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segunda-feira, 3 de abril de 2017

PRESENCIANDO UM SKY BURIAL TIBETANO - UMA EXPERIÊNCIA MARCANTE


 Estava frio. Muito frio. Na noite anterior, nossos celulares marcavam -10 graus Celsius. Também pudera estávamos a 4.000 metros de altitude, na cidade de Litang no extremo oeste da província Chinesa de Sichuan. Era uma região tibetana, e a região autônoma do Tibet estava a poucos quilômetros dali.  

 “Que horas são?” pergunto a minha companheira, “cinco e meia” é a resposta, “você quer realmente ir?” indago, “Sim, por que não?” ela diz tentando disfarçar a vontade de continuar na cama.

  Na noite anterior, tinha perguntado ao dono da pousada, que por uma sorte incrível falava um pouco de inglês, se era verdade que um estrangeiro-turista poderia observar o ritual, e se ele realmente aconteceria amanhã de manhã. Ele tinha anotado um endereço escrito em tibetano, não sabia se no outro dia haveria, mas se ocorresse lá seria o local. Penso comigo mesmo “como as letras tibetana são bonitas, talvez é o idioma escrito mais bonito que já vi”.

  Saímos nas ruas gélidas de Litang a procura de um taxista ou alguém disposto a nos levar. Acenamos para um carro, demos o endereço escrito na língua local, perguntamos em Mandarim quanto custava,  e ele responde também em Mandarim 10 Yuan. Penso em negociar o preço, mas são menos de dois dólares e está muito frio. 

  A corrida de táxi dura alguns minutos, e por meio de vielas e monges que se encaminham para as suas preces matinais, chegamos aos limites da cidade num local com muitas bandeiras tibetana de oração. O Taxista apenas faz um sinal com a cabeça que este é o local. Saímos do carro e começamos a perambular pelo lugar.

 “Será que este é o local correto?”, indago a minha companheira, e ela responde “como é que vou saber?”. Alguns minutos se passam, e depois de andar algumas centenas de metros avistamos ao longe um grupo de homens em torno de uma fogueira. Por uns instantes ficamos apenas observando, até que um deles fez sinal para nos aproximarmos.

 Com uma certa cautela fomos caminhando em direção ao grupo, e ao chegarmos lá fomos recebidos com sorrisos e com o tradicional chá de manteiga feito de leite de Yak, uma espécie de animal que parece um boi cabeludo e mais parrudo. O gosto é salgado, ao contrário do chá mais adocicado servido em algumas outras regiões mais turísticas de Sichuan, demonstrando que é um autêntico chá tibetano.

  Nenhum falava Inglês no grupo, apenas um ou outro arriscava uma palavra. Alguns estavam trajando roupas típicas tibetanas, e era incrível perceber quão diferentes eles eram dos chineses da etnia Han, a etnia predominante em toda China. 

  Por meio de sorrisos, gestos e olhares, tentávamos nos comunicar. O gosto do chá era muito forte, mas junto com o calor da fogueira fazia o frio ficar um pouco mais suportável. Um dos tibetanos saca um faca enorme e coloca um pedaço que parece uma costela seca no chão. Ele corta então alguns pedaços e nos oferece. A Sra. Soulsurfer faz menção de não aceitar, apenas digo com os olhos “aceite”

 Coloco na boca, e um gosto de osso com gordura instantaneamente percorre o meu corpo. “Nossa, que coisa ruim!” quase exclamo em português, mas seguro o meu ímpeto. Minha companheira ao observar minha reação, sorrateiramente coloca os pedaços recebidos em sua calça sem que nenhum dos homens no grupo perceba. 

 Em que pese o gosto, retribuo com sorrisos e agradecimentos a hospitalidade e gentileza daqueles homens. Mesmo depois de uns 15-20 minutos em volta da fogueira, ainda não sabemos se alguma coisa irá ocorrer, e o que aqueles homens estão fazendo ali.

 De repente, três homens do grupo saem sem falar nada e se dirigem a um carro. Nós já estávamos fazendo menção de ir embora também, quando um dos tibetanos apenas deu a entender para que aguardássemos. Alguns instantes depois, o carro parou  uns quinhentos metros onde estávamos, e eu pela primeira vez reparei nos abutres um pouco mais longe. “Será que vai ocorrer mesmo?”.

  Foi quando vi uma forma branca, mole, parecendo um boneco ser colocada ao chão. “Será que é isto mesmo que estou pensando?”, sim, era. Nunca tinha visto um cadáver, e lá estava ele a uns 500 metros de distância. A visão daquilo me deixa um pouco inquieto. “Então é isso que nos transformamos, esse é o destino final de todos? Reis, escravos, magnatas, pobres, famosos, é assim que ficamos quando chega a nossa hora”?

