico para tempo histórico? No mesmo indivíduo à medida que ele vai envelhecendo?

                E como eu sei que a definição de sucesso que adotei para mim mesmo reflete exatamente aquilo que sou e penso? Será que é possível que o que penso ser sucesso não seja apenas reflexo de propaganda ou agendas ocultas construídas por outros? Se é fruto do meu pensamento, até que ponto o meu pensamento é livre e não preso em circunstâncias culturais, histórias, ideológicas, temporais? Aliás, até que ponto há qualquer tipo de pensamento livre conhecido como livre-arbítrio?

                Olhe quantas indagações surgem apenas ao  refletir sobre o mantra “seja uma pessoa de sucesso”.  E se você conseguir responder a si mesmo todas as perguntas, podem surgir outras mais profundas, e por qual motivo necessita-se sucesso? O sucesso vai me fazer uma pessoa mais feliz? E a felicidade é o que se deve perseguir na vida ou há outros valores maiores? E se o sucesso me encaminha para uma vida mais feliz, isso possui alguma importância perante a minha mortalidade?

                É claro que é difícil responder essas perguntas. Talvez uma vida inteira não seja suficiente, talvez não haja nem mesmo respostas para algumas delas. Porém, por mais difícil que seja a tarefa (e nem é tão árduo assim refletir sobre isso), é possível sim fazer avanços sobre esses temas.  Em minha opinião, somente as pessoas que realmente refletem sobre a miríade de indagações que surgem da primeira pergunta “o que é sucesso?” podem realmente de forma consciente perseguir o “sucesso”.

                Caso contrário, a busca pelo sucesso pode levar, e na maioria dos casos é exatamente isso que ocorre, leva à frustrações que desembocam nos potenciais problemas descritos no começo desse texto.  Perceba, então, meu amigo blogueiro “Soldado do Milhão” que é natural estar perdido no meio de tudo isso, ainda mais num mundo com cada vez mais informação, rápido, com um consumo reluzente e uma caracterização quase única do que seja sucesso.  Se “sucesso” for caracterizado única e exclusivamente como ser extremamente vitorioso na vida profissional, e isso significando ganhos financeiros e patrimoniais imensos, é evidente que poucas pessoas poderão ter sucesso na vida, por uma questão de pura lógica. Numa classe de 50 alunos, só um pode ser o melhor. Numa profissão qualquer apenas vinte podem estar na lista dos vinte melhores e mais bem pagos. Isso é o caminho certo para a infelicidade e insatisfação da maior parte das pessoas numa sociedade humana.

                Mas talvez sucesso seja muito mais do que isso, ou talvez seja completamente diferente disso, ou talvez para a sua única posição no universo seja completamente diferente da minha, por exemplo. Eu realmente acredito que como nós evoluímos biologicamente, e como somos parte da mesma espécie, nós guardamos mais similitudes do que diferenças naquilo que nos traz bem-estar, mas é plenamente possível que existam zonas de profunda dessemelhança entre os mais variados seres humanos.

                E como alguém vai saber disso? Apenas refletindo sobre quem se é, o que se quer da vida, o que é a vida, o que traz bem-estar, e as mais variadas questões que podem surgir quando mergulhamos profundamente nesses questionamentos. Espero que com essa pequena reflexão fique claro o poder da frase atribuída a Sócrates e a inscrição presente no Templo de Delfos:


"Conhece-te a ti mesmo"


                Uma vida refletida nos leva a um conhecimento maior de quem realmente nós somos. Conhecendo quem somos podemos fazer escolhas mais conscientes sobre o que queremos e o que somos. Se assim o fizemos, talvez uma vida de sucesso seja uma vida simples, talvez não. Mas com certeza será uma vida muito mais condizente com aquilo que almejamos ser.

                Um abraço a todos!
               

sábado, 12 de janeiro de 2019

AS NARRATIVAS CONSTRUÍDAS NO FLUXO DE INFORMAÇÃO: O QUE DONETSK, IÊMEN E BREXIT TEM EM COMUM?

                Como abordar esse tema de maneira um pouco mais lúdica? Pensei em contar uma história pessoal e nisso fazer uma transição para uma reflexão sobre o tema. Não há dúvida de que uma pessoa vivendo numa cidade, em qualquer lugar do mundo, possui muito mais acesso à informação do que há 10 anos. Se eu pensar quando os meus pais eram crianças, na década de 40, a quantidade de informação disponível então hoje é vários graus de magnitude maior. Estamos lidando bem com tudo isso?

                Ulan-Ude é a primeira cidade maior para quem está vindo da Mongólia em direção à Rússia. Ulan-Ude é a capital da República da Buriácia. Para quem não sabe, a Rússia possui dezenas de Repúblicas com graus variados de autonomia, e com presença de diversas etnias. A Rússia é realmente um caleidoscópio de etnias, a visão de loiros de olhos azuis não é necessariamente verdadeira para toda Rússia. Foi nosso primeiro ponto de parada no país, um dos lugares mais inexplorados, ao menos para estrangeiros, e bonitos da terra.

                A característica mais marcante dessa cidade, ao menos para mim, foi ver uma grande presença de russos oriundos de uma etnia mongol.  São chamados Buriates-Mongóis (sim, o nome Buriácia vem daí), são cidadãos russos, mas com uma etnia mongol. Na cidade Ulan-Ude, era extremamente normal ver rodas de adolescentes russos, metade bem loiros, e outra metade com traços mongóis. Vi vários casais também de etnias diferentes. Foi uma grande surpresa, mas também algo muito legal de se ver. A primeira impressão foi de como a Rússia é “mal e porcamente” conhecida pela vasta maioria dos ocidentais, inclusive, talvez principalmente, por aqueles que acreditam ser bem informados. A outra foi como duas etnias complemente distintas (a eslava e a mongol) conviviam em grande harmonia, ao menos para um observador casual como era o meu caso.