 Os budistas tibetanos acreditam que tudo deve retornar a natureza e que o nosso corpo é transitório, assim como tudo na vida. Sendo assim, em muitas regiões tibetanas, não se costuma enterrar ou cremar os corpos, o que é encarado como um desperdício, mas sim oferecer os falecidos a abutres, o que é visto como um ato de generosidade. Nós ocidentais conhecemos essa prática como SKY BURIAL. Os Tibetanos conhecem como བྱ་གཏོར.  Não é esplêndida a escrita tibetana?

  Meses depois, iria conhecer algumas torres do silêncio no Irã, onde praticantes da religião zooroastra também ofereciam os corpos aos abutres. Porém, há mais de um milênio a religião zooroastra não é a dominante na Persia, e creio que desde da década de 50 os zooroastras não utilizam as torres do silêncio.

  Dois homens então começaram, pelo que pude distinguir a distância, a fazer cortes no corpo. Mais e mais abutres chegavam. Os homens então se afastam do corpo, e dezenas de abutres quase que instantaneamente se atiram em direção ao corpo.

  Em torno de um, ou talvez dois, minuto vejo apenas ossos. Não sei bem se são apenas ossos, pela distância. Eu não sei bem o que pensar. Não sei talvez se quero refletir sobre o que está acontecendo. Os acontecimentos foram tão rápidos que quase nem pude saber ao certo o que estava ocorrendo.

 Alguns tibetanos acenam para nós que podemos nos aproximar da cerimônia, eu agradeço com educação, mas digo com a cabeça que não faço questão. Olho para a minha companheira e ela também não sabe muito bem o que falar ou pensar. Apenas me diz que gostaria de ir embora, sinto que aquela experiência está sendo muito forte para ela.

 Nos despedimos do grupo, agradecendo pela hospitalidade e por permitirem que ficássemos no local. Caminhamos em direção a cidade, evitando olhar para trás. O que aconteceu está muito além da cultura onde nasci e fui criado. Eles estão certos ao fazer isso? Será que não é um conceito bonito de generosidade para com a vida na terra, de que após a morte o nosso corpo não representa mais nada? Ou será que é uma profanação do corpo humano?

 Eu, sinceramente, não sei. Aliás, quem sou eu para julgar algo desse tipo. Uma das coisas que anos viajando me ensinou é tentar ao máximo observar fatos e acontecimentos sem necessariamente ter uma máquina julgadora mental a todo instante, principalmente julgando de acordo com conceitos e preceitos nos quais fui criado, e que não necessariamente representam a verdade ou a melhor visão de mundo.

 Na verdade, o mundo é  tão diverso, que quanto mais o conhecemos, mais humildes ficamos a respeito de quanto achamos que sabemos.  É impossível apreender este conceito apenas lendo, ou vendo documentários ou opiniões de outras pessoas. 

  Um dos maiores antídotos contra o ódio e contra a ignorância é de conhecer o outro.  Com viagens longas, para locais que nem imaginamos que existam em nossas labutas diárias, a nossa visão de mundo, que para muitos é tão estática e certa, é colocada em cheque. Não se pode ignorar a realidade quando ela se apresenta de forma tão clara e nítida aos seus olhos. 

  Com um coração sem julgamentos, andamos alguns quilômetros até chegarmos em nossa pousada. O que penso de tudo que ocorreu é algo meu, assim como o são as reflexões de minha companheira a respeito. Não faço questão de julgar se é certo ou errado esta prática específica cultural tibetana, mas posso sim me sentir feliz de ter recebido a hospitalidade de outros seres humanos, e isso é motivo mais do que suficiente para que o coração se aqueça, apesar do frio intenso das ruas de Litang.

                                                                  Eu e os Tibetanos


  Grande Abraço!



22 comentários:

  1. Bela aventura viu! Espero um dia poder ter a mesma experiência.
    Abraços!

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    1. Olá, Einstein. Ter essa mesma experiência, acho um pouco difícil, mas tenho certeza que se pode ter inúmeras experiências extraordinárias nas regiões tibetanas chinesas.
      Abs!

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  2. Rapaz, experiência bem estranha aos meus olhos. Bom que valeu a pena pra você. Barbudo hein, Soul. Abraço.

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    1. Olá, colega. Fiquei um tempo sem fazer a barba por causa do frio.
      Sim, foi uma experiência não convencional para um brasileiro.
      Abs

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  3. Respostas
    1. É uma forma de ver. Para muitos tibetanos é um ato que expressa generosidade e desapego.
      Abs

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  4. Que experiência! Quisera eu viver para ver algo assim. Tenho a impressão que tem outro post aqui no blog parecido com este, não tem? Foi esse que você comentou na Pérsia? Você vivenciou algo do tipo 2 vezes já?