A grande cabeça de Lênin no centro da cidade de Ulan-Ude

                Foi em Ulan-Ude que vim ver as primeiras estátuas em homenagem a Lênin,  stalin e outras figuras do passado comunista russo não há nenhuma homenagem ou referência. Creio que utilizam a figura de Lênin com um elo para o passado de um regime que durou mais de 70 anos, pois seja a história triste ou opressiva, ela mesmo assim ainda é a história russa do século vinte. Pude também sentir a atmosfera de uma cidade russa que não seja as famosas e badaladas Moscou e São Perterburgo. 

       Aliás, as cidades russas são incríveis, a completa ausência de estrangeiros, o jeito “rude-mas acolhedor” de muitos russos, a admiração deles quando sabiam que éramos brasileiros (ao menos antes da reputação dos brasileiros ser um pouco arranhada com alguns casos lamentáveis durante a copa), fez que nosso um mês na Rússia fosse fantástico. Foi um mês, mas a Rússia merece ao menos uns quatro meses de viagem. A Rússia, e com certeza a Mongólia, é um dos lugares que pretendo levar a minha filha quando ela for um pouco maior.

                Foi também Ulan-Ude que comecei o meu “tour” de jogar xadrez pelas ruas e cafés das cidades russas apostando dinheiro. Russos não jogam, ao menos eu não observei em nenhum lugar, xadrez ao ar livre sem apostar algum dinheiro.  Nessa primeira vez, foi muito engraçado, pois eles viram um brasileiro jovem, talvez nunca tinham conversado com um brasileiro antes, pedir para jogar. Eles ficaram reticentes e num completo “broken english” falaram que era a dinheiro. Depois da minha quarta vitória seguida, os tiozinhos já estavam sorrindo para mim, como se eu fosse da turma, um deles até falando “mequinho” (mequinho foi o maior jogador de xadrez brasileiro da história), e numa mistura de russo, inglês, mímica, nós íamos conversando. Foi uma experiência incrível.



Soulsurfer jogando xadrez pela primeira vez na Rússia. Cada partida valia o equivalente a um dólar, e nessa parte da Rússia podia se comer muito bem com quatro dólares (a quantia que fiz).

                
Infelizmente, o vídeo mais engraçado dessa experiência, não consegui dar Upload por ser maior de 100 megas. O interessante, porém, é a tradição de apertar as mãos quando se inicia uma partida (e em campeonatos quando se termina). Por esse motivo resolvi colocar esse vídeo, pois é uma tradição incrível do xadrez. Uma vez num campeonato mundial, na minha melhor competição, em 1996 estava com uma partida ganha. Se eu ganhasse, faltariam apenas 3 rodadas (8 já teriam ido), e eu estaria entre os 10 melhores do mundo. Vai que eu me inspirasse e ganhasse duas e empatasse uma nas últimas três rodadas, poderia terminar entre os três melhores do mundo. Porém, fiz um lance ruim, a posição se igualou, e eu acabei perdendo. No final, eu não cumprimentei o meu adversário (creio que era um Suíço) e me neguei a analisar a partida (uma prática comum em torneios internacionais). O meu pai estava na parte reservada aos observadores, e viu a cena. Ele disse que ficou envergonhado, não por eu ter perdido, mas por eu não ter cumprimentado e negado em analisar a partida. Eu tinha 16 anos, e era mais do que compreensível a minha atitude, mas é aí que entra a moral e caráter dos pais. Até hoje lembro dessa cena, e como o meu pai estava certo ao chamar minha atenção. O cumprimento é o ato de se dignar e respeitar o seu adversário, independentemente se você perdeu ou ganhou. O xadrez me ensinou um pouco disso. Como o mundo não seria melhor se as pessoas, metaforicamente ou não, simplesmente apertassem as mãos dos seus adversários?

            Todo esse perspectiva pessoal sobre Ulan-Ude para dizer que uma noite entramos num restaurante e descobrimos que eles tinham pizza. “Uau, comer uma pizza depois de tantos meses” pensamos com as nossas papilas gustativas já salivando. Lá a pizza era vendida por quilo, e pedimos um quilo de pizza. O atendente num inglês quebrado foi extremamente agradável, e quando falamos que éramos brasileiros, sua simpatia aumentou ainda mais, ele trouxe até um balão de presente. Perguntei de onde ele era, ele respondeu Ucrânia. Perguntei de qual parte da Ucrânia, ele falou Donetsk. “Está um pouco difícil lá nesse momento, não?”, ele aquiesceu e respondeu “é por isso que estou aqui”. Conversamos um pouco sobre a Ucrânia, no limite do possível pela barreira linguística (eu adoro esse tipo de conversa) e sobre a vida dele.

Essa é a pizza
Esse é o balão (e o bar-pizzaria era muito interessante, pois eram inúmeras Tevês passando clipes de russas lindas de biquini em poses sensuais, esse traço da cultura russa, completamente machista, veríamos em muitos e muitos lugares)
E esse é o Ucraniano

                Para quem não sabe, depois da anexação da Criméia por parte da Federação Russa, uma série de conflitos armados se espalharam pelo leste da Ucrânia (onde Donetsk está localidada) entre forças pró-russas e forças ucranianas. A região da Criméia era predominantemente formada por russos, já o leste da Ucrânia como um todo possui muitos russos (ou descendentes de), mas a maioria é formada por  Ucranianos.