    Gostei da parte que você fala: "Aliás, quem sou eu para julgar algo desse tipo. Uma das coisas que anos viajando me ensinou é tentar ao máximo observar fatos e acontecimentos sem necessariamente ter uma máquina julgadora mental a todo instante, principalmente julgando de acordo com conceitos e preceitos nos quais fui criado, e que não necessariamente representam a verdade ou a melhor visão de mundo."

    Eu concordo com isso em termos. Algumas coisas realmente não dá pra julgar, outras já ferem o nosso conceito de dignidade, aí é meio complicado. Por exemplo, por mais na Indonésia a mutilação feminina seja cultural, na minha visão não dá pra afastar o julgamento e dizer que é "apenas algo cultural". É diferente desse sky burial. No final das contas, é um ritual com um corpo morto. Não há dor envolvida pra quem está deixando a Terra e, pra quem fica, é uma forma de homenagem. O evento não traz sofrimento para as partes. Mas é minha visão. Para alguns, seria pecado mortal mexer com isso.

    Outro exemplo: algumas tribos fazem auto mutilação. Embora seja sofrimento físico, essas atividades traz a sensação de dignidade para eles, que aceitam e gostam daquele ritual.

    Enfim, a linha é tênue, eu sei. Muito tênue...

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    1. Olá, colega.
      Estive um mês no Irã. Fui a algumas torres do silêncio, mas hoje são mais monumentos históricos, não há mais "enterros" nessas torres.

      Após escrever o texto, pensei que essa parte poderia dar azo a uma interpretação mais "relativa". Você tem toda razão em suas ponderações. A mutilação genital em meninas de tenra idade, o apedrejamento de mulheres acusadas de traição, a escravidão, entre outros exemplos de violações claras da dignidade humana, creio que não podemos e devemos tolerar enquanto humanos. Não podemos aceitar uma explicação "cultural" para agressões claras.
      Agora, como bem notato por você, o SKY BURIAL não se enquadra nisso, é apenas uma maneira diferente de encarar o corpo após a morte.

      Um abraço!

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  5. Soul,

    Bacana .. sempre em lugares mais inusitados ... bem interessante ..

    Abs,

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  6. Olha Soul, só de ler seu relato já dá para sentir como é uma experiência forte. De fato, é difícil para um cristão, ou quem foi criado na religião cristã e nem quer conhecer outras crenças, tentar compreender o que aconteceu, afinal, o cristão acredita na ressurreição da carne. Entendo a motivação budista e, pessoalmente, acho interessante o conceito da impermanência e desapego que justifica o sky burial, mas a imagem é mesmo muito impactante e, às vezes, me pego pensando nisso tudo (de um jeito interessante, não assustador rs)! Valeu por compartilhar.

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    1. Olá, May.
      É verdade, muito difícil para nós criados numa sociedade de um país da América do Sul de maioria católica analisar um evento como esse com um certo distanciamento.
      Grato pelo comentário e um abraço!

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  7. Os microorganismos que devoram o corpo enumado são tão diferentes dos abutres para os cristãos?

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  8. Meu amigo comunista caviar.
    Belo passeio, ver como os monges alimentam os abutres deve ser extremamente interessante, ou melhor, contemplar a cerimônia fúnebre dos monges deve ser uma experiência única.
    Creio que os comunistas gostam de contemplar algo que é comum durante a vigência de seus regimes.

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  9. Poder presenciar uma cena destas é uma oportunidade única! Já conhecia o hábito tibetano, ligado não apenas a questões religiosas, mas ao permafrost e o alto custo (relativo) de uma cremação.
    Muito obrigado por compartilhar este tipo de experiência conosco, além da riqueza da cultura dos vizinhos tibetanos, Sichuan parece ser um lugar extremamente interessante, com uma culinária pouco divulgada no exterior. Espero conseguir visitar esta provincia chinesa um dia.
    Abs, Kundera

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    1. Olá, Kundera.
      É verdade, há explicações de ordem mais prática como a dureza do solo, bem como o fato de ser regiões com pouca madeira para se cremar os corpos. Penso que elementos de ordem mais prática, como os levantados por você, vieram a dar o sustentáculo para justificativas religiosas da prática.
      Sichuan talvez seja a província mais bonita da China, uma das mais com certeza. A parte tibetana é apenas no extremo oeste da Província. O resto é de maioria Han com a grande cidade de Chengdu. É uma região bem interessante.

      Abraço

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  10. Excelente texto.
    Vc já tinha falado sobre este ritual antes, não é?
    Mas desta vez foi uma narrativa mais pessoal.
    Bacana.
    Grande experiência.

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    1. Valeu, Uéter.
      Não me lembro se já tinha comentado.
      Grato pelo comentário.
      Abs

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