                 E o que isso tudo tem a ver com o tema do artigo de hoje? Quando da anexação da Criméia, houve um grande alarido de uma possível guerra de maior escala entre a Rússia e a Otan. Lembro inclusive de textos de “analistas” sobre o potencial grave impacto de um possível conflito na precificação de ativos. Muitas notícias em diversos canais de comunicação. Com o fluxo de informação, muita atenção de pessoas comuns foi orientada para aquela parte do mundo. Passados alguns meses da consumação da anexação, a Ucrânia saiu dos noticiários, e talvez seja esse um dos motivos da esmagadora maioria das pessoas que se considera bem informada não saber que diversas regiões do leste da Ucrânia estão em situação de “quase guerra”. Se havia potencial de um conflito entre a Rússia e a demais potências ocidentais quando da anexação da Criméia, pode ter certeza que o potencial ainda está lá no atoleiro chamado "leste da ucrânia".

                Lembro também quando estava no Irã, eu de vez em quando assistia à televisão local. Sempre nos comerciais havia cenas fortes do conflito do Iêmen e o papel nefasto que algumas potências ocidentais estavam exercendo nesse conflito. A narração era em farsi, mas havia algumas legendas em Inglês, e por isso eu conseguia entender alguma coisa. Isso foi em 2016. 

           A guerra do Iêmen só foi ter alguma pouquíssima atenção no ocidente (e no Brasil nenhuma atenção), quando houve o assassinato de um jornalista saudita crítico do regime ditatorial da Arábia Saudita num consulado árabe na Turquia num ato horrendo. O presidente dos EUA, numa atitude completamente contrária a tradição americana, colocou panos quentes, o que o Senado Americano, de maioria republicana, não aceitou e por unanimidade condenou a Arábia Saudita (realmente, o estrago de Trump nas instituições americanas não será pequeno). 

          Só daí, no final de 2018, começou-se a levantar os vínculos americanos com a guerra saudita empreendida no Iêmen .   Isso já era notícia principal no Irã em 2016, e muito provavelmente antes disso. O conflito no Iêmen, um dos mais catastróficos em termos humanitários (se não for o maior atualmente) é algo invisível para quase todos os ocidentais (e nem me refiro aos Brasileiros), mas no Irã era notícia central há alguns anos. Como poder ser algo tão central para certas redes de notícia, e inexistente para outros? Com certeza, apenas a proximidade geográfica e o envolvimento do Irã no conflito não respondem essa questão na sua integralidade.

                Brexit. Uns comemoraram.  Viram o surgimento de algo novo, era o “povo” dizendo não à burocracia européia. Os mais chegados em teorias conspiratórias viam o Brexit, junto com a eleição do Trump, como um sinal da derrocada do “globalismo” e o surgimento de algo novo. Analistas surfando no óbvio hoje dizem “está vendo, olha como a mídia tradicional, e os analistas puderam ser cegos”.  Outros, por seu turno, dizem que foi um grande erro cometido pelo Reino Unido. Acerto ou erro, o fato é que na época muita atenção foi dada ao Brexit, e de novo várias análises, inclusive de blogueiros amadores, sobre os efeitos do Brexit , as implicações políticas e sociológicas.

                O Brexit, porém, ao menos no Brasil saiu de moda. Acontece que está uma confusão danada no processo de saída, e ninguém sabe ao certo o que realmente vai acontecer. Os acontecimentos de hoje são tão ou mais importantes do que quando o Brexit foi decidido, mas parece não ter muita atenção da mídia.

                O que Donetsk e a guerra civil em standy by no leste da Ucrânia, Iêmen e Brexit possuem em comum, se é que há algo que os une? Por qual motivo eu estou falando disso? Há pessoas com o dom da concisão, não é o meu caso. Os maiores mestres da concisão geralmente são poetas, por isso quando você escutar de alguém que poesia não tem serventia ou sentido, apenas ignore, pois quem diz tal estultice não sabe do que está falando. Como me falta a genialidade da concisão, eu muitas vezes construo inúmeros textos para mostrar como penso sobre determinada faceta da realidade.

                Quando escrevi “estórias” sobre o absurdo de pessoas se importarem mais com a “reforma da previdência” do que aspectos práticos do seu dia a dia, tive muitos comentários do tipo “o seu texto foi prolixo, é evidente que não é o mais importante, mas discutir a reforma da previdência é imprescindível, etc, etc”. Teve até um comentário no sentido “e se o sujeito achar que a reforma da previdência é mais importante do que seu relacionamento conjugal, o que você tem a ver com isso? Hein!”. Ai, ai.  

         Primeiramente, no próprio texto estava explícito (e eu ainda deixei isso explícito no texto) de que a reforma da previdência era apenas uma metáfora para como as pessoas hoje em dia se deixam levar por assuntos que às vezes não compreendem adequadamente em detrimento de assuntos muito mais relevantes para o seu dia a dia.  Quase todos que escreveram comentários nessa linha, não se deram conta nem ao menos disso. Substitua “reforma da previdência”, por “Iêmen, Donekst ou Brexit” e o efeito é rigorosamente o mesmo. Em segundo lugar, amigo, você pode fazer o que quiser da vida, inclusive negligenciar o seu relacionamento, aliás, isso é o que boa parte das pessoas faz, nenhuma novidade aqui.

                O que une Iêmen, Donekst e Brexit, ou a reforma da previdência, é que a forma como esses temas são apresentados a nós são construções de uma narrativa que nem mesmo sabemos a origem ou quem está por trás.  Numa hora um assunto é importante, na outra não. Um assunto é negligenciado numa parte do mundo, na outra não. As narrativas construídas estão completamente fora do nosso alcance, e como nossa capacidade mental tem limite para absorver informações, e como ninguém quer ou pode gastar tempo realmente pesquisando a fundo os diversos assuntos, coloque na cabeça, prezado leitor, que o fluxo constante de informações que chega a você são narrativas criadas por terceiros que podem ou não guardar mais ou menos similitude com a realidade, ou mais ou menos relevância para humanidade, ou em última instância mais ou menos relevância para você.

                O relacionamento de você, leitor, com sua mulher , filhos, amigos, vizinhos, e mais importante consigo mesmo, por outro lado, é real, é seu, é algo que diz respeito direta e incisivamente a você, e tem um grande impacto no seu bem-estar. “Ah, Soul, mas quem não sabe disso?”, algumas mensagens foram escritas quando esse tema foi abordado. Resposta: muitas pessoas, basta fazer um experimento próprio e observar ao seu redor. 

        Minha filha nasceu, por exemplo, e meu padrinho não foi capaz de me mandar uma mensagem sobre esse fato tão importante. Porém, ele é capaz de me mandar mensagens sobre política por mídias sociais.  Isso é sinal de adoecimento das relações. Não me entendam mal, eu adoro o meu padrinho e sinto muito carinho por ele, e nem mesmo fiquei chateado, pois realmente compreendo como as pessoas estão fazendo escolhas tolas nesse aspecto, mas é evidente que muitos indivíduos estão literalmente dando mais importância a informações sem qualquer relevância direta com suas vidas em detrimento de relacionamentos pessoais mais íntimos. Isso é apenas um exemplo, tenho diversos outros, e com certeza isso é apenas uma gota e cada leitor se fizer um esforço talvez tenha um ou mais exemplos, ou talvez seja o próprio exemplo.

                Portanto, talvez as idéias desse blog fizessem mais sentido se expostas num livro de forma mais harmônica, ou num podcast de uma duração mais longa, mas a vida completamente desbalanceada em que muitas pessoas vivem pode ser abordada de diversos aspectos, de diversas formas e com a construção de diversos artigos. “Mas, eu não concordo”. Ótimo, é um direito seu leitor, e fico feliz que assim o seja. “Eu acho o artigo prolixo e sem fundamento”. Tudo ótimo também, ninguém é obrigado a ler o que eu escrevo ou, melhor dizendo, é possível gostar de textos meus, e não gostar de outros, e isso é muito salutar. Ou ainda  “           Brexit, reforma da previdência, Irã, Ucrânia? Isso não tem qualquer relação, vou lá ver o meu vídeo ou o meu artigo sobre o problema X pela enésima vez”, ótimo também.

                Porém, em que pese o parágrafo anterior, podem ter leitores (três, quatro, dez) que realmente possam parar e refletir com seriedade sobre as próprias condutas. O grande filósofo Sócrates disse, ou ao menos se atribui a ideia a ele, que “ a vida não examinada não merece ser vivida”.  Quer o leitor concorde ou não,  “Iêmen, Donekst ou Brexit” mostram que o fluxo de informação  chega até nós com uma narrativa embutida, seja de maneira consciente ou não, tanto que é muito difícil diferenciar o que é real, o que é importante, do que é apenas uma visão parcial e distorcida. Se o Brexit era importante em 2016, ele ainda o é mais importante no começo de 2019, por mais que as notícias não demonstrem isso.

                Portanto, sobre esse ponto de vista, ainda mais agravado pelo “click bait” (que se dá de diversas formas), pela falta de profundidade de análises, pela pura repetição acrítica de idéias, ou pelo abuso do sensacionalismo de “notícias” que não mereceriam qualquer relevância, quase todo o noticiário é de certa forma tóxico. Além der ser informações com uma narrativa construída, sem qualquer participação sua leitor, quase nunca esse fluxo de informação faz com que os consumidores dele se sintam melhores,  empoderados, felizes e realizados com suas próprias vidas.  

                Suas relações mais próximas, sua saúde, física e principalmente mental, por outro, são reais e imprescindíveis para uma boa vida. Uma vida refletida necessariamente passa por um processo profundo, e muitas vezes demorado, de questionamento de muitos hábitos de nossa vida cotidiana.

                Como disse o baterista do Iron Maiden (Nicko Macbrain) uma vez “se você gosta do Iron Maiden, eu te amo. Se você não gosta do Iron Maiden (pausa dramática), eu te amo também”, termino esse artigo dizendo “se você gostou, ou melhor, ainda, se esse artigo ou outros textos desse espaço te ajudaram, fico feliz e desejo o melhor para você. Se você não gostou desse artigo, ou de outros, ou pior ainda, se não gosta do escritor por algum motivo especial, (pausa dramática) fico feliz também e desejo o melhor para você”.


Mas pode se comer com 3-4 dólares? Ah pode sim. No Lago Baikal, compramos pães deliciosas e um peixe defumado da família do Salmão por U$ 1,50.

A melhor vista possível do restaurante

O peixe era delicioso.

E ainda com mais um dólar se comprava um monte de fruts vermelhas (que delícia).

                Um grande abraço!






quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

O PROBLEMA DOS NOVE PONTOS - SOBRE O PENSAR "FORA DA CAIXA"


Pensar fora da caixa. Quantos de nós não já ouvimos essa expressão? Resolvi fazer um breve artigo sobre este tema baseado em dois motivos. O primeiro é que achei absolutamente interessante a origem dessa expressão. O segundo motivo foi o comentário de um anônimo numa postagem anterior. Os comentários, mesmo aquele oriundo de mensagens mais agressivas, quase sempre me dão insights para escrever artigos. Não o faço, por questão de tempo, prioridade e dedicação. Porém, nos últimos dias venho me sentindo mais inspirado a escrever mais nesse pequeno blog que possuo.

               



                O que a figura acima significa?” alguns podem estar pensando. Esse é o famoso experimento dos nove pontos, e é a razão, ao menos é o que muitas fontes dizem, de termos a expressão “pensar fora da caixa”. Eu sou sincero e digo que não tenho tanta paciência para fazer esses testes, mas se o leitor quiser tentar antes de continuar o artigo, a tarefa é unir os nove pontos com apenas quatro linhas sem tirar o lápis (ou caneta) do papel (no caso do presente artigo o experimento terá que ser mental na tela do computador).

                Conseguiu? Se alguém tentou, muito provavelmente, se não conhecia previamente esse famoso teste psicológico que vem sendo aplicado há 50 anos com dezenas de artigos científicos a respeito, não vai conseguir resolver. Em muitos testes, menos de 5% das pessoas conseguem resolver, e às vezes ninguém consegue solucionar esse simples, mas intrigante problema. Abaixo listo algumas soluções adotadas, mas que possuem cinco linhas e não apenas quatro.



                Sem mais mistérios, abaixo segue a solução do problema:

Um solução
A mesma solução do outro lado

                Uau, Soul, mas essa solução é possível? Pode sair dos limites dos pontos?” Sim, prezado leitor, pode, nada no enunciado no problema dizia que havia alguma limitação, uma fronteira feita pelos contornos dos pontos. Como essa ideia surge na cabeça da maioria das pessoas então? De alguma maneira nosso cérebro associa os pontos a um limite intransponível, e tendo como premissa básica esse fato, tenta achar uma solução dentro desse limite, o que não vai conseguir.  Como o nosso cérebro nos auto-impõe esse limite, qualquer solução “fora da caixa”, e que é a única maneira de resolver esse problema, se torna inacessível para o nosso processo consciente de tomada de decisão.

                Caixa? Sim, o mais interessante desse experimento é que se os nove pontos são apresentados dentro de quatro linhas maiores (significando um espaço ampliado) numa espécie de caixa, o índice de pessoas que conseguem chegar na solução certa aumenta exponencialmente, pois agora nosso cérebro percebe que a linha poderia ir além dos pontos, pois há um espaço “geográfico” ampliado, fazendo com que o pensamento seja mais natural para o cérebro consciente, seja mais “dentro da caixa”.

Se o problema é apresentado dentro de um quadrado (que contenha os 9 pontos) muitas mais pessoas conseguem resolver o problema


                O que tirar desse experimento? Primeiramente, é muito difícil pensarmos “fora da caixa”, ou seja, fora dos limites que o nosso próprio cérebro impõe a nós mesmos pelas nossas crenças, percepções, cultura, etc. Simplesmente, não é fácil, e é por isso que grandes empreendedores, cientistas, pensadores, com idéias ousadas e revolucionárias são em pequeníssima minoria em nossas sociedades humanas.

                O outro é que talvez você prezado leitor, assim como eu, não seja abençoado com a capacidade de pensamentos extremamente criativos, mas com algum esforço talvez possamos ampliar a "nossa caixa", nossos limites, para que soluções mais criativas e eficientes possam ocorrer com mais naturalidade. Como?

                Bom, esse site já abordou em dezenas de artigos algumas ferramentas. A primeira é reconhecer que nós tomamos decisões muitas vezes a nível quase que inconsciente influenciado por heurísticas, atalhos mentais que poupam energia do nosso tempo quando ele precisa tomar uma decisão. Um dos maiores vieses é o de confirmação, a tendência de darmos muito mais valor a uma informação que corrobore nossas ideologias, idéias, crenças, do que uma informação que contradiga o que acreditamos ser certo. Isso é um erro, é exatamente o oposto de como o método científico funciona. Se a ciência trabalhasse com viés de confirmação, nós com certeza não teríamos avançado tanto em conhecimento enquanto espécie.

                Logo, é bom ser exposto a idéias diferentes, a pessoas diferentes, a formas de viver a vida diferente, faz bem, atenua nosso principal viés (o de confirmação), e pode levar sim à ampliação dos limites que nossa consciência considera como válidos, fazendo que o nosso “pensar na caixa” talvez seja mais amplo do que se repetirmos diariamente as mesmas leituras, as mesmas conversas, os mesmos hábitos.

                Outra forma é talvez simplesmente relaxar, ter um tempo “ocioso”, realizar algo como a famosa expressão “ócio criativo” do sociólogo italiano Domenico Di Masi. Talvez quando não estamos focados em algo, ou pior ainda distraídos com alguma bobagem numa mídia social, ou alguma notícia política, ou alguma controvérsia de uma celebridade, podemos deixar nosso cérebro trabalhar melhor, e fazer conexões que talvez não fossem tão naturais se estivermos ocupados a todo o momento.

                Seja como for, a capacidade de “pensar fora da caixa” é muito importante. Se nenhum de nós, muito provavelmente, será tão brilhante como um Einstein, ou tão inovador como um Steve Jobs, muitas áreas de nossa vida podem se beneficiar se ampliarmos os limites sobre os quais nosso cérebro “enxerga” e decodifica a realidade.  Talvez a pessoa esteja tão absorta em notícias, debates, etc, que as suas relações pessoais mais básicas e fundamentais estejam negligenciadas. Talvez o “pensar fora da caixa” numa situação como essa seja simplesmente reconhecer que é errado, ou melhor dizendo infrutífero, pensar tanto em algo que foge do controle em detrimento de devotar tempo e a atenção necessárias para regar as relações pessoais importantes na vida.

                Talvez “pensar fora da caixa” seja não se seduzir pela cantilena do consumo inconsciente, e economizar parte da renda para formar um patrimônio para ter certa liberdade financeira e com isso alcançar outros objetivos. Pode parecer banal para leitores desse blog, mas para boa parte das pessoas isso seria um autêntico “pensar fora da caixa”. 

          Há inúmeras áreas de nossa vida, e de nosso conhecimento, que podemos fazer tentativas de pensamento original, ou talvez de ampliar nossos limites. Ao contrário do que pode parecer num primeiro momento, é uma jornada prazerosa. Talvez no primeiro momento possa causar desconforto, o que é normal quando fazemos tentativas de quebrar alguns hábitos ou “zonas de conforto”, mas quase sempre, se não sempre, as recompensas mais do que valem o esforço inicial.

                Um abraço a todos!
               

domingo, 6 de janeiro de 2019

A REFORMA DA PREVIDÊNCIA É A SOLUÇÃO PARA OS SEUS PROBLEMAS. VOCÊ FAZ MUITO BEM EM CONHECÊ-LA EM TODOS OS DETALHES E GASTAR O SEU TEMPO COM ISSO.


                Jonas está frustrado. Passou dos cinqüenta e poucos anos. Seu desempenho sexual deixa a desejar.  Seu casamento se mantém em pé mais por comodidade do que qualquer outra coisa. Seus níveis de testosterona estão cada vez mais baixos, a última vez que mediu deu abaixo de 180. Apesar de a idade ser um fator, está visivelmente acima do peso, ele não consegue recordar a última vez que subiu mais de dois lances de escada sem pegar o elevador.  Não fala com o seu filho há mais de cinco meses, aliás, o relacionamento com ele nunca esteve tão ruim.

                Caramba, a situação está ruim para Jonas. Sua vida poderia ser muito melhor do que é, seu bem-estar poderia ser ordens de magnitude maior. Porém, Jonas, está esperançoso, ele acredita que algo muito importante vai acontecer, ele comenta sobre isso, lê sobre o assunto, gasta horas e horas discutindo com quem pensa diferente, defendendo a sua perspectiva de maneira intensa e apaixonada. Jonas se matriculou numa academia e começou a se informar melhor sobre como alimentar melhor o corpo e daí advém a esperança dele de alguma coisa mudar na sua vida? Jonas redescobriu que a mulher com quem convive foi a sua companheira de uma vida, e o amor, que apesar de não ser uma paixão juvenil, ainda existe? Não, Jonas está confiante na aprovação da reforma da previdência.

                Michele tem 25 anos. Todo dia que se olha no espelho percebe alguma imperfeição em seu corpo. Uma hora é o bumbum que é um “pouco caído”, outra são os olhos que poderiam ser claros, ou o cabelo que poderia ser mais liso.  Como um ritual de auto-imolação, Michele todos os dias fica triste e ansiosa com o seu físico.  Uma tristeza um pouco mais profunda recentemente se abateu sobre a mesma, e ela foi diagnosticada com uma depressão leve.  O médico não pergunta sobre a rotina de auto-flagelo e prefere receitar uma antidepressivo. E assim, Michele, continua os seus dias, extraindo algum conforto efêmero e passageiro nas roupas que compra, nas fotos que compartilha sorrindo em suas mídias sociais, para logo depois sentir-se ainda mais triste, ansiosa e vazia.

                A situação não é boa para Michele. Porém, Michele está esperançosa que as coisas irão melhorar. Ela está confiante que um fato marcante irá ocorrer, melhorando a sua vida e por conseqüência o seu bem-estar. Ela vai parar de se olhar no espelho de maneira tão crítica, e aceitar como é, ao descobrir que muitos dos desejos físicos que ela projeta no seu corpo nada mais são do que miragens feitas por um marketing cada vez mais subliminar? Ou será que ela passará mais tempo com ela e pessoas próximas de forma mais direta, deixando as relações virtuais para um segundo plano? Não, na verdade Michele está confiante na aprovação da reforma da previdência.

                Carlos há anos ocupa um cargo que não o satisfaz. Com 35 anos, todo o entusiasmo juvenil que algum dia existiu nele parece que nunca existiu, é uma quimera de um passado longínquo.  Ele não gosta dos seus colegas de trabalho, do seu chefe,  de ficar preso no trânsito. O seu desgosto com a profissão começou a se alastrar para outras partes da vida. O cinismo virou a sua forma preferida de comunicação com os seus pares, afinal “homens não choram”.  De repente, sua mulher não é mais atraente. Não vê mais sentido em ter hobbies, pois acha uma perda de tempo.  Tudo que foi colorido se torna cinza, carregado, pesado. Matricula-se num curso online de um filósofo que nunca foi para academia, e lá aprende a ficar ainda mais zangado, brabo com tudo e todos.

                A situação de Carlos parece péssima. Porém, Carlos está esperançoso que sua vida vai dar uma guinada para melhor. Ele briga e ofende pessoas que não compartilham da sua visão gloriosa. O que Carlos percebeu? Porque com tanto afinco se compromete com algo? Será que ele percebeu que sua mulher sempre esteve ao seu lado nos momentos de dificuldade, e está disposto a brigar com tudo e todos para manter aceso um sentimento lisonjeiro por sua companheira? Ou será que ele percebeu que o curso online era oferecido por um charlatão que ao invés de realmente indicar caminhos para que ele ficasse “amigo do conhecimento”, na verdade o deixa mais paranóico, agressivo e com perda de qualidade de vida? Ou talvez ele começou a se esforçar com afinco para aprender Inglês, e quem sabe realizar o sonho de viver na Austrália nem que seja por um ano, um objetivo que com certeza faria o seu trabalho parecer muito mais “suportável”? Não, na verdade Carlos está esperançoso com a aprovação da reforma da previdência.

                Você possui alguma coisa em comum com o Jonas, a Michele ou o Carlos, prezado leitor? Identificou-se? Achou absurdos os relatos? Tragicômicos? Será tão distante assim mesmo da sua vida? Pessoas estão pré-diabéticas (e nem sabem disso), sem ânimo, tristes, com relacionamentos pessoais deteriorados, pais que não conversam com os seus filhos e vice-versa, adultos mal resolvidos com sua sexualidade e emoções, desgostosos com tudo, infelizes, refugiando-se em realidades virtuais que apenas as afundam ainda mais, mas por algum motivo essas mesmas pessoas acreditam que seja mais importante falar sobre a reforma da previdência do que esses problemas tão visíveis e profundos em suas próprias vidas.

                Todos nós podemos decidir hoje mesmo qual tipo de vida queremos ter e quais tipos de relacionamentos almejamos usufruir.  Nem mesmo dinheiro é necessário para fazer grandes mudanças. Com o peso do seu corpo você pode fazer inúmeros exercícios, o que o deixará mais focado, mais em forma, mais saudável, e com uma confiança muito maior. Com um simples “bom dia” nós podemos interagir com a nossa família, nossos vizinhos e conterrâneos de forma muito mais amena e agradável. Podemos escolher entre sermos empáticos, conscientes dos próprios erros  e mais satisfeitos, ou podemos ser rancorosos, agressivos com quase todos, e no fundo com nós mesmos. Podemos nos queixar de nossas condições financeiras, podemos apontar para os outros, ou podemos nos esforçar para que possamos atingir objetivos tangíveis. Tudo isso não precisa de dinheiro, um talento extraordinário, ou algum gadget novo. Porém, boa parte das pessoas prefere devotar o seu tempo e energia para discutir a reforma da previdência.

                Veja, a reforma da previdência é importante, sem dúvidas, esse mesmo blog escreveu sobre a mesma há três anos Não, a previdência não possui déficit. Sim, ela é um grande problema. Não há nenhum mal você enquanto cidadão querer ter uma opinião, além do mais se está prestes a se aposentar pelas regras atuais. Porém, a reforma da previdência, mesmo se aprovada ou rejeitada, não fará a testosterona de Jonas subir, a auto-estima de Michele melhorar, e a sanidade mental de Carlos voltar.  E, prezados leitores, a reforma da previdência é usada apenas como um exemplo, uma metáfora para a nossa miopia (não iria colocar essa frase, pois parece-me claro que esse era o caso, mas ganho em clareza às expensas de fluidez do texto).

                Portanto, a nossa vida precisa ser refletida. Precisamos encontrar tempo e espaço para nós mesmos. Precisamos descobrir quem realmente somos, auscultar os recônditos da nossa consciência, para podemos entender o que podemos fazer para nos tornamos pessoas melhores e mais satisfeitas com a vida. Cabe a você, prezado leitor, o chão está do seu lado, basta se inclinar e começar a fazer flexões. Não conseguiu nenhuma? Sua força está absurdamente diminuta. Mas não tem problema, esforce-se que você vai conseguir. Conseguiu apenas quatro? Não tem problema, aos poucos, cada dia vai tentando fazer uma a mais, quem sabe daqui alguns meses você não consegue fazer 200? Pode ter certeza que quando conseguir fazer 100, sua auto-estima terá aumentado em várias partes diversas da sua vida. O chão está aí, você está pisando nele. Mas, se quiser brigar, se preocupar, gastar horas e horas, com a reforma da previdência, fique à vontade, a vida é sua.  

Depois de sete horas num barco (isso depois de pegar dois voos e um ferry), tive que pegar esse barquinho por mais de duas horas, molhando todas as roupas e equipamentos meus e da minha companheira. Fiquei muito brabo? Infeliz?
Como não ficar feliz num lugar desses? Mentawai -Indonésia - final de 2015 (saudade!)


Um abraço!



               

sábado, 5 de janeiro de 2019

NUM REINO TROPICAL DISTANTE


Narrador: Era uma vez num lugar distante um reino tropical. Dizia-se que nele tudo que se planta necessariamente deve dar-se.  Um reino de farturas, mas afogado em inúmeros problemas. Violência, desrespeito aos anciões, precocidade sexual eram apenas algumas dentre as inúmeras chagas a assolar esse país alegre e triste ao mesmo tempo. Os infortúnios remontavam de décadas, pensadores diziam que séculos, mas de súbito novos iluminados descobriram as soluções para os antes tidos insolúveis problemas. De pronto foram aclamados como “salvadores e geniais” e a eles foi incumbida a nobre missão de finalmente acordar o gigante para os seus destinos divinos grandiosos….

Professor discute com um aluno

Aluno de nome Queiroz: Professor, seria errado ou imprudente, receber dinheiro alheio como fosse seu?

Professor: Aparentemente, sim, Queiroz, mas seria preciso saber as circunstâncias que isso se deu para se fazer um juízo  mais aprofundado.

Aluno de nome Queiroz: Quer dizer que você professor está a relativizar o ato de receber um dinheiro alheio como próprio?

Professor: Não foi exatamente isso que eu disse.

Aluno de nome Queiroz: Foi exatamente o que você acabou de dizer! Por acaso também acha que a “depender das circunstâncias” um menino deixa de ser um menino? Por acaso adere à nefasta teoria de que meninos vestem rosa de forma metafórica? 

Professor: Como é que é Queiroz? Isso é jeito de se falar com o seu professor? Se você estivesse no reino do Japão….

Aluno de nome Queiroz: Não negas então? Não sabe que o meu direito é ser ensinado de forma neutra? E que me atacas ao dizer que a pedofilia pode ser justificada em certas ocasiões?

Professor: Do que você está falando?

Aluno de nome Queiroz: Você é um pervertido-doutrinador-comunista e deve ser denunciado aos Tribunais de Ética Escolar em homenagem a Oluvus Corvulhas contra o gramscismo-marxismo-socialismo-gayzismo

Professor: Quem é esse Oluvus Corvulhas? Ele frequentou a escola ao menos?


No Tribunal de Ética Oluvus Corvulhas

Juiz Maro: O Sr. é acusado de conspirar contra a juventude. Alguma palavra em sua defesa?

Professor: Grande e prestigioso juiz, antes de mais nada, se eu tiver feito algum mal-feito e me arrepender perante vossa sumidade, poderei ser perdoado?

Juiz Maro: Não, a lei é cega e é para todos, bem como a sua aplicação. 

Professor: Não me leve a mal eminente magistrado, mas eu li recentemente que vossa magnificência teria perdoado pessoa de seu círculo íntimo. Aparentemente, houve arrependimento de um mal-feito, tudo leva a crer que foi sincera e legítima a declaração espontânea de culpa, tanto que o acusado marcou até mesmo na própria pele palavras de salvação a respeito de dito episódio. Na ocasião, vossa eminência proferiu um juízo obsequioso em relação ao arrependido infrator, não poderia, já que a Justiça é cega, tal jurisprudência se aplicar à minha pessoa?

Juiz Maro: Petulância. Estás a zombar dessa corte que leva o nome do maior intelectual que esse reino tropical já teve? Um mago das palavras e dos modos, com ele aprendemos que o dito genial Einstein era um farsante, que as leis de um tal de Newton não faziam sentido, e um tal pensador chamado Kant (que nome horrível) era um idólatra sem miolos. Não te envergonhas de tal ato vil ainda mais a ser praticado no tribunal em homenagem ao grande homem, ainda mais tu que se diz professor?

Professor: Einstein e Newton estavam errados? Ainda não tinham me avisado vossa magnificência, e se eles estavam errados como os Yankees e os Vermelhos colocaram artefatos humanos no espaço? Mas, deixando isso de lado, o que isso tem a ver com a minha pergunta sobre a necessidade de se aplicar a mesma jurisprudência para casos idênticos, já que a Justiça é cega?

Juiz Maro: Insolente! O juízo de culpa se faz devidamente presente, não preciso nem ouvir a defesa, pois claramente tu és um doutrinador gramscismo-marxista-socialista-gayzista. Porém, como sou benevolente, justo, sábio e apolítico, irei encaminhá-lo para o professor-mor.

Enquanto Isso numa Conferência Internacional

Representante do país tropical: E por causa do que decidiu o grande líder, nosso soberano reino decide que os fatos nada valem, que tudo é relativo, que o gramscismo-marxismo-socialismo-gayzismo tomou de assalto os cientistas do mundo, que é matematicamente impossível o homem interferir na natureza pois somente Deus tem esse poder, e tendo como consequência resolvemos decretar que as leis e regras do que vocês chamam ciência nada valem se um povo possui coragem, o divino e o juiz Maro ao seu lado.

Representante do oriente: Qual grande líder, do seu reino? O que ele tem de grande?

Representante do país tropical: Obviamente eu me referia ao grande líder Yankee, aquele que temos admiração, respeito e subordinação. Aquele que com sua ousadia e senso de justiça ajudou a iluminar os verdadeiros problemas da humanidade.

Representante da África: A fome, subnutrição, as doenças esquecidas que dizimam milhões em meu continente, a falta de saneamento?

Representante do país tropical: Evidentemente que não.

Representante dos países ocidentais: O espectro de algoritmos de inteligência artificial e os seus impactos na sociedade de ordem social, econômica e moral? Ou os problemas de uso e gestão dos recursos finitos do nosso mundo?

Representante do país tropical: Não!

Representante dos países nórdicos: Seria então a depressão, os índices de suicídios que aumentam sem parar, o senso de infelicidade e mal-estar mesmo com sociedades cada vez mais afluentes materialmente?

Representante do país tropical: Não, não, não! Vocês não sabem nada, e por isso que foi preciso nascer um gênio como Oluvus Corvulhas para ensinar, e o grande líder para mostrar o exemplo prático.

Menino que observava tudo atônito: Mas qual é o problema então?

Representante do país tropical: Ora, o gramscismo-marxismo-socialismo-gayzismo!

Menino que observava tudo atônito: Ah….

Representante do Oriente: Você sabe que estamos em 2021, não?

Representante do país tropical: e daí?

Representante do Oriente: Ora, o seu “Deus” caiu, não sabia disso?

Representante do país tropical: Ai!


Professor com o Professor-Mor

Professor-Mor: Você é acusado de gayzismo-comunismo-fordismo, o que tem a dizer?

Professor: Eu pensei que eu era acusado de outra coisa. Deixa para lá, me sinto como Josef K.

Professor-Mor: Quem?

Professor: Como assim quem? Você não é o professor-mor? Josef K. “Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.”

Professor-Mor : ? Não te entendo.

Professor: deixa para lá.

Professor-Mor: o que tem a dizer em sua defesa?

Professor: Ei, professor-mor, eu já aludi a Josef K., preciso desenhar? Isso quer dizer que o que quer que eu diga será inútil, é a essência de um julgamento kafkiano. 

Professor-Mor: O quê?

Professor:  Franz Kafka, o escritor, pelas barbas do profeta!

Professor-Mor: Ele escreve sobre gayzismo, marxismo, conservadorismo?

Professor: Ele escreve sobre os recônditos mais profundos e angustiantes da existência humana.

Professor-Mor: Balela então. Papo de politicamente correto. Esse escritor de quinta categoria é ao menos indicado pelo grande Oluvus Corvulhas?

Professor: Sei lá, acho que não.

Professor-Mor: Balela a raiz quadrada.

Professor: não queria dizer balela ao quadrado?

Professor- Mor: Insolente. Está condenado, com o grave agravante que agrava a situação de você ainda ser islamismo, ou você acha que o seu "pelas barbas do profeta" iriam me enganar?

Professor: Não quer dizer islamita?

Professor-Mor: Insolente a raiz quadrada!


Narrador: E assim no meio de pessoas tão iluminadas por desígnios “quase divinos”, de julgamentos escorreitos, de ideias brilhantes, o reino tropical se desenvolveu, se desenvolveu, e se desenvolveu mais um pouco, alcançando os píncaros dos grandes destinos que assim o esperavam.


obs: Os fatos aqui narrados são ficcionais e não guardam nenhuma relação com situações ou pessoas reais.  Qualquer semelhança com a realidade é puro acaso.